Sandra Boveto
À LUCIDEZ
Dentro de mim há um enigma.
Olho para fora, busco a cura.
Não resisto, quero a loucura,
essa que cura, loucura benigna.
Pois quando louca, sinto-me sã,
salva da lucidez que me enlouquece,
dessa lucidez que me adoece.
Quero a loucura cega, surda e vã.
Sim, vã! Pois o que faz sentido maltrata.
O significativo não mais me arrebata.
Vou-me ajustar a essa vida insana.
Não resisto! Tiraram-me a gana!
...
Não, não é isso! Fui leviana!
Quero a lucidez, a mais cara loucura.
Volto à lucidez e me entrego à tortura.
Que doa, que maltrate ou que me mate,
mas confio à lucidez o meu resgate.
Inspiro no passado e expiro no futu... não, no passado também!
O futuro não existe.
O tempo está limitado pela sensação de um suposto presente...
que acabou de passar!
O presente não existe.
A cada instante, sou apenas o resultado de um passado assimilado
e insistente.
Permito-me conceber um futuro e me concedo um presente.
Mas, ao abrir esse presente, lá encontro o passado, eternamente.
Estranhamente, a vida acontece dentro do presente, ainda embalado.
O passado são apenas as memórias dos presentes que abri.
O futuro será consequência, quando se transformar em passado.
E foi o passado certamente a causa, mesmo sendo a consequência...
O que é fato é que o ato que causa a consequência vive no presente,
eternamente.
Folhas e pontos
Gostaria que as folhas nunca fossem de ponto,
ponto que marca tempo,
o tempo que não me pertence;
obtuso ponto que me amarra ao tronco
desse açoite das horas.
Gosto das folhas que seguem o vento,
vento que as liberta
dos galhos fixos do tempo.
Com o tempo, elas chegam ao ponto
de, como o tempo, irem embora.
BEIJO AUGUSTO
Como eu aguento?
Essa pergunta me vem, às vezes…
fica incerto tempo
e desaparece.
Voltará?
Perguntas e vontades voltarão?
Ou viraram altocúmulos?
Estratos? Cirros talvez…
Quero nimbos,
seguidos de relâmpagos e chuva forte!
Não saber é o que não aguento.
É isso que eu não aguento: não saber!
O que, como, para onde…
qual é o rumo mesmo?
Nau sem norte… já disse isso?
Pois repito.
Gosto de repetir algumas coisas
para me convencer da resposta, essa que não sei
resposta errada
resposta certa
como qualquer resposta sempre foi: certa E errada
nunca uma única coisa
pois verdade é isso mesmo: quimera
pantera, fera, véspera do escarro
mas nunca companheira inseparável.
A verdade é qualquer coisa menos a realidade
é equação algébrica:
X – REALIDADE = VERDADE
Se a realidade for maior que qualquer coisa,
a verdade terá um formidável enterro
E é assim que eu aguento, sem aguentar de saudades
daquilo que eu sei que existe, mas não vejo
da verdade, às vezes, positiva
daquilo que me revelou,
nada mais revelando, além do beijo
do augusto anjo.
ESSE ISSO
Isso... isso que eu sinto,
isso que não tem nome,
que a mente consome,
que domina a vontade,
desafia a realidade,
que me nega à verdade.
Parece preso esse isso dentro de mim.
Mas não.
Sou eu a finita prisioneira do “isso” sem fim.
Líquido Seco
Líquido, desfaz-se e busca a solidez,
na solidão eterna de um momento líquido.
- Barman ou Bauman?
- Ambos, por favor!
Há pontas, há ondulações,
há mágicos atritos que arranham e acariciam.
Líquido seco que o caos acalma,
que a calma tinge de guerra,
com a cor do sangue, sem a dor da alma.
A língua morre aos poucos,
entrega-se à morte do mundo que não vive.
Língua morta de uma mente viva
que nunca morre, que nunca dorme,
que sangra na taça.
Calma
Mergulhei numa calma esquálida,
muda,
inodora,
insossa,
pálida...
No enterro dos sentidos,
vi espectros de sonhos perdidos,
pilhados,
massacrados,
arruinados,
esquecidos...
Com o féretro das emoções, cerrou-se o dom.
Morreu o ruim e morreu o bom.
À escuridão perdeu-se o tom.
E o silêncio trouxe o som,
o gemido,
o grito,
o apito
ultrassônico
da criança
reprimida.
Um desejo me aperta a garganta
arfando, eu vivo os dias
ar falta ao peito
arquejo
no ar.
Escrevo o aperto de um tempo
suando, aperto a caneta
a letra rejeito
ar vejo
no bar.
O desafio não é mais escrever isso ou aquilo.
O desafio é viver o que se escreve
ou aquilo que quer ser escrito.
Há um desejo que pede,
anseia,
esperneia,
exigindo registro.
É desafio da vida
que busca a fenda,
a réstia,
a luz,
a brecha de mim escondida.
O braço se estica, mas não alcança a chave
que está lá... lá... bem lá...
presa no cinto do carcereiro.
E, a cada noite, o dia vira morte não escrita.
Aí dentro, aqui dentro,
você se cansa da espera.
Eu sei que se cansa.
Vejo seu cansaço fechando o portão,
a porta, a janela.
Mas não quero ver a chama que me chama
ceder à gota d’água,
aquela que trará nuvens de cinzas.
O "conceito" dentro do preconceito não é conceito, é peça de museu antropológico sociocultural, sujeito a observação e estudo, e não a uso.
A gota sai e faz caminho,
caminha somente
e some antes de cair.
Não, essa gota não cai,
esvai-se,
sublime.
Gota feita de mistério,
de matéria sem lei.
Experiências de vida atestam que alta concentração de presunção em O2 provoca saturação de contradição em CO2.
Estou no meio deste “sei lá”.
O que é o “sei lá”?
Ah, ele se resume a ummundodentrodeummundo...
ainda se fosse omundodentrodomundo, o conceito seria mais fácil de explicar
ou, pelo menos, de entender.
Mas sei lá...
Isto é meio que bom: o não saber.
Não, não... eu me enganei. Isso é ruim!
Ou, talvez, sei lá!
Só sei que, depois que sair desse mundo, vou pra outro ainda sem saber explicar o “sei lá”.
O outro mundo?
Ah, sei lá!
Paciência é uma coisa linda! Por isso, as pessoas testam você, sabia?
Para que o mundo fique mais belo.
Você já resistiu tanto!
Já sabe como é, então, resista mais um pouco.
E quando não aguentar mais, é só resistir de novo.
enquanto carta no baralho
vou tentando quebrar um galho
confundo alho com bugalho
procuro e erro o atalho
escondo cabelo grisalho
faço do ego um chocalho
lavo com lágrimas o assoalho
talho versos em cascalho
e resisto feito carvalho