Coleção pessoal de joseassun
O MU(R)RO
O Murro
Derrubou o Muro.
Foi tão forte o choque,
Que perdeu seu “erre”.
E por isso o Murro
Virou um Muro
Como é insano esse mundo burro!
Como se tal vexame já não fosse tanto
Eis que, já tudo assentado,
Chega um outro murro
Para derrubar o muro
– Para perder seu “erre”
Para virar um muro...
[poema publicado na revista Abatirá, vol.2, nº3, 2021]
https://www.revistas.uneb.br/index.php/abatira/article/view/10249
Os historiadores mais tradicionais nos seus modos de escrever a história costumam se esquecer de que, ao elaborar o seu texto, eles mesmos são ou deveriam ser os ‘senhores do tempo’ – isto é, do seu ‘tempo narrativo’ – e de que não precisam se prender à linearidade cronológica e à fixidez progressiva ao ocuparem o lugar de narradores de uma história ou ao se converterem naqueles que descrevem um processo histórico. Se o texto historiográfico é como que um mundo regido pelo historiador, por que não investir no domínio de novas formas de dizer o tempo? Por que tratar o tempo sempre da mesma maneira, banal e estereotipada, como se estivéssemos tão presos a este tempo quanto os próprios personagens da trama histórica que descrevemos, ou como se fôssemos mais as vítimas do discurso do que os seus próprios criadores? Indagações como estas, naturalmente, implicam em considerar que a feitura do texto historiográfico se inscreve em um ato criativo destinado a produzir novas leituras do mundo, e não em um ato burocrático destinado a produzir um relatório padronizado que pretensamente descreveria uma realidade objetiva independente do autor do texto e de seus leitores.
O moderno romance do século XX em diante, na sua incessante busca por novos modos de expressão e de apresentação do texto literário, e também o Cinema desde os seus primórdios, já acenaram há muito com uma riqueza de possibilidades narrativas que não parecem ter sido assimiladas por uma historiografia que, pelo menos neste aspecto, é ainda demasiado tradicional. Acompanhar este movimento iniciado no âmbito da literatura do último século, mas também no campo do cinema e das artes em geral – e podemos lembrar aqui, adicionalmente, as experiências cubistas de representação de diversos momentos de uma mesma figura na simultaneidade de um único quadro – poderia contribuir para enriquecer significativamente o discurso historiográfico, ajudando-o a romper os tabus e as restrições que têm limitado a historiografia profissional enquanto uma disciplina que acaba reproduzindo os mesmos padrões, mesmo que nem sempre adequados aos novos objetos e abordagens já conquistados pelos historiadores.
Romper os padrões habituais de representação do tempo, como ousaram fazer os grandes romancistas, artistas e cineastas modernos, implicaria em inventar novos recursos discursivos no que se refere ao tratamento da temporalidade no âmbito da historiografia, com possibilidades regressivas, alternâncias diversas, descrições simultâneas, avanços e recuos, tempos psicológicos a partir dos vários agentes – ou o que quer que permita novas maneiras de representar o passado, mais ou menos na mesma linha de ousadias e novidades que os romancistas modernos encontraram para pôr em enredo as suas estórias de uma maneira mais rica e criativa.
[extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p.250-251].
“Temporalidade” é o primeiro conceito importante para a reflexão historiográfica no que concerne às relações entre Tempo e História. Entramos no âmbito conceitual da “temporalidade”, e abandonamos o sempre vasto e enigmático universo das polêmicas sobre o Tempo [no sentido mais propriamente físico], quando começamos a examinar as instâncias humanas, psicológicas e políticas que foram ou são agregadas às sensações e percepções que se dão em torno da passagem do tempo, ou ainda em torno das alteridades geradas pela comparação entre períodos distintos da história humana ou mesmo da vida individual. Assim, por exemplo, quando os historiadores começam a singularizar e a partilhar o devir histórico em unidades mais operacionais e compreensíveis – como a Antiguidade, Medievalidade, Modernidade, Contemporaneidade – estamos já diante de temporalidades históricas. Temos aqui algo similar ao que se dá com o espaço, sobre o qual o pensamento histórico ou geográfico pode pensar unidades de compreensão como a América, Ásia, África, e também espacialidades regionais, espacialidades climático-naturais, ou mesmo espacialidades culturais mais amplas que correspondem a civilizações.
[extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p.32].
[TEMPORALIDADE - 1]
“Temporalizar” (estabelecer temporalidades) é de certa maneira territorializar o tempo, tomar posse do devir aparentemente indiferenciado, percebê-lo simbolicamente – operacionalizá-lo, enfim. As temporalidades definidas pelos historiadores, é evidente, não existem por si mesmas, e nem os seus limites são dados de uma vez por todas. Onde termina, de acordo com a historiografia, a Antiguidade? E quando começa a Idade Média? Quando, mais precisamente, tem-se a passagem para a Modernidade? Vivemos nos dias de hoje, no seio de uma nova época que já deveria ser definida como uma nova temporalidade pelos historiadores futuros? De igual maneira, estas palavras que são tão familiares ao vocabulário cotidiano – Passado, Presente, Futuro – o que significam propriamente? Como administrar a fugaz relação entre estas três instâncias temporais cuja evocação é tão inevitável na vida comum, mas que se torna ambígua no mesmo instante em que cada momento presente mais do que rapidamente se transforma em Passado, para ser imediatamente seguido pelo momento que no segundo anterior se situava no Futuro, e que também mergulha no seu inexorável destino de ser igualmente engolido pelo eterno abismo do tempo?
Mesmo no interior de uma única sociedade sujeita ao devir histórico, os modos de perceber a relação entre Passado, Presente e Futuro diversificam-se.
[extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p.33].
[O TEMPO DOS HISTORIADORES]
O tempo dos historiadores ordena (define origens para os processos que examina, atribui-lhes um sentido). Nesta operação, é já também um tempo 'territorializado'. Ao definir sentidos e criar significados para os períodos de tempo que examina, os historiadores exercem poderes de diversos tipos (ou tornam-se instrumentos para o exercício destes poderes).
A demarcação das diversas épocas constitui um dos sinais mais visíveis desta territorialização do tempo pelos historiadores. Estão sempre abertos os limites entre os grandes recortes que são habitualmente denominados de “eras”, “idades”, ou outras designações mais amplas. Quando termina a Antiguidade, e quando começa a Idade Média? Em que momentos(s) esta última já começa a se transformar em uma Idade Moderna? Como denominar cada um destes períodos? Como lidar com recortes e designações que foram herdados de uma cultura histórica que já não é mais necessariamente a nossa, mas às quais já estamos demasiadamente habituados? Quais os limites destas escolhas de recortes no tempo, e quais são os seus potenciais de convencimento como períodos ou épocas que podem ser propostos para serem instrumentalizados, para questões mais gerais, por todos os historiadores?
Delimitar um grande período historiográfico no tempo, separando-o de outro que se estende atrás dele e de outro que começa depois, é uma operação que traz marcas ideológicas e culturais que nos falam da sociedade na qual está mergulhado o historiador, dos seus diálogos intertextuais, de visões de mundo que de resto vão muito além do próprio historiador que está estabelecendo seus recortes para a compreensão da História. Os próprios desenvolvimentos da historiografia – os novos campos históricos e domínios que surgem, a emergência de novas relações interdisciplinares, os enfoques e abordagens que se sucedem como novidades ou como reapropriação de antigas metodologias – trazem obviamente uma contribuição importante para que a cada vez se veja o problema da passagem de um a outro período histórico sob novos prismas. Ademais, é preciso lembrar que, ao se trabalhar sobre um determinado problema histórico, específico de uma certa pesquisa, essas grandes balizas já nem sempre serão úteis para o historiador. Pensar um problema histórico já é propor novos recortes no tempo.
[extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 2012, p.27-28].
A primeira noção à qual precisamos dar forma de modo a refletir sobre o Tempo Histórico é a de que este é um tempo necessariamente humano. O tempo dos historiadores refere-se essencialmente à existência dos homens. O que de fato interessa a um historiador é a passagem do homem sobre a Terra, o que inclui tudo aquilo que, tocado pelo homem, transformou-se, e também aquilo que, vindo de fora, transformou a vida humana. As modificações na vida humana ao longo dos séculos, o confronto entre diversas sociedades, as múltiplas maneiras como se desenvolveu o poder no decorrer da existência das sociedades humanas, o surgimento e a elaboração da cultura, a luta pela sobrevivência com a concomitante edificação de um sistema de práticas que podem ser consideradas como a base da economia, o surgimento e desenvolvimento das mais diversas formas de expressão e criação, as mudanças nos modos de pensar e de sentir ao longo dos séculos, tudo isto, e também as interferências impostas pelos homens no seu meio ambiente, constituem objetos de interesse dos historiadores, sempre considerados sob a perspectiva de suas transformações e permanências no tempo.
O tempo dos historiadores, portanto, é sempre um tempo humano. Ele não é o tempo dos físicos ou dos astrônomos. Tampouco é o tempo dos calendários ou da mera cronologia, ainda que destes modos de situar o tempo objetivamente o historiador precise se valer no decorrer de suas narrativas e análises historiográficas. Ao lado disto, um físico ou um astrônomo que observam os fenômenos celestes, materiais ou geológicos também podem pensar historicamente; mas não se trata aqui, obviamente, da mesma história dos historiadores.
[trecho extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 212, p.20-21].
[O TEMPO DOS HISTORIADORES E O TEMPO DO CALENDÁRIO]
Um sinal evidente da necessidade de diferenciar enfaticamente o tempo cronológico e o tempo da história é a não-coincidência entre os séculos dos historiadores e os séculos da cronologia, estes últimos contados de cem em cem anos. A proposta historiográfica que encontra mais respaldo entre os historiadores atuais, por exemplo, atribui novos limites ao século “XX”, que não os do calendário secular tradicional. Ao invés de começar em 1901, o “século XX dos historiadores” inicia-se em 1914 – data de eclosão da primeira das duas grandes guerras mundiais, as quais encaminham a devastadora crise dos imperialismos europeus e preparam todo o contexto da Guerra Fria e do estabelecimento de uma política internacional bipolarizada entre os Estados Unidos e a URSS. Este mesmo século que começou um pouco mais tarde termina um pouco mais cedo, em 1989 ou 1991, conforme se queira – já que estas são as datas, respectivamente, da queda do Muro de Berlim e da desagregação da União Soviética, encerrando o período de bipolarização política. Ao mesmo tempo, os anos 1990 já introduzem uma verdadeira reconfiguração tecnológica. Por isso, o historiador Eric Hobsbawm subtitulou seu livro sobre o século passado (a Era dos Extremos, 1994) como “o breve século XX”.
De igual maneira, os limites entre duas “eras” são sempre móveis, de acordo com a análise de cada historiador. Quando se encerra a Antiguidade Romana? Com o saque de Roma em 410, com a invasão vândala em 455, ou com a deposição de Rômulo Augusto em 476? Ou, mesmo antes, será que não devemos considerar, para finalidades de datação do fim da era antiga, a vitória devastadora dos godos sobre as legiões romanas em 378 d.C? Ou talvez, quem sabe, rejeitando todas estas datas pontuais, o fim da antiguidade não será melhor assinalado pelo novo papel que passa a desempenhar o Cristianismo nas sociedades agrupadas sob a égide do Império Romano? Os tempos dos historiadores, enfim, não precisam fazer nenhuma concessão, se não quiserem, aos limites bem arrumadinhos dos séculos cronológicos.
[extraído de 'O Tempo dos Historiadores'. Petrópolis: Editora Vozes, 2013p.26].
Falar em uma historiografia que seja cada vez mais abrangente – entenda-se: mais representativa ou mais inclusiva em relação a todas as possibilidades que possam interessar à sociedade – implica pelo menos três patamares de reflexão. Afinal, quando se quer saber algo sobre a abrangência de um campo de saber, podemos situar essa abrangência diante das seguintes questões fundamentais: (1) “Do que se fala”? (2) “Quem Fala”? (3) A quem se fala”?
Estas três perguntas fundamentais dirigem-se à compreensão, respectivamente, de três fatores que, de um modo ou de outro, estão sempre em permanente interação. São eles a ‘abrangência de temas’ (aquilo que o campo de saber estuda ou o seu universo de práticas); a ‘abrangência de autores’ (aqueles que se expressam através do campo, ou mesmo os que se acham diretamente representados pelos autores propriamente ditos); e, por fim, a ‘abrangência de públicos’ (aqueles a quem a mensagem é dirigida, ou que consumirão o conhecimento produzido pelo campo);
[extraído de 'Seis Desafios para a Historiografia do Novo Milênio'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019].
A experimentação voltada para a apreensão polifônica do mundo histórico apresenta-se como uma das muitas tarefas da historiografia do novo milênio. Não basta ao historiador reconhecer no mundo histórico os seus diversos personagens, portadores de singularidades e de posições ideológicas independentes, se, ao final da construção narrativa do historiador, estes personagens terminam por produzir, no seu conjunto de interações contraditórias, apenas uma única ideologia dominante. É preciso explorar alternativas para além deste padrão narrativo mais habitual no qual os historiadores, ainda que acostumados a administrar nos seus textos as diversas vozes sociais, nem sempre se empenham em transcender um modelo de escrita monódica no qual, no fim das contas, apenas uma única voz faz-se ouvir. Para que possa se realizar, a escrita polifônica precisa ser por um lado desejada (já que nem todos estão dispostos a abrir mão de um pensamento único). Por outro lado, o escrever polifônico também precisa ser aprendido. Podemos nos perguntar, mais uma vez, se a formação básica do historiador tem lhe proporcionado este aprendizado,
[extraído de 'Seis Desafios para a Historiografia no Novo Milênio'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019].
A História precisa ser abrangente em termos das demandas sociais a que atende e da diversidade de pontos de vista que ela pode expressar. Ao sustentarmos que “a História é Polifônica” , podemos reconhecer que cada voz social tem o direito de contar a sua história, isto é, de expor em linguagem historiográfica o seu ponto de vista. Haveria uma História a ser narrada por cada grupo social, por cada minoria, por cada gênero, por cada identidade que precisa se afirmar social ou culturalmente.
Multiplicar as vozes historiadoras é uma tarefa para as novas gerações que buscam uma historiografia inclusiva, e por isso é importante atrair para os cursos de graduação em História uma variedade grande de sujeitos sociais. No conjunto de trabalhos produzidos em um mundo ideal no qual todos tivessem a sua voz historiográfica, chegaríamos a uma razoável “polifonia de Histórias”. Seria possível alcançar uma desejada abrangência autoral através da montagem e congregação de diversas narrativas e análises – as quais, no fim das contas, terminariam por dialogar entre si de uma maneira ou de outra, como deve ocorrer com toda autêntica polifonia.
[extraído de 'Seis Desafios para a Historiografia no Novo Milênio'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019].
a possibilidade de elevação da capacidade crítica da população confronta muitos interesses, de modo que certas disciplinas críticas ligadas às ciências humanas – como é o caso da própria História – tornam-se por vezes indesejadas no currículo escolar, particularmente nos governos ditatoriais, nos estados de exceção, e nas economias em que se tornou extremada a exploração do trabalhador através de salários baixos e condições opressivas. Mais do que o aprendizado mais simples de “conteúdos de história”, incomoda a estes interesses, sobretudo, que nos alunos dos níveis fundamental e médio sejam estimuladas a ‘consciência histórica’ e a ‘capacidade crítica’. Cidadãos conscientes são homens e mulheres capazes de lutar pelos seus direitos e de lutar por melhores salários e condições de trabalho. Leitores críticos - capazes de decifrar textos ou de entender o que está por trás das distorções discursivas, da liberação seletiva e acrítica de algumas informações, do ocultamento de outras, da exposição de discursos descontextualizados, das manipulações de toda ordem - são homens e mulheres que não se deixam conduzir alienadamente. Ter consciência histórica é não apenas compreender melhor o passado, mas também perceber com maior acuidade e acurácia as possibilidades que oferecem para trilhar o futuro. A História conscientiza, proporciona capacidade crítica, fortalece identidades que nem sempre são as desejadas pelos poderes políticose econômicos dominantes. Entende-se por que a História costuma ser tão ameaçada nos sistemas ditatoriais, opressivos e superexploradores.
[extraído de 'Seis Desafios para a Historiografia no Novo Milênio'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019].
A criticidade é o produto mais refinado da História enquanto campo de saber. Dos historiadores mais ingênuos que aceitavam acriticamente as descrições depreciativas elaboradas pelos antigos senadores romanos sobre os Imperadores, seus rivais políticos imediatos, aos primeiros historicistas que situaram estas descrições nos seus contextos políticos, sociais e circunstanciais, há um primeiro salto relevante.
Destes primórdios da crítica documental aos dias de hoje, nos quais os historiadores diversificaram extraordinariamente as suas técnicas voltadas para a leitura e análise de textos, temos um potencial crítico-interpretativo que se desenvolveu extraordinariamente. Analisar os discursos presentes nas fontes, diga-se de passagem, requer a mesma capacidade crítica que deve ser conclamada para analisar os discursos contemporâneos. Por esta razão, quando alguém aprende a criticar fontes históricas de períodos anteriores, desenvolve concomitantemente a capacidade de criticar textos de sua própria época. Tenho a convicção de que a transferência social desta capacidade crítica é o bem mais precioso que os historiadores podem legar à sociedade que os acolhe.
[extraído de 'Seis Desafios para a Historiografia do Novo Milênio'. Petrópolis: Editora Vozes, 2019].
A MÚSICA
Escuta esta música, ao longe ...
Será um solo de clarinete?
Ou uma fantasia ao sax?
Ou, quem sabe talvez, uma elegia (!)
Para um instrumento ainda não criado
Não importa ...
Chega mais perto da Música,
Apruma teus ouvidos.
Ouve estes acordes.
Comprime teu rosto contra o peito
Da nota que soar mais alto.
Aí está ela,
Gritando emudecida
Entre todas as outras:
Pálida, de tanto afeto.
Afina agora teus ouvidos
para além do pulmão da nota
e para dentro dela.
Ouve a sua respiração
a um só tempo cansada
e infatigável
Percebes, no fundo dela, um secreto acorde
a pulsar como um coração sereno?
Ali esta ele,
Inteiro e pleno:
O acorde que contém a nota
A mesma que a si contém
Escuta
para além da escuta ...
– para além do ponto
onde não há mais ponto –
Se conseguires
terás ouvido o Som
– finalmente o Som –
O Som que há sob a pele,
abaixo de toda origem,
vibrando como um coração de tudo.
O Som, que é o próprio Som
Secreto, para além do Verbo ...
[publicado na revista Valittera, 2020]
[DINÂMICA ENTRE FLUXOS E FIXOS]
A relação entre os dois conceitos – fixos e fluxos (Milton Santos) – não é apenas complementar. A rigor, estabelecem-se aqui relações dialéticas: uma série está sempre modificando a outra. A estrutura de um edifício, a organização interna da materialidade de uma instituição, os objetos nela contidos – e outros inúmeros aspectos que configuram a forma de um fixo – podem ser modificados para atender à demanda de uma função voltada para assegurar ou redirecionar determinados tipos de fluxos. Generalizadamente, pode-se dizer que a tecnologia dos fixos, sua forma, seu lugar na estrutura social, adapta-se para atender à necessidade dos fluxos. Não obstante, o inverso também é verdadeiro, pois as modificações nos fixos permitem novos fluxos, modificam as suas possibilidades de circulação, os seus ritmos e velocidades.
Este aspecto nos lembra de mais um ponto importante. Diferentes tipos de fluxos possuem velocidades diferentes. Assim, “a velocidade de uma carta não é a de um telegrama, de um telex, e de um fax” . Hoje, poderíamos acrescentar, nada se compara à velocidade dos fluxos de informações que circulam na rede mundial de computadores.
Os fluxos, enfim, atravessam o espaço, percorrem-no, circulam por toda a sua extensão, conduzem ações, decisões, eletricidade. “O espaço é teatro com fluxos de diferentes níveis, intensidades e orientações. Há fluxos hegemônicos e fluxos hegemonizados, fluxos mais rápidos e eficazes e fluxos mais lentos” . De resto, os fluxos estabelecem ligações entre os fixos, como vimos nos diversos exemplos e como podemos observar por toda parte. Alimentam-nos; suprem-nos de informação, de energia, de produtos diversos. E, em muitos casos, fazem com que esta energia, esta informação, estes produtos – ou o que mais conduzam no seu fluir – passem de um fixo a outro, estejam estes próximos ou distantes. No primeiro caso, temos fluxos locais. Para além deles, os fluxos podem ligar enormes distâncias, constituindo-se em escala nacional ou global.
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.72-73].
[FORMA E FUNÇÃO NA GEOGRAFIA]
A forma, de maneira mais simples, pode ser definida como o aspecto visível de qualquer coisa. É resultado imediato da própria materialidade dos objetos físicos, ao ocuparem certo lugar no espaço. Ou, então, pode ser ainda resultado dos efeitos no espaço produzidos por qualquer fenômeno. A eletricidade, ao se projetar no espaço, pode produzir formas; a trajetória de um cometa, ao atravessar o céu, deixa em seu rastro de fogo uma forma visível.
As subdivisões do espaço, ou os arranjos dos objetos em um determinado recorte do espaço, também dizem respeito a formas. Quando pensamos em formas, consideramos a organização interna do espaço produzido pelos objetos ou pelos grandes conjuntos de objetos. Um edifício, por exemplo, além de apresentar contornos externos bem definidos, apresenta também uma forma interna: talvez ele seja subdividido em diversos andares, e estes andares em muitas salas e corredores. Uma fazenda, além da extensão e formato do terreno que ocupa, também apresenta os seus espaços internos.
As paisagens, conceito que já discutimos, são essencialmente formas produzidas por elementos presentes no espaço que são percebidos por um observador a partir de certo ponto de vista. As regiões – compreendidas como recortes no espaço realizados ou pensados a partir de certos critérios – também apresentam formas bem definidas: têm contornos externos, uma extensão no espaço, uma organização interna de seus objetos e elementos.
Um objeto, além de ter sua forma, pode desempenhar funções ao se ver inserido em conjuntos ou universos mais amplos (o meio ecológico, ou uma sociedade humana, por exemplo). Um rio, visto à distância, não apenas apresenta a forma de uma caudalosa linha de águas em movimento, como desempenha a função natural de conduzir água através de muitas áreas do espaço, contribuindo para o afloramento e manutenção da própria vida. Ao lado disso, a tecnologia pode dele se apropriar para a função de fornecer energia, inserindo-o como elemento central em um sistema hidroelétrico cuja finalidade será a conversão da energia hidráulica em energia elétrica. A forma do rio, neste caso, assume uma função. Por isso, e em vista de outros exemplos de objetos naturais ou criados pelo homem, pode-se dizer que “a função é a atividade elementar de que a forma se reveste” .
Ao inverso, e no interior de certos sistemas, pode-se ainda dizer que a forma corresponde a uma estrutura ou objeto responsável pela execução ou desempenho de determinada função. Nada impede, também, que uma mesma forma desempenhe várias funções. É assim que a ponte que se curva sobre o rio tem sua forma derivada do casamento de duas funções: a de conduzir veículos ou pessoas de uma margem a outra; e a de permitir, abaixo de si, a passagem de embarcações. O abaulamento é a solução formal que permite ao objeto-ponte abrigar o convívio das duas funções. Uma mesma forma pode, ainda, participar simultaneamente de sistemas diferentes. Um rio pode desempenhar uma função no sistema da natureza, outra em uma unidade de produção de energia, outra em um sistema turístico.
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.67-69].
[A PAISAGEM NO ESPAÇO-TEMPO]
Neste momento, contemplo uma paisagem. Há uma pedra no caminho (subitamente me lembro do poema). Ela é antiga como a Terra, mas isso no momento não importa. De qualquer maneira, é bruta, jamais trabalhada pelos homens de qualquer tribo ou civilização, Atraído pelo ruído suave das águas (ou terei imaginado isto?), meu olhar volta-se subitamente para o pequeno rio urbano, canalizado em meados do século XIX. O encanamento, contudo, já era naquele momento a substituição de um outro, construído vinte e oito anos antes (cheguei a ler o documento que registra o primeiro plano de captação, em um velho arquivo público). A atual calha que contém o traçado do rio, para evitar pequenas enchentes nos dias chuvosos, ali está desde meados do século XX, mas sofreu reparos recentes, por causa das olimpíadas de 2016.
O rio tinha seu nome tupi-guarani por causa dos papagaios que nele vinham se alimentar desde os séculos anteriores, mas a poluição das últimas décadas do século XX já os afastou há muito. Todavia, foram substituídos por aquelas garças, de dieta alimentar menos exigente, que vivem em um zoológico mais distante. Há uma árvore, duas, três, e mais, nas suas margens, sendo que cada uma tem uma idade diferente. Cada uma delas canta a sua própria imponência, na minha imaginação. Mas sou despertado deste devaneio por um outro ruído, este de verdade. É um rolar maquinal, que adentra a paisagem sonora como uma dissonância. A muitos e muitos passos do rio, há uma abertura para o chão. O metrô tem 25 anos, mas aquela estação foi agregada há apenas três anos, e agora oferece aos passantes a sua entrada. Entre ela e o rio enfileiram-se edifícios de diversas idades, de cada lado da rua asfaltada (com exceção de um curioso trecho de paralelepípedos, talvez esquecido pelas últimas administrações públicas).
Há também uma casa muito antiga, do início do século passado. Terá sido tombada? Sobrevive. Alguns automóveis, há muito eu não via um opala, movimentam-se discretamente na rua de mão única. Formam um pequeno fluxo. Seguem por ali, em meia velocidade, e logo vão desaparecer sem deixar vestígios. Por enquanto, todavia, fazem parte do acorde visual da paisagem. Registrei tudo, em minhas anotações. Mas agora me dirijo ao Metrô.
Ao entrar naquela estrutura moderna, que por sobre trilhos me conduzirá através de um conduto contemporâneo tão bem incrustado em uma pedra de milhões de anos, anterior ao surgimento da própria vida sobre a Terra, espero chegar em vinte minutos ao centro da cidade. Ali, naquela alternância de avenidas asfaltadas e ruas estreitas, por vezes talhadas em paralelepípedos, novos acordes de espaço-tempo me esperam. Sem ânsia maior de me mostrar a superposição de cidades que escondem e revelam, eles me indagarão, como se ressoassem do fundo de um verso: “Trouxeste a chave”? A todos perguntam a mesma coisa, indiferentes à resposta que lhe derem .
Já me demoro demais. Andar pelo espaço é viajar pelo o tempo. Retorno, será mais seguro, à reflexão histórico-geográfica
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p. 59-60]
[DIVERSIDADE NA PERCEPÇÃO DAS PAISAGENS]
Há uma paisagem da guerra, da miséria, da fome, do medo, das classes sociais em luta, da religiosidade, do lazer, da tecnologia, da moda, dos estilos arquitetônicos, do controle disciplinar, do poder midiático que se espraia sobre uma região e aí estabelece seu domínio e práticas manipuladoras sobre a população local. Estas diversas paisagens referentes a extratos específicos de problemas, ou a instâncias singulares da realidade, às vezes são perceptíveis espontaneamente, outras vezes não
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.56].
[DINAMISMO DAS PAISAGENS]
Metaforicamente falando, a passagem da discussão geográfica clássica sobre paisagens para as problematizações contemporâneas envolve a transição de uma perspectiva mais ‘fotográfica’ para uma perspectiva mais ‘cinematográfica’ de paisagem. No caso das paisagens urbanas, é bem evidente este jogo entre mutações e permanências.
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.55]
[CONCEITOS DA GEOGRAFIA]
Os três fatores centrais nos estudos historiográficos - o fator humano, o fator espacial e o fator material (meio( - demandam cada qual uma certa ordem de conceitos; e há também conceitos que se estabelecem nos seus interstícios, ou nas relações entre dois fatores ( homem e o meio; o meio e o espaço. o espaço e o homem). Por fim, há conceitos que envolvem os três fatores de uma só vez.
Os conceitos que se desdobram são inúmeros: os que abarcam o mundo social e humano (população, classe social, gerações e gêneros); os que dividem o espaço (região, área, zona) - ou os que combinam divisão do espaço e organização social humana, como o de 'território', entre muitos outros conceitos que se situam em pontos nodais entre duas ordens. Assim, a 'paisagem' pode ser entendida como um conceito que surge na envolvência entre o espaço e a materialidade (seja esta a materialidade natural ou a materialidade construída pelo homem). O conceito de ''forma' ajuda a compreender tanto o meio como o espaço; e o de 'processo' diz respeito aos três pontos da nossa tríade. Os exemplos se multiplicam. Os conceitos de 'fixos' e 'fluxos' estão no espaço, no meio e no mundo humano, e configuram 'formas' no mesmo momento em que ensejam 'processos'.
O Tempo, é claro, oferece ainda uma chave conceitual imprescindível à Geografia - ciência que, por fim, desenvolveu também os seus conceitos operacionais, como o de 'escala'.
[extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.24]
[DEFINIÇÃO DE GEOGRAFIA - 3]
A Geografia integra-se simultaneamente às Ciências Humanas, às Ciências da Vida, às Ciências da Terra. Habitualmente, ela estuda todas as interações que se dão no interior de uma tríade: o Humano, o Meio, o Espaço. Quando a vida humana é pensada como um caso particular da Vida, no seu sentido mais amplo, a Geografia mostra a sua face como ciência da vida ou ciência natural - e, na tríade conceitual que está no centro da ciência geográfica, o conceito de Bioma substitui o conceito de Humano.