Coleção pessoal de SandraBoveto
Calma
Mergulhei numa calma esquálida,
muda,
inodora,
insossa,
pálida...
No enterro dos sentidos,
vi espectros de sonhos perdidos,
pilhados,
massacrados,
arruinados,
esquecidos...
Com o féretro das emoções, cerrou-se o dom.
Morreu o ruim e morreu o bom.
À escuridão perdeu-se o tom.
E o silêncio trouxe o som,
o gemido,
o grito,
o apito
ultrassônico
da criança
reprimida.
Líquido Seco
Líquido, desfaz-se e busca a solidez,
na solidão eterna de um momento líquido.
- Barman ou Bauman?
- Ambos, por favor!
Há pontas, há ondulações,
há mágicos atritos que arranham e acariciam.
Líquido seco que o caos acalma,
que a calma tinge de guerra,
com a cor do sangue, sem a dor da alma.
A língua morre aos poucos,
entrega-se à morte do mundo que não vive.
Língua morta de uma mente viva
que nunca morre, que nunca dorme,
que sangra na taça.
ESSE ISSO
Isso... isso que eu sinto,
isso que não tem nome,
que a mente consome,
que domina a vontade,
desafia a realidade,
que me nega à verdade.
Parece preso esse isso dentro de mim.
Mas não.
Sou eu a finita prisioneira do “isso” sem fim.
BEIJO AUGUSTO
Como eu aguento?
Essa pergunta me vem, às vezes…
fica incerto tempo
e desaparece.
Voltará?
Perguntas e vontades voltarão?
Ou viraram altocúmulos?
Estratos? Cirros talvez…
Quero nimbos,
seguidos de relâmpagos e chuva forte!
Não saber é o que não aguento.
É isso que eu não aguento: não saber!
O que, como, para onde…
qual é o rumo mesmo?
Nau sem norte… já disse isso?
Pois repito.
Gosto de repetir algumas coisas
para me convencer da resposta, essa que não sei
resposta errada
resposta certa
como qualquer resposta sempre foi: certa E errada
nunca uma única coisa
pois verdade é isso mesmo: quimera
pantera, fera, véspera do escarro
mas nunca companheira inseparável.
A verdade é qualquer coisa menos a realidade
é equação algébrica:
X – REALIDADE = VERDADE
Se a realidade for maior que qualquer coisa,
a verdade terá um formidável enterro
E é assim que eu aguento, sem aguentar de saudades
daquilo que eu sei que existe, mas não vejo
da verdade, às vezes, positiva
daquilo que me revelou,
nada mais revelando, além do beijo
do augusto anjo.
Folhas e pontos
Gostaria que as folhas nunca fossem de ponto,
ponto que marca tempo,
o tempo que não me pertence;
obtuso ponto que me amarra ao tronco
desse açoite das horas.
Gosto das folhas que seguem o vento,
vento que as liberta
dos galhos fixos do tempo.
Com o tempo, elas chegam ao ponto
de, como o tempo, irem embora.
Inspiro no passado e expiro no futu... não, no passado também!
O futuro não existe.
O tempo está limitado pela sensação de um suposto presente...
que acabou de passar!
O presente não existe.
A cada instante, sou apenas o resultado de um passado assimilado
e insistente.
Permito-me conceber um futuro e me concedo um presente.
Mas, ao abrir esse presente, lá encontro o passado, eternamente.
Estranhamente, a vida acontece dentro do presente, ainda embalado.
O passado são apenas as memórias dos presentes que abri.
O futuro será consequência, quando se transformar em passado.
E foi o passado certamente a causa, mesmo sendo a consequência...
O que é fato é que o ato que causa a consequência vive no presente,
eternamente.
Nunca diga nunca, porque o sempre não existe,
pois nada é absoluto.
Se nada é absoluto, o nada mesmo não existe.
Então algo é absoluto.
Se algo é absoluto, nem tudo é relativo
Mas o tudo também não existe, pois é absoluto
Seria o tudo, então, o algo absoluto?
META: METAMORFOSE
Isso ainda me mata...
A vida!
Hei de morrer disso.
Quero que a vida me mate,
para permanecer viva.
Que me desmantele,
que me dilacere e
que me desintegre.
Depois me reconstrua,
pois a vida continua.
Serei o fruto da boa morte,
em vida,
até que isso me mate...
outra vez,
e até que me mate...
de uma vez.
Ao Poeta
Poeta, eu te suponho santo,
pois se hoje há verso, já houve pranto.
Do pranto que dá medida à alegria
pariu-se o verso da tua poesia.
Santo, eu te suponho poeta,
pois sua dor não é mais secreta.
Mesmo os versos de contemplação
foram embriões na dor e na paixão.
Sou um constante antes,
antes que me percebas
e sejas meu presente
que, enquanto embrulhado,
é futuro permanente.
Espero, pois quero.
Não quero esperar, portanto!
Por tanto espero, que o que eu quero não mais espero.
Fui logo ali e voltei. Eu sei, não avisei.
Mas não vou chorar sobre esse leite que derramei.
Limpá-lo-ei!
Tanto penso, que quase não existo.
Na existência do meu pensamento
está a essência da minha inexistência.
Então não penso,
para pensar que existo.
Pensando que não penso,
pretendo existir além de todo o pensamento.
Foi um marcador de muitos textos que eu não havia lido.
A cor do marcador? Não importa.
A vida do marcador é marcada por marcar, seja lá qual for a cor.
O que importa é que marcava, era marcante, e marcou!
Todos os textos seriam lidos agora com esse marca-dor.
Vejo o escuro.
Somente o escuro realmente enxergo,
sem ruídos multicoloridos.
Ouço o silêncio.
Somente o silêncio posso ouvir,
sem ruir em ruídos.
Fui herói quando calei
dores, revoltas e aflições.
Herói eu fui quando gritei
a vida fora dos padrões.