Coleção pessoal de kasulo
Eu perco o namorado
Eu fico corada
Eu tomo banho de sal
Mas não desço do salto
Nem quando pareço amarrotada.
Tenho alma de tergal.
DIGITAIS
A moça, tímida
Bordou o céu e colocou as estrelas para que
A moça, apaixonada
Sonhasse minuciosos castelos que
A moça, traída
Iria infinita e vagarosamente ver ruir
Ah, essas moças que moram
dentro daquela moça que hoje está velha
Elas não sabem mas são como beijos de despedida
A última morada de todas elas
É este coração que ainda lembra
De todos os moços
para quem bordou, sonhou e morreu
UM PRESENTE PARA NELSON
Ei-lo. Foi feito para o inverno,
embora tramado com a força
do ano todo...
mas não tome vento
e cuidado com as janelas
não ande rápido
e verifique as tramelas
não entre em carros
e nem passe por vielas
não receba visitas
com flores nas lapelas
não conviva com vampiros
nem mesmo em capelas
não confie em guarda-chuvas
muito menos em umbrelas
mantenha-se longe de talheres
evite até as baixelas
não movimente as mãos
lixe as unhas com cautela
procure ficar imóvel
nem experimente as chinelas
não coma e não beba
nem mesmo chá de canela
não respire fundo
mesmo que esteja em Bruxelas
suspenda aquele pileque
procure agir com cautela
cuidado com os espinhos
até das flores mais belas
não aceite agrados
nem jantar a luz de velas
mesmo estando na África
em sua linda cidadela
o cachecol que fiz para você,
não é forte como era a sua cela,
meu caro Mandela.
QUINTANICES
Eu sei, meu bem, eu sei...
Onde vão parar as notícias, as cartas errantes,
Onde estão as delícias, os amigos distantes,
Os guarda-chuvas perdidos, as promessas dos amantes.
Eu sei, meu bem, eu sei...
Onde estão os amores, o presente bizarro,
Onde estão os cantores, aquela chave do carro,
As maletas esquecidas, o seu último cigarro.
Eu sei, meu bem, eu sei...
Onde estão as malas, os arquivos sumidos,
Onde estão as balas, os pacotes esquecidos,
Aquela nota que foi paga, todos os objetos perdidos.
Nada sumiu de verdade...
Segundo o poeta e sua lógica, giram enquanto eu durmo
Hoje são poeira cósmica, viraram anéis de Saturno.
COTIDIANAS
Pensando bem, é preciso reconhecer o outro.
Ler nos sinais da presença
O gesto escondido
O som não emitido
A angústia abafada
Mas não é possível traduzir tudo
Praticar autópsia a cada encontro
Milimetrar esboços de mágoa
Precisar olhares de confronto
Pensando bem, é impreciso conhecer o outro.
Crer nas tramas da palavra
O projeto dividido
O amor não merecido
A paixão monossilábica
Cada fragmento de experiência
Colados uns aos outros
Cria monstros, indecifráveis
Cobertos pela fina camada do novo
Pensando bem, é narciso tecer o outro.
CARTAS AMOROSAS
escreva cartas de amor, mas não as amasse
assim como os poemas, destilados em versos beijados
podem tudo os amantes novatos, menos desfazer provas
ou cometer arrependimentos ainda que indesejados
vale uma pequena prova escrita, qualquer ato
ou insanidade cometida, tudo deve permanecer intacto
o vivido não merece o destino do nada
mesmo que sua lixeira seja obra patenteada
não, não jogue fora o respirar do tempo
a sandice da mão que comete uma declaração
guarde bem a foto com cara de bobo
aquela mal tirada no lambe-lambe do parque
mesmo que a foto contenha bancos, praças, pipoca
e um olhar besta de eterno apaixonado
quem sabe um dia você não tome coragem
e tire tudo isto do baú contemplando sua bagagem
espalhe as baboseiras escritas, fotografadas
deixe todas as coisas descansarem reviradas
descubra um você menino no presente
um você amoroso e frágil, um você diferente
talvez neste dia você tome posse
do que já havia esquecido, do muito que havia sido
seus crimes amorosos estão agora prescritos
mas ficam mais belos sempre que são descritos
dizem que com os anos a ausência de culpa
esculpe novos seres humanos dentro dos velhos que ocupa
INVASOR
Não, não toque aí.
Minha alma é como panos leves.
Rasga-se diante das meias verdades.
Quando eu disse que podia entrar,
falava de poder ouvir o tapete pisado,
o chão da sala marcado,
contra luz,
você trazendo desenhos
do tempo que sonhava com guitarras,
arranhava resenhas e gostava de gente.
Achei que vinha só você,
vestido de projetos,
escorregando idéias pelos cabelos chuvados,
que diria bobagens risonhas,
molharia-me por dentro,
inventaria uma peça, um passeio no parque,
aquele móvel que abre, um danado de pato assado.
Inundando, ainda que divergindo.
Transformando, marinando ou preferindo.
Multiplicando, mas, por vezes,
dividindo.
Não pensei,
quando eu disse que podia entrar,
que eu fosse ter, depois,
saudade dos sinceros.