Poesia Completa e Prosa

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Iniciação

Infalível, dia após dia
mergulhas no mar das trevas
decúbito na cama esquife
entre lençóis mortalha.
O cansaço te prostra
e arrasta pelas sendas
abissais do nada.
Em parêntesis de tempo
sonhos irrompem tênues
devolvendo-te do mundo
quebra-cabeças e farelos.
Firme instala-se o hábito
da ausência e da renúncia:
vais ensaiando a morte,
última exigência do corpo,
em teu colchão de espuma

Navio-esquife

Correm as águas do rio
Corre veloz o navio
Entre as faces do vento
Entre as faces do tempo
Corremos nós.
Ao abraço de que foz
Viajam as águas
Viajamos nós?
Árvores nas margens
Céleres passam
Sob remansos de céu
Onde se apaga o sol.
Eis que longe o porto acende seu colar de luzes:
Grinalda para os mortos
Que no navio-esquife
Ante-somos todos.

Tragediazinha

Cansou-se da eterna espera
o morno amor chove-não-molha
e retirou seu cavalinho
da chuva peneirando lá fora.
Casou-se com a igreja
o fogão a máquina de costura
e recheou os frios dias
de tríduos e novenas
biscoitos bolos rendas.
Mas na calada da noite
no recato escuro
ainda embala o velho sonho
de um amor absoluto.

Sonho interrompido

É como um sonho impossível
Que está se realizando
Me sinto cada vez mais sensível
Com essa mudança de planos
Estava tudo programado
Data, hora e lugar marcado
Mas esse "serzinho", causou muitos danos.

Eu sonhei com aquele dia
Em que veria seu sorriso
Pensei até na poesia
Que eu faria de improviso
Mas um "serzinho" insensível
Microscópico e invisível
Causou um enorme prejuízo.

Preparei meu melhor abraço
Para entregar todo à você
E assim teria feito
Se fosse do meu querer
Mas as portas se fecharam
E os sorrisos se calaram
Tudo por conta desse ser.

Mas aprendemos que não importa
Se é homem ou mulher
Se é rico ou se é pobre
Ou a cor que tu tiver
Esse "serzinho" tremendo
Mostrou que mesmo pequeno sendo
Não é um "serzinho" qualquer.

Caixa

Carregamos pela vida afora
os cheiros dos encontros raros,
dos acontecimentos,
da nossa primeira casa,
do quintal, se houve quintal,
da mãe na cozinha,
dos sonhos quando acordamos.
Se houvesse uma caixa
para guardá-los, seriam
nosso tesouro.

E então, em dias de saudade,
abriríamos nossa caixa
e mergulharíamos
como num túnel do tempo.

Das sete faces do desprezo
A Carlos Drummond de Andrade

Quando eu nasci, não teve sequer um anjo torto
Que me dissesse que a vida não é
Tão fácil o quanto parece ser
Disse: Vai, Valter, ser baiano na vida.

Ladeiras faz bem ao coração
Jovens apaixonados na esquina
Dizendo que não se apega a ninguém.
A tarde de puro sol, o perigo
É imprevisível mesmo que o dia
Seja azul.

O ser vestido de uniforme
Vai trabalhar no ônibus lotado
Sequer sabe se vai ser assaltado,
Acha que tem muitos amigos
No fim de semana.
O ser vestido de uniforme,
Mal sabe quando vai quebrar a cara.

Meu Deus, que sociedade de muita fé,
Que muito chama pelo Senhor,
Pessoas de muita fé e pouco amor.

Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Carlos,
Eu seria outro poeta (?)
Nesse mundo vasto
Que maltrata meu coração.
Mundo mundo vasto mundo
Chega de ilusão?

Eu bem que vou dizer,
Esse mundo cheio de gente eu solitário
Em meu ego e vaidade
Vou me afogando
Sem sequer um abraço!

Valter Bitencourt Júnior
LiteraLivre, São Paulo, v. 4, n. 21, p. 215, mai./jun. 2020.

⁠Amor Eterno de Alexsandra

Surgiste na minha vida
Trouxe consigo teu puro amor
Curou minha ferida
Acalentou a minha dor

O que senti foi algo raro
Quando minha mão, sua mão tocou
E por isso eu nunca paro
De mostrar como meu coração te amou

Teu sorriso me faz tão bem
Que você nem imagina
Vejo na tua face que ainda tem
Teus sonhos doces de menina

Linda és tu como a flor do campo
E teu olhar brilha como o sol
Eu sei bem como te amo tanto
Tu és meu jardim de girassol

Tudo em você é tão perfeito
Desde a mente ao coração
Não vejo nada de defeito
Teu abraço me dá proteção

E por isso o que aqui escrevo
Veio do fundo da minha alma
Nosso amor que aqui descrevo
É como um toque palma à palma

E por ti minha mente sonha
Me tira do pesadelo
É o sono da minha insônia
E o acorde do violoncelo

Vamos comigo dançar ciranda
Girar na chuva e molhar os pés
Correr na areia contra as marés
Amor eterno de Alexsandra

Autor : Wélerson Recalcatti

⁠Uma coisa é pegar frases prontas, versáteis e rimá-las, falando sobre o que não entende numa sinfonia.
Outra coisa é transformar sentimentos enraizados, pensamentos bagunçados, numa bela poesia...
Na primeira nos encantamos pela brincadeira com as palavras, ficamos na beira com as ondas nos nossos pés a tocar.
Já na segunda mergulhamos a fundo, adentramos no oculto e podemos sentir o que o escritor sentia e queria nos passar...

⁠Eu tava pensando em acabar com tudo.
Porque eu percebi que não tinho o menor controle sob a minha vida, e que num piscar de olhos tudo mudou. Eu mudei.
Percebi que, coisas que eu achava que faziam sentido na verdade não faziam.
Coisas que eu considerava importantes, na verdade eram idiotas.
Pessoas que eu achava que sempre estariam comigo, me deixaram. E pessoas que eu achava que me deixariam uma hora ou outra, no fim, ficaram ao meu lado.
De tanto falarem que eu não tinha coração, eu acredite..., mas sabe, percebi que eu tenho um e que na realidade é enorme.
Falaram que eu não tenho sentimentos ou qualquer tipo de afeto, mas na verdade o que eu tinha era medo. Tinha medo de amar de novo e me machucar mais uma vez, eu tinha medo de sofrer...
Porque quanto mais pessoas entram no seu coração mais pessoas podem sair dele.
Eu entendi que sou muito do diferente do que pensam e falam.
Eu estava vivendo numa prisão sem grades, que eu mesma permiti.
Porque eu me juguei; me culpei; me condenei; me escondi... e por muito pouco, não me destruí.
Percebi que eu me amo e outras pessoas me amam também.
Porque eu sou maravilhosa. Sou linda. Sou louca. Sou eu. Eu sou a melhor versão de mim mesma agora. Eu sou Cecilha Beatriz.

⁠Granada: humilde elegia
Tua elegia, Granada, a dizem as estrelas
Que furam desde o céu, teu negro coração.
A diz o horizonte perdido de tua vega,
A repete solene a hera que se entrega
À muda carícia da velha torre.
Tua elegia, Granada, é silêncio enferrujado,
Um silêncio já morto de sonhar.
Ao se quebrar o encanto, tuas veias sangraram
O aroma imortal que os rios levaram
Em borbulhas de pranto ao mar sonoro.
O silêncio da água é como um pó velho
Que cobre tuas ameias, teus bosques, teus jardins,
Água morta que é sangue de tuas torres feridas,
Água que é toda a alma de mil névoas fundidas,
Que transforma as pedras em lírios e jasmins.
Hoje, Granada, te elevas já morta para sempre
Em túmulo de neve e mortalha de sol
Esqueleto gigante de sultana gloriosa
Devorado por florestas de louros e rosas
Diante de quem vela e chora o poeta espanhol.
Hoje, Granada, te elevas guardada por ciprestes
(Chamas petrificadas de tua velha paixão)
Partiu já de teu seio o laranjal de ouro,
A palmeira extasiada do tesouro África,
Sobra somente a neve da água e sua canção.
Tuas torres são já sombras. Cinzas teus granitos
Pois te destrói o tempo. A civilização
Põe sobre teu ventre sagrado sua cabeça
E esse ventre que esteve grávido de ferocidade,
Hoje ainda que morto, se opõe à profanação,
Tu, que antigamente tiveste as avalanches de rosas,
Tropas de guerreiros com bandeiras ao vento,
Minaretes de mármore com turbantes de seda,
Colmeias musicais entre as avenidas
E lagoas como esfinges da água ao céu
Tu, que antigamente tiveste mananciais de aroma
Onde beberam reais caravanas de gente
Que te ofertavam o âmbar em troca da prata
Em cujas margens tingidas de escarlate
As viram com assombro os olhos do Oriente.
Tu, cidade do devaneio e da lua cheia,
Que alojaste paixões gigantescas de amor,
Hoje já morta, repousas sobre rubras colinas
Tendo entre as velhas heras de tuas ruínas
O sotaque dolorido do doce rouxinol .
O que se foi de seus muros para sempre, Granada?
Foi o perfume potente de tua raça encantada
Que deixando correntes de névoa te deixou:
Ou a tua tristeza é tristeza nativa
E desde que nasceste ainda segues pensativa
Enredando tuas torres com o tempo que passou?
Hoje, cidade melancólica do cipreste e da água,
Em tuas heras antigas se detém a minha voz.
Afunde tuas torres!
Afunde tua velha Alhambra
Que já murchinha e quebrada no monte se queixa,
Querendo desfolhar-se como flor de mármore.
Invadem com a sombra maciça os teus ambientes!
Esquecem a raça viril que te formou!
E hoje que o homem profana o teu encanto sepulcral,
Quero que entre tuas ruínas adormeça o meu canto
Como um pássaro ferido por um caçador astral
Tradução de Mª Clara M.

⁠Ignomínia sorrateira, tua alma carniceira não padece ao clamor. Teu pranto incessante é de todos, o de menos valor.
Teu olhar displicente há de entusiasmar àqueles que fizeste sofrer. Teu rombo em cada peito, há de te fazer temer os reles que te volto a dizer, fizeste sofrer.
Mas não sabias, não podias contigo mesma. Ignomínia sorrateira, tua mente tão ligeira a te entristecer.
Volte logo aos braços do inferno, a estrada é longa, e o caminho, como tu, é perverso. A chama que te arde os olhos, clareia os sentidos de teus ditos servos, agora postos como o ouro, a iluminar teu martírio, libertos.
Pague agora pelos crimes que, por tamanha ignorância, jamais imaginara poder cometer.

⁠Do que me adianta a boêmia dos domingos de verão, se o álcool perdeu seu efeito quando eu me perdi de mim?
Do que me adianta a química a abrasar minhas entranhas, se a vida por conta própria tornou-se uma distópica alucinação em carmim?
Do que me adianta a fumaça, o trago, a catástrofe, se meus pulmões insistem em resistir a este fim?
Do que me adianta a retalhação da derme, se eu sei que a vida vai cicatrizar e mais uma vez me matar ao fim?
Do que me adianta a fuga, se até o valhacouto atirou suas culposas paredes, em pura fúria, contra mim?
Agora à procura de redenção, eu prometo e ponho assim minha honra em jogo. Prometo não mais ser feliz, se isso custa o ar de quem antes dissera ficar, mas nunca me contara sobre sua incapacidade de respirar. Prometo não mais amar, se isso custa o conforto de quem antes jurara não se incomodar. Eu, tolo pássaro, sei que nunca poderia voar, mas ainda assim quatro vezes quebrei minhas asas ao tentar, e há uma única coisa que não posso prometer, algo que não me atrevo a jurar, não posso dizer que por uma quinta vez, não voltarei a quebrar.

⁠Filisofia barata

organizar as ideias
em ordem alfabética
e arrumar na estante
para quando precisar

essa a prioridade
do homem que sonha
do indivíduo que escreve
que faz poesia

imaginar o que sente
o eletricista
adivinhar o que pensa
o carteiro
divagar sobre morte e vida

arriscar a sorte na loteria
pagar a conta de luz
(mesmo sem energia)
dez por cento para jesus

oferta canalha
promessa vazia

O⁠ Amor e o Tempo

O tempo passa vagarosamente
As horas passam e eu perco o rumo
Passeando por minhas lembranças eu entendo
Você jamais saiu dos meus pensamentos

Penso no amor que poderíamos ter vivido
Se tivéssemos coragem
Se conseguíssemos demonstrar
Seria um felizes para sempre?

Se… há, tudo passou
O que sentimos nunca foi dito
Mas ainda penso com carinho
No que poderíamos ter vivido

A verdade é que no fundo
Eu sempre estarei cultivando
Esse belo amor platônico
Que guardarei só para mim

⁠Por acaso, um mero acaso, um ajuntamento promovido pelo caos cósmico, nos encontramos
E por outra vez você passa à porta, por conta dessa insensata sina ou dependência emocional
Todos são assim, com palavras e olhares, e referências sensitivas e culturais
E toda a história se desenrola e como ainda em tudo é humana, corresponde ao chamado
E os minutos comem os dias e as horas todas, e nos regozijamos de todo o nosso ser
E já não pedem, já não apenas querem, precisam
E o feitiço, como soe aos incautos, virou-se contra si mesmo
E sílaba após sílaba
Mão a mão
Cheiro e gosto
E vislumbre após vislumbre
O que era um flerte transformou-se, em última instância, em química psíquica, e tudo se transformou numa substância que era necessária à sua subsistência.
Daí por diante, vieram todas as consequências de mais que uma paixão, um metabolismo cru, molecular, que atingiu toda a fisiologia, indo até o comportamental.
Cria-se um mito, uma divindade, uma instituição, um universo desejado, uma utopia confessam, uma pulsação nuclear.
Não era mais nada deste mundo, era do seu, só seu, embora nem você soubesse.
E um encontro verteu em uma obsessão inglória, um ciclo vital da conjunção carnal ao choro umbilical, e segundos depois aos trôpegos passos e às dúvidas adolescentes, e fase após fase a imensidão do instante se propaga.
Tudo humano, tudo visceral, todo desejo, tudo milenar e animal.
E dias após, você desperta.
E a vida segue
E eu fico.

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Dona de quê
Se na paisagem onde se projectam
Pequenas asas deslumbrantes folhas
Nem eu me projectei

Se os versos apressados
Me nascem sempre urgentes:
Trabalhos de permeio refeições
Doendo a consciência inusitada

Dona de mim nem sou
Se sintaxes trocadas
O mais das vezes nem minha intenção
Se sentidos diversos ocultados
Nem do oculto nascem
(poética do Hades quem me dera!)

Dona de nada senhora nem
De mim: imitações de medo
Os meus infernos

Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.

SONETO SAUDOSO

Choro, ao pé do leito da saudade
Que invade o corpo sem descanso
Se fazendo de fiel cordeiro manso
E a agrura numa brutal velocidade

E vem me trazer recordações, afeto
Tão apetecida em tempos outrora
Agora na ausência, lerda é a hora
E cruel a minha emoção sem teto

Chorei, choro por esta separação
Neste fado dessa longa despedida
Que partiu a vida daquela posição

Se eu, tenho na sorte malferidos
Aqui sinceramente peço perdão
Movidos nos desfastios vividos

© Luciano Spagnol – poeta do cerrado
06/04/2016, 21'00" – Cerrado goiano

O cerrado pede socorro

O cerrado é árido é dissonante numa certa harmonia
Te engole os olhos com a boca ávida de melancolia

O cerrado é plano por todo lado, torto e desencontrado
Neste desajeito pedregoso, espinhado, o êxtase é espetado

Cerrado ao longe provoca ilusão, maravilha o sol e escorre o calor
Tuas árvores e teu desencanto trás encanto e é sedutor

Cerrado de vasqueira água, fica deitado no lençol aquífero
Nestes poros transbordam renascimento e galhos frutíferos

Cerrado espesso, pele grossa e contradição
O homem e sua cruel mão, pinta na terra a tela da devastação

Destes campos velhorro
O cerrado pede socorro!

Cerrado não é cidade
É patrimônio da humanidade.

© Luciano Spagnol – poeta do cerrado
08/042016 – Cerrado goiano