Erasmo de Roterdã
Alegar-se-á, contudo, que deliram e enlouquecem: pois é isso mesmo, justamente nisso consiste o tornar a ser criança. O delírio e a loucura não serão, talvez, próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais agrada nas crianças? A falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um adulto não seria um pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de odiá-lo e de ter por ele um certo horror.
Só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude, embora fugacíssima, e de retardar bastante a malfadada velhice.
Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do mesmo.
Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia, só fará mostrar-se duplamente louca (...)
E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.
Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais. Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome de vida. Mergulharíamos na tristeza todos os nossos dias, se com essa espécie de prazeres não dissipássemos o tédio que parece ter nascido conosco.
Dizei-me por obséquio: um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio?
Mas, na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade.
E porque, segundo o meu costume, não hei de vos falar mais livremente? Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, como partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se lhe pode dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e os mortais.
Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida?
[...] desde que me presteis ouvidos com bastante atenção.
Eu, ao contrário, sempre gostei muito de dizer tudo o que me vem à boca.
E que necessidade havia de vo-lo dizer? O meu rosto já não o diz bastante?
[...] bastará olhar-me de frente para logo me conhecer a fundo, sem que eu me sirva das palavras que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração.
Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não reconheço?
E com tão prazenteiro e amável sorriso me aplaudistes.
Contentar-me-ei de ter elogiado a loucura sem estar inteiramente louco.
O espírito do homem é feito de maneira que lhe agrada muito mais a mentira do que a verdade. Fazei a experiência: ide à igreja, quando aí estão a pregar. Se o pregador trata de assuntos sérios, o auditório dormita, boceja e enfada-se, mas se, de repente, o zurrador (perdão, o pregador), como aliás é frequente, começa a contar uma história de comadres, toda a gente desperta e presta a maior das atenções.
O que é certo é que mesa alguma nos pode agradar sem o condimento da loucura. E tanto isso é verdade que, quando nenhum dos convidados se julga maluco ou, pelo menos, não finge sê-lo, é pago um bobo, ou convidado um engraçado filante que, com suas piadas, suas brincadeiras, suas bobagens, expulse da mesa o silêncio e a melancolia.
Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos. Se acasos incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem obrigado a fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles. Embora não haja ninguém que, tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro que me devem muito. Eis porque impus ao meu amor-próprio favorecê-los mais do que a todos os outros mortais, e de fato são eles os meus maiores prediletos.”
(Elogio da Loucura)