Coleção pessoal de lellie
Olha, não peço muito, apenas sua mão, tê-la como um sapinho que dorme assim feliz. Preciso dessa porta que me davas para entrar em seu mundo, essa pecinha de açúcar verde, de redondo alegre. Não me emprestarás sua mão hoje nessa noite de fim de ano de bobeiras roncas? Você não pode, por razões técnicas. Então a pego no ar, entrelaçando cada dedo, o pêssego sedoso da palma, e o dorso, esse país de árvores azuis. Assim a pego e a sustento, como se dela dependesse grande parte do mundo, a sucessão das quatro estações, o cantar dos galos, o amor dos homens.
Com que suave doçura me levantas do leito em que sonhava profundas plantações perfumadas, passeias os dedos pela pele e me desenhas no espaço, desequilibrado, até que o beijo pouse curvo e recorrente para que a fogo lento comece a dança cadenciada da fogueira se tecendo em rajadas, em hélices, ir e vir de um furação de fumaça.. Porque, depois, o que resta de mim é só um inundarme entre as cinzas sem um adeus, sem nada mais que o gesto para libertar as mãos?
Que vaidade imaginar que posso lhe dar tudo, o amor e a felicidade, itinerários, música, joguinhos. A verdade é assim: meu tudo eu te dou, é verdade, mas tudo que eu tenho não é suficiente como para mim não é suficiente que me des tudo seu. Por isso nunca seremos o casal perfeito, o cartão postal, se não formos capazes de aceitar
que apenas na aritmética o dois nasce de um mais um. Por aí um papelzinho que só diz: Você sempre foi meu espelho, que dizer que para me ver tinha que olharte.
Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.
Até agora, nunca tinha amado as suas amantes; havia algo nele que o levava a tomá-las demasiado depressa para ter tempo de criar a aura, a zona necessária de mistério e desejo que lhe permitisse organizar mentalmente aquilo que poderia um dia chamar-se amor.
De tudo que existe, nada é tão estranho como as relações humanas, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade.
Mas se algum dia você não vier depois do café da manhã, se algum dia avistar você em algum espelho, talvez procurando por outro homem, se o telefone toca e toca em seu quarto vazio, então depois de indizível agonia, então - pois não tem fim a loucura do coração humano - procurarei outro, encontrarei outro você. Nesse meio tempo, vamos abolir com um sopro o tiquetaque dos relógios. Chegue mais perto de mim.
Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.
V.
O efeito da morte sobre aqueles que continuam vivos é sempre estranho, e muitas vezes terrível, pela destruição de desejos inocentes.
A verdade é que eu sempre gosto das mulheres. Gosto da falta de convencionalismo delas. Gosto da integridade delas. Gosto do anonimato delas.