Maria Almeida
Abro o pensamento e os fragmentos amordaçam-se uns aos outros, perante a luz da madrugada que tarda.
O desafio é isto.
Um colorido conciso, entre a magoada indignação e o empalidecer da noite num último sopro de lua cheia.
Acorda, pois eu ainda agora cheguei...
Deixa a luz permanecer, diáfona.
Vim buscar-te, mansa e eleita,
para te levar no meu manto perlado,
a estrela branca da noite,
em que a noite não existe,
e o dia é uma palavra soletrada.
Acorda, pois eu ainda agora cheguei...
Deixa o sonho reinsistir, idolatrado.
Vim trazer-te, suave e altaneira,
na concha do meu longo regaço,
a galáxia azul dos teus ideais,
em que a luz insiste,
e a sombra é uma porta fechada.
Acorda, pois eu ainda agora cheguei...
Deixa o teu âmago fundir-se no meu.
Vim ocupar-te em mim, louca e sôfrega,
querendo o teu limiar nas minhas mãos,
lançando-te nessa profusão inexplicável,
nessa dor de existir entranhada,
nessa alegria de amar glorificada.
Acorda, pois eu ainda agora cheguei...
Quando vi o primeiro brilho de lágrimas nos teus olhos, o meu coração ecoou nos ouvidos do mundo.
Que estás a fazer, Deus?
São as pessoas como tu que trazem luz ao mundo, que transformam o cinzento dos dias no azul infinito das manhãs, que abraçam a vida e aquecem o coração, que empunham, enfim, o estandarte da esperança rumo à trilha suave e sonora do amanhã.
O Universo começa dentro de mim.
E dentro de mim sinto o tudo, sem esperar o nada.
Respiro-te com a fragância doce da existência, o meu pensamento repleto de ti, inesgotável no dorso do tempo, deste tempo que me faz feliz.
Na mancha de todas as luzes, no topo de todas as coisas, no tapete planetário de todas as flores, vejo o Sol nascer.
Não há tempo para decifrar.
Nascida debaixo da terra, a vida pulsa. Pulsa para nascer.
A ausência de respeito tem um tempo, um modo e um lugar.
Depois disso, passa a redundância, expressa na inocuidade do carácter.
Deus, eu sinto-Te e sei que posso, porque a cada madrugada, tudo renovas, recomeças e reinventas em mim.
O vislumbre daquilo que era tornou-se assustadoramente imperceptível.
O som soava longe, para além das miríades de luzes diáfanas numa noite de lua vazia.
Semicerrei os olhos, na tentativa vã de ver o que eu já sentia.
E o arrepio – um único arrepio – percorreu o meu corpo, volatilizando tudo à minha volta, num turbilhão de sentidos, à margem de todo e qualquer entendimento humano.
Gosto, sincera e abertamente, de amar a Deus, de ser eu mesma, de rir, de viver, de fazer o bem, de estar em paz, do meu café da manhã, de caminhar descalça, da amizade que tempera os bons e os maus momentos, de ser feliz e de fazer os outros felizes.
O meu coração sente em comunhão com a minha alma.
Vivo o agora e permito-me abertamente caminhar, sem receios, para receber, com humildade e amor, o que preciso, de acordo com as minhas experiências e percepções, sentindo, percebendo e fluindo.
No meu sonho corria de mãos dadas e julgava-me criança. E quantas vezes quis descrever o que sentia, encontrar o beco com saída, a janela aberta na escuridão, a chave esquecida, e mergulhar no abismo da tua imensidão.
A bola ressaltava uma e outra vez, num movimento contínuo e perfeito, molhada pela chuva miudinha que pingava sem fim.
O silêncio recortava-se no horizonte e o calor era tímido, molhando-me o corpo, ao qual a roupa já aderia como uma segunda e profunda pele.
De sorriso molhado, soltei a gargalhada, os lábios húmidos e quentes, em uníssono com o ladrar do meu imprevisível cão.
O ribombar de um trovão passou por mim e, algures, bem longe, ouvi o zipar do relâmpago azul e branco cortar o ar e cair.
Todo o mundo recolhido e eu aqui, louca como eu só, deliciando-me na chuva.
Enquanto procurares, em outras metades, metades de mim, nunca me encontrarás.
Procura-me inteiro. E só a mim. É assim que te quero. Inteiro. E só a ti.
Dizer que me importo contigo, é pouco. Dizer que sinto o que tu sentes, é muito.
Então, abraça-me. E não digas nada.
Não me decifres. Folheia-me página a página, lê-me capítulo a capítulo, absorve-me frase a frase, soletra-me palavra a palavra. Eu sou o teu mundo. E um mundo sem fim.