Coleção pessoal de Sydor

21 - 40 do total de 29 pensamentos na coleção de Sydor

lagarta e borboleta

vontade de pedir perdão
estender os olhos
até onde meus pecados alcançaram
e curvar-me pelos erros.
sem penitência, só o perdão
puro, simples, humílimo.
perdão para o futuro
espaço em que ainda dançarão
animadas,
sedutoras,
malvistas,
minhas imperfeições
na primeira hora os erros se anunciam
os insisto
deixo-os que pulem
transformem-se em ação
estragos previstos
e os outros.
humana, pobre e fraca, humana.
honesta, abro a cortina das deformidades.
pouco sobra de mim
remanesce figura frágil,
simplória,
quase nada.
meu pior se faz em força
que domo para transformar
e validar a existência.
tarefa difícil
trabalho constante
espelho nos olhos,
defeitos cintilantes
tentativa de metamorfose
lagarta e borboleta.
mas esse meu olhar
e esse meu pesar,
(a besta-fera que vive apesar de)
não redime as culpas.
saber não basta
lutar não é suficiente.
a tortura dos próprios tribunais…
irrelevância, irrelevâncias.
vontade de perdão.
um perdão geral,
um perdão eterno,
um perdão sem muros.
perdão-libertação.
a absolvição fugiu de mim.
ninguém,
nem os mortos nem os feridos,
ninguém me acaba
ou me atormenta.
calmaria é travesseiro.
preciso do outro.
indulto alheio
fragilidade na mobília.
em noites frias,
o inferno é mais quente.

perpetuum móbile – porque nenhum amor acaba

os amantes se separam, se vão. somem no tempo e no espaço. mas nenhum amor acaba.
os amores sempre continuam e continuam sempre. o amante vai e o amor fica num objeto da sala, no cheiro de um livro, na cor do dia, numa palavra, num sotaque, na fumaça do cigarro – não há lugar em que o amor passado viva mais que na fumaça do cigarro; no primeiro gole, talvez.
a lembrança do amor é o próprio amor. e se ela vive aqui e ali, é só porque o amor também vive.
há mais amor na coleção de não-amor do que em qualquer outro lugar.
o amor do passado, que vive no presente e que talvez se junte a outros ainda, não é do tipo que faz mal, que move montanhas ou que desassossega a alma. ele só está por ali, por aqui, a pairar feito Gasparzinho. a contar um pouquinho sobre a vida que tivemos, lembrança não autorizada da própria biografia.
o amor do passado às vezes provoca curiosidades: uma espiadinha na vida, uma vontade de saber, um relato de episódio, recorte de momentos...
sempre que alguém vai embora, deixa um pouco de si no outro. e esse deixar é o amor que continua sempre e sempre continua e faz parte da gente como todas as outras coisas.
amor é moto-contínuo.

tenho medo do passado. medo que mostre que eu já não sou eu mesma ou, ao contrário, que me revele que eu ainda sou a mesma.

de vez em quando meu passado vem me visitar. chega, bate à porta, nem espera resposta e entra. não diz a que veio, mas me revira, chacoalha, joga pro alto e espera que, como gata, eu caia em pé.

o outono está no fim. caíram as folhas, os cabelos, as saias. logo o ar impassível desabará sobre nós e o vento cortante rasgará nossas fibras. as lãs sairão dos armários e os jeans se misturarão a botas, luvas e capas. as gentes esconderão o corpo, às vezes com elegância e dignidade, às vezes com extravagância e agrura.

não me importa que a chuva caia lá fora e que eu precise de capa, galochas e cachecol para enfrentar o mundo. o calendário avisa que num instantinho será verão. a notícia me anima.

blim blom
namorar é um jeito de transbordar. é derrubar por cima do copo, por baixo da roupa, por dentro do corpo as práticas do amor.
o namoro tem caprichos, urgências, desejos, eternidades. tem as temperaturas do verão dentro do quarto e os arrepios dos pelos em pico no beijo de despedida.
há mimos, caminhos, nuances, histórias e confissões. os dedos dos últimos românticos se entrelaçam em loucuras.
o namoro conhece todas as peças do jogo. às vezes finge que não é. às vezes finge que é. e sabe que só acontece de verdade em salivas e suores, olhares e juras, futuro e caminho.
namorar é distrair, perder a hora, largar o compromisso e não ter vontade de ir embora. é mais, é o enfeite da vida, é tudo no agora.

tenho a impressão de que tudo que escorre para o papel é uma espécie de resquício de mim, um resto, vestígio de alguma dor ou alegria que finjo. mas, definitivamente, só finjo aquilo que sinto. talvez as palavras sejam como lágrimas. gotas que não são boas ou ruins, mas que são boas ou ruins. o eterno exercício da comunicação, a tentativa sem fim de dizer o que não é pra ser dito, todas as emoções a pular, se jogando, suicidas, e se espatifando no teclado.

talvez a minha irresponsável perda de tempo com a escrita esteja a visitar estrelas, altura astronômica. não importa, insisto.
na escrita que aprendi a conversar, ouvir, ver. acho que é por causa dessa narrativa constante que fica se formando na cabeça para explodir em desabafo de letras é que a alma não atrofia e consigo perceber os instantes longe da catarse.