Coleção pessoal de natxalinha

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Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.

(...) e nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que para ser explicado teria que sair de si mesmo. Não quero que me seja explicado o que de novo precisaria da validação humana para ser interpretado.

Embora pela primeira vez eu sinta que meu esquecimento está enfim ao nível do mundo.

(...) viver é somente a altura a que posso chegar – meu único nível é viver.

Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.

Não compreendo o que vi. E nem mesmo sei se vi, já que meus olhos terminaram não se diferenciando da coisa vista. Só por um inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na continuidade ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido tecido da vida.
É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época.

(...) a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber num sistema. Terei que ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? Assim como uma criança pensa para o nada. E correr o risco de ser esmagada pelo acaso.

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada – então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.

Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.

Em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa.

Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E – e se a realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo – que sei do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E
que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.

E sem dar uma forma, nada me existe.

Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida.

Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.

O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

Como é que se explica que o seu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o seu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?

Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.

É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser – se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.