Coleção pessoal de SilvioFagno

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⁠O Colecionador de Quases —

Há,
pelo menos, uma década,
sou movido por súbitas
e aterrorizantes
emoções. — pontudas velhas conhecidas.

Olho tudo e todos, e todos me parecem tudo, e eu: um quase. — um quase o quê?
Nem isso nem aquilo nem nada. — quase alguma coisa qualquer, apenas com começo, ainda sem registro: acontecendo por acontecer.

O que todos eles veem que eu não vejo?
É tudo um jogo?
Eu não quero jogar!

Eu não sou um nem outro nem nada.
Sou sempre um quase.
Estou, quase sempre, por um
quase... o quê? isto! — qualquer coisa —
mas nem nada sou.
E só. — sozinho comigo (embora
tenha um tanto, um bocado).

Fui até o balcão dos sonhos e pedi um.
Deram-me um sonho, mas era dia,
e eu não tinha sono.
E quando era noite, e eu só
tinha sono e sonhava, matava-o ao acordar: era, de novo, o quase.

E como era sempre mais confortável
(ainda quando pesadelo),
o sonho da noite da hora
que se dorme no sono
da infância, eu sonhava
infantilmente infinito.

O sonho do dia (acordado),
é adulto, é real, desestimulante:
come, bebe, fica doente, sangra, presencia violência, catástrofes, covardia. — é a realidade!
E ela é cruel, é na carne, machuca.
Eu não sei sonha-lá sem que me precipite no vazio, no desânimo.
O realizar-se, o realizar-se me
consome, esgota-me.

Deixe-me com o sonho do sono da noite da minha infância (ainda que perdida).
Deixe-me dormir nela e continuar a sonha-lá e (quase), sê-la, para continuar
quase sendo ou sendo quase...
sei lá o quê — alguma coisa.

É esse medo. Sim, é esse medo.
É esse maldito medo do que o Tempo faz com a gente quando não nos distraímos o suficiente.
Despertos, Ele nos dá a realidade.
Sim, a realidade. Somente a realidade.
Meu Deus!

"Ontem, aqui em casa, pousou uma esperança", mas o gato — faminto — a comeu.

Entre o tudo e o nada,
eu sou só um colecionador
de quases.

⁠⁠A Terceira Coisa —

O sol cruzava a janela e atingia-me formando
uma sombra na parede atrás.

E, enquanto o liquidificador fazia a mistura,
eu pensava: o segredo da vida está
nos extremos, nas coisas
opostas... no oposto das coisas que, naturalmente,
se fundem, se unem... completam-se
formando uma terceira coisa — implícita —
(o resultado da inter-relação, o meio de tudo,
o âmago). — o Segredo da Vida.

A escuridão só existe porque
existe a luz.
Só sabemos identificar o bem
porque o mal também existe.
Então, naturalmente, só completamo-nos no outro.

Mas talvez, a mensagem (pela mão do homem), — de há séculos —
do primeiro mandamento tenha sido interpretada
equivocadamente.
Talvez,
"Amar a Deus sobre todas as coisas", seja,
na verdade, amar o outro acima de tudo ou, melhor,
"amar o outro como a nós mesmos",
e é esta a grande mensagem,
tornando assim, enfim, o Amor Mútuo
(a união de todos os amores),
a única e necessária religião
à humanidade.

Pois Deus é o outro e, portanto,
nós mesmos. — portanto, nós todos.

Amem-se! Amemo-nos! Amém!

⁠Mulher-Maravilha —

Hoje, em plena luz do dia, diante dos meus olhos (imprecisos, falhos, comovidos),
eu vi o diabo vestido de Mulher-Maravilha. — e era uma garota.

Meu Deus: eu vi o diabo e ele
estava lindo! — olhos de Capitu;
lábios de rosa desabrochada;
cabelos chamejantes (beija-costas).

Deus que me perdoe, mas eu desejei aquilo.
Confesso que estava meio desconcertado, inibido...
por estar diante de tamanha coisa (pequenina, pulsante
e colossal) — e como o pode?

Aquilo não podia ser coisa divina, pois me puxava para baixo, pelas pernas, por caminhos labirínticos, avermelhados em chamas e desejos.
Eu queria deitar-me naquilo (insensato, sem sono
e sem sonho).

Eu queria entender... (embora, algum traço de resposta eu tivesse,
mas, por medo e proteção, fingia-me tal ausência),
eu queria entender aquela sensação de pequenez
diante daquilo.

O que havia naqueles movimentos de dança,
além dos movimentos de uma dança?
Não era somente o corpo (pernas e braços e tal), que dançava.
Eu vi cabelos e olhos e uma alma (divinamente diabólica),
em perfeita sintonia com todo o resto.

O resultado? Bem, precisei sentar-me.
Contudo, minh'alma (comovida), estava de joelhos como numa prece direcionada àquilo. — não, não era uma força
do mal (embora me tirasse a paz).

E, pensando bem, "Deus" (docemente), também estava ali:
eu O vi! — por um instante, em meio-tom (bemol),
ela virou-se, olhou-me e sorriu.

⁠Suas Madrugadas —

⁠Ela é louca, e há nessa loucura energia suficiente para abastecer
a cidade inteira, mais o coração
de um homem.
(E isso pode ser tão bom
quanto muito ruim).

Mas como tocar o coração de quem a vida, muito cedo, se fez revolta?
Como tocar o coração de um animal feroz, arisco, amedrontado que está sempre em posição de ataque?
Não se sabe por onde começar a atenção, o carinho, o afeto,
antes que ela se revolte com tudo,
com todos (por alguma razão).

Cheguei cedo ou tarde demais?

Mas afinal,
o que ela faz das tardes
e noites?
Das manhãs, em parte, eu sei.
Mas o que ela faz de suas
tardes e noites?
Talvez só tendo suas madrugadas
então saberei o que ela faz
de suas tardes
e noites.
Mas somente com suas
madrugadas e um "cantinho-afeto"
no seu tosco e áspero coração juvenil, tristemente malcuidado.

⁠Uma Quase Revolta Gritada —

As mentes — otimistas — que servem para viver neste mundo caótico e injusto, adaptando-se a ele, não servem
para mudá-lo.

É preciso que haja uma dose crônica de pessimismo, de insatisfação — uma quase revolta gritada — (sem que
se perca o ânimo).

Estar, de certo modo, em paz neste mundo caótico e injusto, é ser parte significativa deste caos, desta injustiça.

⁠Uma Xícara de Café —

Uma xícara de café com (exageradas),
cinco colheres de açúcar, esfria (solitária),
na mesa da sala.
Olho-a com algum desconforto
e demasiado respeito. — é café.

Segundos antes, de súbito, ela precisou abandoná-la ali (com o café
ainda quente, ainda por provar...
querendo, desejando-o).

Ela agora atravessa o corredor,
vai até a sala principal, e volta (ritmada), cruzando os meus olhos de menino pagão, em passos debochados.

Que demora! — quantas pessoas
mais (e más) surgirão ainda
para segurá-la por lá?
Quantos papéis (documentos), ela
precisará dar conta até a
parcial liberdade?
Quantas eternidades cabem
neste instante infinito que
nos separa, ó Tempo?

E então volto os meus olhos para a xícara
de café (agora já frio),
que espera, espera... espera-a,
mas não tanto o quanto eu.

⁠Dezembro dos Nossos Anos —

Sentia algo, como uma estranha sensação, ainda sem nome,
que me vinha, mas eu não a alcançava para,
de alguma forma, significá-la.

Talvez fosse por se tratar de um fim de tarde
em que, em mim, afloram-se todos
os sentimentos e, neste turbilhão
de sensações,
eu invento e reinvento-me,
mas, enfim (menino do que sou),
só sei ser eu.

Talvez fosse porque era um sábado,
e eu havia esquecido de que era
um sábado, e que aos sábados,
nascem e morrem-se instantes
e eternidades.

E penso também que fosse porque estávamos
em dezembro.
E sabendo que os dezembros querem e têm-me
comovido e devoto,
além de me lembrarem os sábados
e os fins de tardes,
cabe aqui dizer (por entrega e ofício) que,
há alguns instantes, eu houvera lido
um conto de Clarice,
que me pós a observar pela última janela
do meu quarto de minha adolescência
(perdida),
o derradeiro e mais sublime raio de sol poente
do fim de tarde de um sábado,
num dezembro distante
dos Nossos Anos.

Eu ainda sinto, e ainda não sei o que sinto, mas aceito.
Afinal, nunca soube, muito bem, explicar a maioria
das coisas que sinto.
Acho que é por isso que as chamo de...
Poesia.

⁠Mundo do Desconhecido —

Eu devo desconhecer completamente
o caminho. — qualquer caminho.
Até o mais óbvio... ora, não é possível!

Eu não sei como chegar quando
nem sei aonde ir.

Minha mente viaja por milhares de quilômetros,
através de séculos, de sonhos,
mas eu não saio do conforto (incômodo)
do meu quarto — que é só um modo seguro
de se morrer (sem se viver),
em paz.

Os quarenta estão logo ali, e a saúde
não anda lá das melhores.

Amores sem amor;
Sonhos que só sonho;
E amanhã é domingo
(de novo).

Tenho tido insônias e pesadelos;
Tenho tido instante raros de alegria
e monstruosos momentos de decepção;
Tenho tido pesadas ressacas
de gente.

Preciso, urgentemente, começar a escrever
e lançar-me ao mundo do desconhecido
(de céu, abismo e chão),
como um escritor que vai morrer,
para que este, então,
não morra.

⁠⁠11h11 —

Ainda estávamos a sós na sala,
esperando o resto das pessoas chegar, quando dividimos uma cadeira,
um violão e uma canção.
Havia uma estranha falta que a pele ali implorava preencher-se em cada esbarrar de mãos e pernas (sob as roupas).
(Também pudera: passara-se alguns dias que não nos víamos), e era nítido a saudade no fitar de olhos e no entusiasmo com que nos procurávamos entre as pessoas que, enfim, ali estavam para o ensaio daquela manhã.

Dera, então, onze e onze, e de repente,
ela olhou-me, deu-me o sinal
e, juntos, sorrimos.
(Sim, sorrimos e ninguém, além
de nós dois ali, entendeu),
e digo que assim foi bonito.

Talvez, naquele instante, estivéssemos num grau — interno — mais elevado que
todo o resto do mundo.

As pessoas, em sua maioria,
quando se fala em
Universo,
pensam logo em algo
grandioso para
fora.
Eu penso em algo grandioso
para dentro.

Há um perigo aí (um perigo
estranho e bom): ela me liga à arte.
E as mulheres que me ligam à arte,
me ganham para a vida.

⁠A Nudez da Alma —

Vamos escancarar o ser humano:
abri-lo com uma faca
cega.
Rasgar suas frias e
falsas carnes.
Falhando, e cortando.
Falhando, e cortando.
Falhando e cortando com força,
com mais força, mais força ainda para compensar a cegueira da faca;
A cegueira da consciência;
A cegueira da raça.
Vamos envergonhar a raça:
mostrar a falsidade, a crueldade,
o cinismo. — nas falas, nos
atos, nos gestos.
Vamos gritar os piores silêncios!
Silenciar os piores gritos!
Desconfiar! Desconfiar!
Desconfiar de tanto!
De tudo!
De todos!
Vamos cortar o básico,
o essencial: deixando-o com todo
o resto que é só vaidade.
Só vaidade, meu Deus!
Vaidade que não se come
nem se bebe.
Vaidade que dá fome
e adoece.
Vamos escancarar o ser
(humano?): abri-lo com uma faca
cega e dar-lhe a vergonha
num espelho limpo,
cristalino.
Dar‐lhe a nudez da alma sob a carne,
inocentando o destino, inocentando a sorte,
o acaso. — inocentando
Deus e o diabo.

⁠⁠Luz de Sol Poente —

Ultimamente,
eu tenho saído de casa para andar.
Chega aquele horário — aquele próximo
ao de fim de tarde — e eu sinto uma necessidade de sair e ir até
o outro lado da cidade para
caminhar — sozinho — sob a
branda luz de sol poente.

Caminho olhando o horizonte
alaranjado (se assim está);
Olhando as pessoas que cruzo
e me passam, sentindo o
vento virgem e comum
de cada instante.

Às vezes,
apresso-me — dou alguns
piques — para poder voltar
antes do escurecer
total.

A volta leva-me até o pico mais alto da cidade, de onde se vê tudo ou quase
tudo: as avenidas e ruas;
As casas, comércios e igrejas;
Os postes e suas luzes;
O vai e vem dos carros, dos animais
e das pessoas minúsculas;
Menos o coração de
um homem.

Depois retorno,
descendo pelo lado oposto
ao que subi, cruzando a rua
onde mora um sonho.
E ainda que eu passe, é nessa rua
que o meu coração fica.

Veja Bem —

⁠Veja:
nos shoppings;
nas filas;
nos rachas e autoestradas;
nas redes sociais e casas de jogos;
em igrejas, hospitais e academias;
nas urnas;
nas festas, escolas e universidades;
em casamentos, aniversários e funerais;
em rodeios, fábricas e reuniões
do G20...

Veja bem,
são em locais como esses
que a humanidade falha miseravelmente.

⁠⁠⁠Naquela Manhã —

Sol feito sol de quase meio-dia.
Meus olhos falhos — confusos na luz,
na distância — mal-entendiam.
Então, de repente, desdobrou-se à minha frente e,
surpreendentemente eu vi...
era ela:
Camiseta branca (colegial), saia
justa — um pouco acima
dos joelhos;
Cabelos de mechas em tons
avermelhados, soltos à
sorte, à luz, ao vento,
e um grande sorriso juvenil (um
tanto quanto desalinhado),
no rosto (de menina),
enquanto meu tosco coração
(coitado),
eternamente preso, observava
comovido (de longe), naquela manhã,
o sonho — adolescente — passar.

De quem era aquela manhã?

⁠Primeiros Versos —

Nestas simples e assustadas linhas,
em que eu, em memórias contínuas, irrequietas, enraizadas
(por não saber como deixá-las),
quase toco as longínquas tardezinhas
de outrora, ofereço-lhe os
primeiros versos.

O imoral e súbito espanto de
reconhecê-la na beleza de
um grande sonho — perdido —
não despertou-me. — ainda que
apavorado: eu quero
o sonho!

⁠Antes de Ir —

Parece-me que é isto:
Eu deixei o melhor de mim (menino),
em algum lugar do passado.

Às vezes,
eu penso em esticar o braço para tentar alcançá-lo e, talvez assim,
resgatar, restaurar-me
de algum modo. — inútil!

É preciso prosseguir envelhecendo, entristecendo... antes de,
realmente ir.

⁠Abismos —

Há um abismo entre cada
um de nós.
Entre alguns, há uma ponte — larga
na ignorância, na mediocridade, na superficialidade. — raramente
sólida, segura.
Decerto, entre distintos e sublimes,
quase sempre, estreita, irregular,
arriscada, que, vez ou outra,
balança e assusta — ainda
assim, uma ponte:
um acesso, um alcance,
uma conexão,
ligando solidões, medos,
sonhos — vidas.

Mas entre a maioria
— a grande maioria —
e a parte que salva, só há o abismo:
enorme, sem ponte, sem pontos
de conexão, nem acesso, nem alcance.

Do raso ao profundo;
Do descartável ao raro;
Do extremo vazio à poesia:
Um Abismo.

Não quero pensar. — pensar abre abismos.

⁠Um Convite —

A noite foi péssima, o dia está
cinza,
mas eu amanheci.

E como, quase sempre, me sinto melhor
nos dias cinza de tempestade
do que nos dias dourado
de sol,
a escuridão da noite tem se tornado
um convite quase que irrecusável
à luz:




Interna.

⁠Não Identificado —

E,
de repente,
contra a única luz que ali havia,
surge-me um objeto voador logo ou,
melhor, não identificado.

"Um pernilongo! Por onde
entrara?" — pensei aos berros na minha
cabeça —, erguendo-me num impulso
até a luz do quarto, para confirmar
e expulsar o invasor
inconveniente.

Com o auxílio de luz intensa
não se via inseto algum.

Mexia pra lá, sacudia pra cá.
Confere, percorrendo detalhadamente,
cada centímetro de pele e roupa e cabelos
do outro eu — meu filhote —,
e nada da iminente ameaça. — "então,
na escuridão do vazio da escuridão de um
quarto escuro e uma mente
obscura e cheia,
contra a luz na escuridão do vazio
da escuridão de uma mente
obscura e cheia,
o tal delinquente — gigante — neste
meu universo — subjetivo —,
era só um inseto menor — bem menor,
ínfimo — alongado pela pouca luz
na grande escuridão (do vazio da
escuridão de um quarto escuro
e uma mente obscura e cheia),
sem arma, sem fama, sem
alma de pernilongo?"

(...)
Como um zumbido ouvi
(vindo de fora):
Apaga a luz e dorme!

⁠⁠Mal Alcanço —

⁠O mundo — este mesmo, feio,
feito de gente — roubou minha
doçura auroreal;
Meu olhar afetuoso e admirado;
Minha essência nobre e
esperançosa.

Agora, tenho tido raiva de ser bom,
de ser amoroso, de ser gentil...
sentimental.

Deixei de acreditar nos fins
de tardes dos sábados;
Nas manhãs amenas
dos domingos;
Nos dias cinza de chuva
e frio. — ah, que desperdício!

O mundo — este mesmo, feio,
feito de gente — poupou-se
esgotando-me.
Hoje, quase tudo que me faz bem
é passado, distante, antigo — mal alcanço.

⁠Mudados —

Depois de mais de dois anos
ausentes — numa distância que nos aproximou por um tempo,
enquanto afastava-nos
para sempre (talvez) —,
estávamos, outra vez, sob o mesmo
céu, o mesmo cep. — (e sem que eu soubesse): mudados.

Então,
naquela tarde de brisa e sol suaves,
num casual encontro-despedida,
ao perceber-me e eu ela,
viramo-nos as costas,
e o Universo a
página,
e a Vida continuou (normalmente),
um piscar de olhos
depois.