Coleção pessoal de lucian1989

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⁠deboche

queria ter a serenidade do meu pai
que explode por dentro.

⁠Inadimplência

Devo,
não nego.
Custa-me caro sonhar.

poema de assalto,
se furta do asfalto
com os pés ao alto.

⁠Fidelidade

Ivan mora sozinho, em um apartamento de apenas um quarto-cozinha-banheiro. Logo quando se abre a porta, salta aos olhos a cama-sofá, quase sempre com lençol dobrado ou arrastando ao chão. O travesseiro, sem fronha, tendo apenas quando sua mãe lhe faz visitas para ir a uma consulta no hospital metropolitano. Na cozinha, um pequeno quadrado demarcado por um muro à meia altura, há apenas uma prateleira em madeira não tratada, porque com felpos ouriçados, segurando o essencial: litro de óleo pela metade, vasilha amarelada de sal e um pacote de macarrão com um pregador de roupas. O banheiro era quase uma extensão do quarto. Apenas a porta sanfonada, com o trinco arrancado, separava a cama do vaso. Ivan acostumou-se com o cheiro de casa vazia sempre que abria a porta de casa e podia até mesmo não senti-lo quando não estava afim de abrir a única janela de sua kitnet. Ivan não sentia falta do que acontecia janela a fora de seu mundo. Certo dia, Ivan conheceu Sara. Foi quando Sara, envergonhada, tentava sem sucesso consertar a corrente de sua bicicleta que havia saído da coroa. Ivan, até então, não sabia a importância daquela corrente encaixada elo a elo na coroa pontiaguda. Enquanto consertava a bicicleta de Sara, Ivan pode mirar suas pernas morenas cobertas por pelos enlourecidos. Sara, até então, não entendia muito bem o porquê da corrente ter a colaração escura, destoando do tom azul claro de sua bicicleta, até o momento em que suas coxas se sujaram de graxa. Ivan e Sara ficaram meses a fio passeando de bicicleta cotidianamente. Ivan percebeu que já não sobrava macarrão, que o óleo já não estava por acabar, e sim acabado, e suas janelas não se observavam mais fechadas. O rapaz já não suportava mais o cheiro de casa vazia quando pedalava. A partir de então, Ivan especializou-se em consertar correntes alheias a de Sara. Na verdade, atormentava a Ivan não a ideia de pedalar com a casa vazia, mas sim que a corrente de Sara pudesse novamente soltar da coroa de sua bicicleta. Sara nunca foi tão amada, quanto Ivan a ama.

⁠marcenaria

trabalho:
prisão,
necessário
bom poeta
sai
do armário.

⁠dicionário

verbete masculino
palavra feminina
sequer feminismo

⁠platônico

quando a lia
sussurrou na hora h:
me faça poesia.

⁠Minhas paredes

Sou um frequentador assíduo de janelas e varandas.
O que se prende a mim, não cabe em minhas paredes.

⁠Iconoclastia

Meu último pedaço de eternidade
se esvaiu nesta fumaça.
Hoje falo do cigarro
que me enche os pulmões e se apaga.
Sinto-me agora
poeta das coisas mortais.

Minha bicicleta presa à dela
algo que liberta:
nosso amor anda por aí.

⁠ego

cheio de si
completo com o vazio
ocupado por você.

⁠Maturidade

Sentado numa cadeira de balanço, daquelas de madeira em que se escuta o ruída de coisa velha a cada chacoalhada, passava as tardes quase sempre frias e secas daquele inverno de Moscou.
O movimento do corpo, outrora em zigue-zague portando um discurso eloquente e apaixonado na sala 18 da Faculdade de Letras e FIlosofia, passou a ser as carícias na barba e rotineiras idas a cozinha sacar um café na máquina de fazer expresso, ganho de seus alunos no quando de sua aposentadoria.
A propósito de seus alunos, que antes o assistiam com tamanho entusiasmo e devoção, tinha a companhia de uma criança naquelas tardes aparentemente pacíficas. Era como se, no fim da vida, oferecesse a alguém sua experiência, mas ganhando, em contrapartida, o ânimo e potência de vida que o café já não lhe dava mais. A criança gritava, pulava, mordia, beliscava, o fazia rir como naqueles velhos tempos que lhe eram permitidas as estripolias.
As tarde frias e pacíficas, assim como a demência nunca o habitara. Não se sabe se era o velho que voltara a criança, ou se falava a criança que habitava o velho.

⁠SOS

- amor ao mar!
descarto os remos
e me deixo afogar.

⁠Insônia

Noite sem escrever,
penso em poema
na forma de você.

⁠Descrença

Materialista e ateu que sou,
não acredito que encontrei
[minha alma gêmea.
Foi ela quem me achou.

⁠As coisas que eu deixo

Toda vez que viajo; fico uns dias foras,
volto e tento refazer as coisas,
as coisas que eu fazia
quando antes de ter viajado.
Mas as coisas que eu fazia
já não são as que tenho encontrado.
Se em tese, sei que não mudaram,
na prática, aquilo que deixei
me soam deveras mudado.
Porque as coisas que a gente deixa
ficam porque são estáticas, matéria imutável;
quem sai é a gente,
muda o espírito, sentido, cidade em cidade.
Pois às coisas, lei do universo,
às coisas só foi permitido mudar de estado.

⁠Exemplo

Um amigo meu
cresceu na vida
desapego e coragem:
não se preocupa mais
se sua roupa for um ultraje.
Sai à rua com a cara
e a tatuagem.

⁠passeio

minha gaveta aberta cheia de poemas
passou o vento
voaram à janela
meu poema está na rua
eu não caibo mais no quarto.

⁠Autoafirmação

Costumo escrever meu nome em qualquer papel à mão.
Dizem que é uma forma de autoafirmar-se.
Eu afirmo:
me refaço
em papel, borracha e lápis.

⁠preço

custa ler
meu poema
que cobra você.