Rua
A Matéria das Palavras
Na rua do teu peito
caminha a minha
enfurecida paixão
permitida e condenada
por uma mácula de sal
no exílio de uma lágrima
caída e despida por ti.
Nessa deriva em riste
como uma ilha crua
vertida no hino de pedra
que carrega no rosto
a velhice corrosiva
nos endereços da memória.
No caderno aberto do passado
à distância de um destino
no lado desfiado da carne
na rescisão do pacto com o tempo
desce a matéria das palavras
e na rua do meu peito
movem-se por sílabas
as artérias do teu nome.
e rua em rua, eu volto logo da sua pra minha
e pergunto pra Deus, Senhor porque que ela num é minha vizinha?
Eu sei como é que você se cura, se trata, você não chora nem lamenta, você volta pra rua, você vai atrás de todas as mulheres nuas feito um vira-lata, (...) você está me matando dentro de você, e eu morro a quilômetros de distância, a sós comigo mesma, você transa com outra e me mata, você goza e me mata mais um pouco, você dorme e me deixa insone pra sempre, eu sei que não vai ser pra sempre, mas eu não enxergo o dia de amanhã, hoje eu só estou acordada pro eterno desse pesadelo, você era meu, droga, exclusivamente meu até dias atrás, meu como esse sofrimento.
Sou filho de pobre, sem nome de nobre que batalha na rua. Sou filho daquela que se fez Cinderela indo pela madrugada trabalhar em cidade de violência nua e crua. Pois era secretária do lar e de casas ia cuidar para o sustento da sua.
BA - BONECA BORBOLETA
Na quebra do salto da modelo que atravessa a rua, na parada do elevador entre os andares que lhe faz perder a hora, tudo tem um por que lá na frente, um mistério o qual a nos é escondido.
As férias perfeitas, num resort perfeito, curtindo sol, mar, piscina, leitura, consegui isolamento que eu queria com grande sofisticação.
O melhor restaurante japonês que eu já conhecera. Decoração primorosa em cada detalhe. Uma barca maravilhosa, saque, vinho e sucos numa mesa em forma de "u" ao redor das grelhas. Baianas vestidas de japonesas. Apenas casais e eu. Sons. Aromas deliciosos. Mesa coletiva. Que saco! Eu em umas das pernas do "u", na perna oposta um casal uma moça exótica com um rapaz pouco mais velho. A minha frente dois casais nada simpáticos, a minha direita um casal de idosos e na esquerda um casal visível apaixonado, ou senão sem o mínimo de noção pelas demonstrações de carinho em publico, talvez eu seja meio careta ou conservador, mas beijo na boca e certos carinhos, amasso, são bons entre quatro paredes, não em lugar publico e muito menos numa mesa coletiva. Há condutas que são individuais, assim como o bom gosto não é uma questão de dinheiro e sim de bom senso.
Vou de suco e água tônica, apesar de que as bebidas feitas de saque são lindas e tentadoras, mas não sei o porquê uma sensação estranha de mal estar e antipatia me domina.
A moça, exótica, vestia um vestido branco tinha uma borboleta tatuada no pescoço, vestido elegante curto de certa transparência que a deixava com ares sérios, mas sensuais. Um pingente de borboleta. Na pulseira inúmeras borboletas. Reparei nela, pois ela se sobressaia no meio dos turistas, seu acompanhante, também bem vestido, alias, na mesa eram os únicos que conversam em tom baixo, pois os outros faziam questão de falar alto, de mostrarem que estavam de férias, que podiam estar de férias e que ali não era o ambiente deles. Meu Deus, como diria o poeta “a burguesia fede”.
O cozinheiro entra no "u", show na manipulação da espátula e faca.
Aplausos...
O cozinheiro fazia verdadeiras acrobacias com o alimento um show digno de ser apreciado. Eu escolho um prato de polvo com camarões e legumes, tudo banhado no molho especial de soja, que segundo o cozinheiro é uma receita especial da casa.
A postura da borboleta branca com classe sem igual manipula os hashi com classe, num pensamento maldoso chego até desejar que caísse algo na roupa dela impecavelmente branca.
Apesar da comida excelente como pouco, a garçonete me pergunta se passo bem, afinal da porção generosa se camarões e polvo, mal toquei na comida, sinto o rosto a arder, quero mais ir embora para o quarto, quero dormir.
A roupa da borboleta me incomodava, o barulho das espátulas me incomodava tudo ao meu redor era meio que uma explosão de calor, brilhos e sons.
Saio antes das sobremesas, peço água e tento respirar, molho a cabeça em uma fonte, a brisa da noite me dá uma pausa no meu mal-estar.
No hall do restaurante a esperar a condução que levara para meu setor no hotel, todos passam por mim e me olham ou apenas me veem? Mas a borboleta e seu companheiro vêm conversar comigo.
Eles mostram uma evidente preocupação, devo estar com aspecto horrível, cabelos molhados, camisa molhada.
Explico que estou com o rosto pegando fogo, olhos e garganta ardendo muito, tudo me incomodando. Ela e seu acompanhante pedem licença e rapidamente me examinam.
Diagnostico reação alérgica.
Seria a comida?
Seria algo ingerido no Happy Hours?
Eles educadamente falam que são médicos em São Paulo e que estão comemorando o aniversario de casamento deles no resort. Tentam ser visivelmente agradáveis.
No caminho para o meu setor do resort, calafrios, eu estou no bloco seis, eles num chalé no mesmo conjunto que o meu. Em todo o percurso, eles são atenciosos, conversam e perguntam como eu estou. Conversas e perguntas.
O pequeno percurso do bloco onde estávamos até o nosso setor durou uma eternidade.
Finalmente chegamos ao nosso setor, eles perguntam se eu tenho alguma medicação, respondo que nada que um chá de boldo e cama não resolva. Eles oferecem levar um anti-histamínico para mim no bar do hotel.
Nessa altura do campeonato aceito sem muito pensar quero me livrar do mal estar, da sensação de ressecamento de tudo mais, da angustia de querer respirar e ter a dificuldade.
Ela ficou comigo no bar e ele foi à busca do medicamento.
A Borboleta branca me fazia tomar pequenos goles de água, com um lenço que não sei de onde saiu umedecia minha testa e face, com uma delicadeza de tamanho sem igual tentava me distrair, perguntava coisas de minha vida assim como contava coisas de sua vida, conversa fácil, conversa sem compromisso, apenas para matar o tempo de espera.
Nasceu no interior de são Paulo, aos sete uma descoberta, aos dezessete mudara para a capital aos vinte e sete virara Borboleta.
Sete se descobriu?
Aos catorze perdeu a virgindade.
Aos vinte e um numa cirurgia plástica conhecera o marido.
Aos vinte e oito casara.
Agora luta para adotar um filho.
Em poucas palavras um resumo de sua vida. Eu achei que ela contava para mim os fatos como se tivesse decorado tudo para um exame oral. Ouvia, nada comentava, alias não demonstrava nada a respeito, a dificuldade respiratória e o mal estar eram tanto que a cena mais parecia cena de um filme antigo.
O marido finalmente chega injeção de anti-histamínico. Mais uns comprimidos. Ele pediu para ela contasse a sua história com calma. O que teria motivado ele a fazer tal pedido, incrível como a minha respiração havia melhorado.
Ela nasceu no interior de São Paulo, a mãe foi abandonada pelo pai que batia nela mesmo ela estando grávida, deu a luz a um belo menino, sozinha em casa. Foi sozinha como o bebe no colo para registra-lo.
No cartório a mãe entra com o recém-nascido enrolado em roupas rosa, registra-o com nome de menina. Batiza-o com nome de menina.
“Nasci homem, mas tenho todos os meus documentos o nome de mulher!”
Então ela nasceu menino! Procurei automaticamente sinais da “masculinidade” dela, nada.
“A minha mãe, que hoje a diagnostico de esquizofrênica, me vestia de menina.”
As pausas talvez fosse um pouco longas, como se buscasse fatos ou palavras num contexto perdido.
“Ensinou-me a fazer xixi sentada, a usar fita no cabelo, com sete anos sabia todos os afazeres do lar. Fazia fuxico, tricô, crochê, ponto cruz, não podia brincar rua, moçinha direita não brinca na rua. Óleo de amêndoa no cotovelo e pés.”
“Aos sete vou para a escola, passei o grande horror da minha vida.”
“Lembro-me exatamente o dia que eu estava no banheiro e uma amiguinha entrou no reservado, coisas de meninas, creio eu, ela mostrou sua bolsinha e eu mostrei a minha bolsinha que era diferente da bolsinha dela. Ela saiu gritando: Menino tem um menino no banheiro das meninas, eu era tão tola que sai ergui a minha roupa e corri também do banheiro, (risos) afinal um menino não poderia jamais ver uma menina nua era pecado mortal e os condenaria ao inferno e ela jamais acharia um príncipe como marido, acharia apenas sapos. Saio correndo gritando também a servente entrando no banheiro esbarra comigo.”
“Não foi achado nenhum menino, a amiguinha rapidamente falou para escola toda que eu era menino, ou melhor, falou que era menina com pinto.”
“No outro dia na escola durante o recreio, meninos e meninas estavam fazendo gozação e brincadeiras maldosas comigo, na época não era bulling, ou era, mas não se usava o termo. Quando me seguram e erguem minha saia e abaixam minha calcinha de renda, chorando falei que eu tinha uma “bonequinha” como toda menina no meio das pernas. Eles riam, me jogaram no chão, ergui minha calcinha, arrumei a minha roupa, limpei o meu rosto, peguei a lancheira e sai espancando todos ao redor, não sabia o porquê eles faziam tal brincadeira de mau gosto comigo, eu uma menina tão devota a virgem Maria. Foi um caos geral, tirei sangue de meninas e meninos, usei minha lancheira como arma, eu chutei, eu dei soco e mordida, virei onça, a servente mal conseguia me segurar.”
“As mães foram chamada na escola. Perguntaram se eu sabia a diferença entre meninos e meninas, na hora eu falei meninos tem pênis que machuca as mulheres e fazem nenês nela, minha mãe sempre falava isso para mim, lembro que ainda completei que era algo grande e duro e as mulheres tem algo pequeno e macio entre as pernas uma bonequinha chamada de vagina.”
“Isso eu falei na frente da diretora, psicóloga eu acho, medico da escola e alguns pais e minha mãe, minha mãe mostrava indiguinação, as outras mães que já haviam falado com os filhos afirmavam que eu era menino. Solução: Mostrar para um médico que eu era menina ou menino. Todos saíram da sala, apenas o medico, a diretora, minha mãe e eu. Com vergonha sem olhar para lugar algum desabotoo minha saia, deixo-a cair, e abaixo minha calcinha...”.
“Para minha surpresa eu não era menina...”.
“O medico mal fala que eu era menino e minha mãe tentou matar o medico, ela sai de onde estava com uma cadeira eu acho e acerta o medico deixando ele caído no chão, à diretora sai correndo gritando para o corredor, minha mãe numa agilidade que eu desconhecia tranca a porta. Coloca-me encima da mesa, até hoje ainda não sei o que ela tinha na mão, mas acho que era uma Gilette, ela iria amputar meu pênis, ali na mesa. Nisso o medico a segura, a porta é arrombada, foi algo inimaginável, cena de filme de terror.”
“Varias pessoas tentando segurar minha mãe, até que por fim ela foi contida, ou sedada, eu estava em cima da mesa, seminua e apenas chorava. Não gritava, não emita som, apenas chorava muda, eu era menino? Naquele dia arquitetei minha morte.”
“Enquanto levavam minha mãe, alguém arrumou minha saia plissada azul marinha e minha blusa branca, meias e sapatos pretos e o arco na cabeça. Enquanto perguntavam entre si o que iam fazer comigo, levantei peguei uma lamina de barbear e fiz apenas o que me restava a fazer cortei os pulsos.”
“Desmaiei, pela dor ou pelo sangue não sei, nem sei quando tempo fiquei sedada e amarrada num leito de hospital. Lembro perfeitamente do dia que fui levada do hospital pelo medico que tratava de mim para outra cidade. Na porta de uma casa com aspecto de escura uma velha vestindo cinza, minha avó, que mais tarde viria saber que ela era católica puritana moralista e ao seu lado uma senhora, minha tia, mais tarde também saberia que era carola com alucinações religiosas, a esquizofrenia estava em meus genes.”
“Eu, uma menina de sete anos, tive a cabeça raspada, um surra de espada de São Jorge, pois a partir daquele momento eu era menino.”
“Foi mandada para aula de futebol, esporte de macho. Ganhei roupas masculinas, carrinho e bola de capotão, era obrigada a correr descalça pela rua. Rezar o terço de joelhos no milho ou feijão para pagar meus pecados. Se cruzava a perna... apanhava, se sentava na privada... apanhava, se fazia biquinho... apanhava, se tirava a mesa... apanhava, se cantarolava... apanhava também... Obrigada, tapa na boca até sair sangue.”
“Também foi mandado para judô, para bater quem o chamasse de viado, mas sozinho em casa coloca a cueca no rego, vestia a roupa da tia carola sonhava com o príncipe encantado.”
“Trabalhava de tudo, auxiliar de pedreiro, entregador de pão e até engraxate, tudo que pudesse me fazer mais homem, enquanto isso eu estudava muito e minha avó e o padre tentavam mudar o meu nome nos registros. Aos dez foi colocado para trabalhar na farmácia que ficava na esquina da nossa casa, lugar melhor do que uma farmácia não pode existir para mim, tomei neovlar, microvlar, lia bula atrás de estrógeno e atrás de progesterona, tinha esperança do erro de Deus consertar, tinha esperança de não ter pelos na face, de não ter a voz grossa e que eu tinha no meio das pernas desaparecesse.”
“Aos catorze anos, exatamente no dia do meu aniversário, morreu minha avó, minha tinha beata me manda para um colégio católico para ser de Deus, meus traços na época eram mais de meninas do que de meninos, quem me levou para o colégio foi o padre amigo da família, numa parada num hotel de posto de gasolina para uma sesta, se a lenda fosse real eu seria mula-sem-cabeça,... Tudo acontecia e apesar da dor vinha na cabeça a musica Geni do Chico. Ele me deu duas opções ir para o colégio ou fugir para São Paulo enquanto ele dormia.”
“Fugi para são Paulo, conheci Letícias, Micheles e mais um monte de bonecas... como conheci as damas da noite, os drogados e michês e toda a população noturna que habita uma cidade grande. A vida noturna tem outras cores e outros ares.”
“Tentei trabalhar honestamente, não como mulher nem como travesti, afinal não sabia o que eu era ainda. O mundo da muitas voltas e acabei após passar fome e até roubar arrumar um emprego como faxineiro num hospital, trabalho noturno. De dia faxina casas, com o pouco de dinheiro que conseguia um bordadinho, um tricô, um crochê, um remendo, minhas clientes o povo da noite e o povo do hospital. Assim conheci Dra, foi uma das medicas que me tratou na minha infância na minha tentativa de me matar, ela me reconheceu, contei minha historia a ela, acabei indo morar na casa dela”.
“Morando na casa da Dra, fui para a terapia, voltei a estudar e muito, descobri que eu nasci ovo, que a rejeição da minha mãe pelo meu pai estampava em mim, que a doença que a minha mãe tinha apenas me ajudou a romper a casca e nasci pela segunda vez, à primeira vez nasci de um útero e a segunda eu renasci quando me descobri homem. Cresci com a sensibilidade feminina, nesse período de crescimento eu absorvi tudo, aprendi as lições de ser homem, como aprendi as lições de ser mulher. Agora era a hora da escolha do ser na vida e assumir uma posição.”
“Aos vinte e um anos eu fiz a minha operação, cortei a Cruz mais pesada de minha vida.”
“Sai do país com passaporte de mulher, com nome de mulher com um corpo andrógino devido aos hormônios, segura do que eu iria fazer ao meu lado a minha mãe de coração, a Doutora”.
“Voltei para o Brasil e a primeira coisa que fiz foi procurar minha mãe biológica, uma sombra do que ela foi ela era, entrei no seu quarto ela sedada, uma morta e viva, demorou a me reconhecer, catorze anos se passaram desde que eu a vi pela ultima vez.”
“Choro, lagrimas, ela palpa meus poucos seios e no vão de minhas pernas que ainda está dolorido, chorando ela falava que estava certa. Soube uma semana depois que ela tinha morrido.”
“Terminei minha faculdade, me especializei em psiquiatria.”
“Anos se passaram, resolvi fazer uma plástica e nesta conheci o meu amor. Trabalhamos no mesmo hospital, eu nunca reparei nele até o dia que eu fui ao consultório particular dele, fiz minha cirurgia. Um dia sem mais nem menos nos encontramos no refeitório do hospital. Conversa vem e vai e estamos juntos até hoje.”
“Agora que sou borboleta completa faz anos que luto na justiça para adotar um filho, ninguém entende que o ovo morreu, a lagarta morreu a crisálida rompeu e que posso ter uma família feliz me falta apenas um filho.”
“O destino me ajudou a ser o que sou, mas a lei impede o sonho de se realizar, quero acreditar que tudo no final dará certo, como tudo deu ate agora!”
Ela me contou toda a sua história, sem mexer no cabelo, sentada com postura correta tomando “Blood Mary” e eu chá de boldo, o marido quieto fumando um charuto. Às vezes quando ela falava da lagarta seus olhos enchiam de lagrima e só então repara na mão um pouco maior que o normal ou seria esta a minha impressão?
Ela se desculpou.
O marido se desculpou.
Eu estava muito sono, mas com a cabeça fervilhando, por que ela me contara a sua história?
Na saída do bar ele me pergunta:
Qual ano de sete em que você nasceu?
Ela sorri para ele e diz além dos sete ao seu redor, ele tem com ele um Erê que me trará um curumim... E partiu para a direção de seu chalé.
André Zanarella 07-09-2012
(Escrito em vários papeis meio atordoado. Tentando ser fiel o que a mim foi narrado.).
http://www.recantodasletras.com.br/contos/4442736