Coleção pessoal de marcosarmuzel
Acaso
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.
O Tempo Passa? Não Passa
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.
O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.
Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.
O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.
E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.
A MORTE CHEGOU DE BRANCO
A morte chegou de branco
mas quem a viu não fui eu.
Foi a moça do barranco
que mal a viu se escondeu.
Chegou de branco trazendo
um sopro de terras santas
de rosas castas e rios
onde em claros arrepios
se deita o sonho gemendo...
Chegou de verdes colinas
de longínquos povoados
e tinha toda a pureza
da risada das meninas
das águas virgens das plantas
dos campos mal-assombrados.
Chegou de branco! De branco...
De branco como o silêncio
como as núpcias de branco
como o primeiro suspiro
da moça que no barranco
só por vê-la se escondeu.
A morte chegou de branco
mas quem a viu não fui eu.
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
LISBON REVISITED
(1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
TRÍPTICO
(à maneira popular...)
I
desamada
desarmada
vem o vento
vai-se o tempo
nem o tempo
nem o vento
dá o tempo
de sarar
de repente
vem o dia
chega a hora
borda fora
a acostar
volta atrás ó cavaleiro
volta atrás se quer's teu bem
tua amada
tua armada
com o tempo
desarmada
traz também
II
o que se sente
entre o que se pensa e diz .
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha
nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem
III
Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar
o que não tem palavra
Quem vai achar
o que em nós esquece
Quem vai roer
o que em nós sufoca
Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto na carne clara
POEMA DO NADADOR
A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
O amor não é tudo
O amor não é tudo: nem carne nem
bebida, nem é sono, lar da gente,
nem a tábua lançada para quem
se afunda e volta e afunda novamente.
O amor não pode encher o pulmão forte,
pôr osso no lugar, tratar humores,
embora tantos dêem a mão à morte
(enquanto o digo) só por desamores.
Bem pode ser, na hora mais doída,
ou da minha franqueza arrependida,
buscando alívio à dor, seja capaz
de vender teu amor por minha paz
ou trocar-te a lembrança pelo pão.
Bem pode ser que o faça. Acho que não.
Ode a um amigo letrado letrista
Roberto José da Silva, parece nome popular!
De genialidade perspicaz e personalidade singular!
Não é de se estranhar que o nosso menino Roberto!
De família humilde, não duvide viria a ser doutor!
Roberto, deixou todos boquiaberto!
Quando o certo, seria não dar certo!
Tinha tudo pra não dar certo!
Fez tudo errado e deu certo!
-Como assim, fez tudo errado e deu certo?
De bom grado, nada errado, ele só ludibriou o sistema!
Esse é o problema, enquanto a maioria fica nesse dilema!
Pobre nunca consegue Universidade pública sem esquema!
Roberto não desistiu, seu lema?
-Estudar ou não estudar, eis a questão!
Com razão, devorou livros de montão!
Sem utopias, foi de literatura, história e filosofia!
E quem diria? Nosso menino passou em letras!
E portas se abriria! Todavia a Unesp de Assis, foi só o começo!
Com pretexto e com apresso às leituras!
Sem nenhuma agruras, Roberto foi às alturas!
Mergulhou fundo e com dedicação específica!
Fez iniciação científica! Fatesp e Cnpq só pra tu vê!
Podes crer, Roberto, do latim e germânico é dinâmico!
Roberto significa uma pessoa “brilhante, famosa, trabalhadora, estudiosa e centrada”!
Não é marmelada! Se duvidas, dá um google e terás a resposta chegada!
Todos esses adjetivos só será revelada, para quem conhece sua história inusitada!
Não bastasse, Roberto é de sobrenome José!
-José religioso, significa “aquele que acrescenta e multiplica”!
Nosso José, não complica, explica, menino ardiloso!
Pavoroso, fez mestrado e doutorado!
Deixando os oponentes deslumbrados!
Usp, Unesp, Unicamp! Isso tudo é irrelevante!
Nosso menino é andante, mas não errante!
Não obstante foi inté os States!
-Foi hablar com o Bill Gates?
Calma aí, não é Fakes! Roberto fez um intercâmbio remake!
Não foi de araque, nosso menino não é biscate!
Roberto, não deixa nada em aberto, não tem ideologia!
Sem antipatia, Roberto ama a Democracia!
Sem rótulos, de todos os títulos, e profissão!
De antemão, nosso mestre prefere ser chamado de educador!
Seja como for, Salve o nosso professor doutor!
Que nos ensina, desde medicina inté a ser dradutor!
Ensina de política crítica, és imparcial!
Sem ser bestial ou marginal esse Roberto é o canal!
Letrista, empirista, Salve Roberto e suas conquistas!
(Marcos Müzel 06/09/2023)
A moça ferrada
Falam tanto dessa moça. Ninguém viu,
todos juram.
Cada qual conta coisa diferente,
e todas concordantes.
Dizem que à noite, ela. Ela o quê?
E com quem? Com viajantes
que somem sem rastro
gabando no caminho
os espasmos secretos (tão públicos) da moça.
Sobe a moça
a ladeira da igreja
para a reza de todas as tardes.
De branco perfeitíssimo,
alta, superior, inabordável
(luxúria de mil-folhas sob o véu,
murmura alguém).
À noite é que acontecem coisas
no quarto escuro. Ganidos de prazer,
escutados por quem? se ninguém passa
na rua em altas horas-muro?
Pouco importa, a moça está marcada,
marca de rês na anca, ferro em brasa
de língua popular.
Espelho
Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.
Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.
Ao espelho
Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?
Por que na sombra o súbito reflexo?
És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.
O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisa de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas
Que somos e que abarcam nossa sorte.
Quando eu estiver morto, copiarás outro
E depois outro, e outro, e outro, e outro…
Serenata
Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.
O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.
Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.
É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.
Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.
E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura
por eternidades serenas.
Canção
Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.
Levou somente palavra,
deixou ficar o sentido.
O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.
Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou os teus olhos também...
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Lamento do oficial por seu cavalo morto
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!
E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado – melhor que nós todos! – que tinhas
tu com este mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam…
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos…
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!
Um chamado João
João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa, 1-1931