Coleção pessoal de joseassun
TRISTEZA MARAVILHOSA
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Rio de Janeiro,
sob teu corpo de concreto
teu santo padroeiro
dorme, como um feto.
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Ainda não nasceu, teu santo,
ainda é cedo para o milagre;
e a lágrima doce do teu pranto
não é vinho, é só vinagre.
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Baía de Guanabara,
como mente o teu postal.
Vejo fome em pau-de-arara
sob a camada social.
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Queria entender teu segredo,
tua miséria, tua mentira;
mas o que vejo é o degredo
que escapa da tua mira.
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Seres humanos migratórios
compelidos à mudança
cujos mortos compulsórios
são produtos da esperança.
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Rio, Deus te abençoe,
e do alto do Corcovado
em pedra o Cristo nos perdoe
por teu índio dizimado.
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Cidade Maravilhosa,
herança dos guaranis...
na tua culpa misteriosa
guarda a lembrança dos brasis.
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Rio, cidade poesia,
olha teu negro na construção;
não lhe conceda alforria:
tu és a própria escravidão.
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Rio, alguém que tardia
espreita em teu carnaval;
sobre a tua fantasia
jaz a beleza de um postal.
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Rio de Janeiro,
teu caminho não é reto;
ao sul do teu cruzeiro,
um voto vira um veto.
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Ainda não nasceu teu quebranto,
ainda é cedo para o céu;
e a cachaça do pai de santo,
não é néctar, é só mel.
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[BARROS, José D'Assunção. Publicado na revista Insurgência, 2023]
O PAREDÃO MARIANO
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Os anjos libertadores,
incumbidos de trazer a chave da Sociedade Livre,
morreram todos no Paredão Mariano.
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Não me lembro se foram fuzilados,
se fluíram por um corte na garganta,
ou se alguns morreram de gripe...
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O que sei é que sua marca ficou nos muros
que foram pichados pelas cidades
de países passados e futuros.
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Os anjos libertadores
morreram por uma venda
no Paredão Mariano.
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O Paredão Mariano não existe.
Sua pedra e sua largura
são por conta da imaginação do poeta;
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mas sua imagem me veio tão nítida,
como se fosse o sonho de um pesadelo vivo,
que herdei o desespero dos condenados.
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O Paredão Mariano:
a dureza das suas paredes frias
... o horizonte de metralhadoras e fuzis
prestes a roubar a vida.
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O Paredão Mariano não existe:
sua pedra e sua largura
são ficções de um poeta louco.
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Não há registro histórico;
mas seus olhos me gritam tanto,
e sonhar é tão pouco...
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O que foi feito dos anjos libertadores
diante do horizonte de metralhadoras?
Em forma de brilhos, terão sobrevivido?
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Será que, em música, foram convertidos,
e hoje trilham no céu noturno
o leite alegre das estrelas?
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E o Paredão Mariano, que não existe?
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Existirá, por ventura,
em algum ponto da memória
de futuros torturadores?
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[BARROS, José D'Assunção. Sintonia Fina, 2022]]
A PESQUISA CIENTÍFICA É UMA VIAGEM
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“Iniciar uma Pesquisa, em qualquer campo do conhecimento humano, é partir para uma viagem instigante e desafiadora. Mas trata-se decerto de uma viagem diferente, onde já não se pode contar com um caminho preexistente que bastará ser percorrido após a decisão de partir.
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Se qualquer viagem traz consigo uma sensação de novidade e de confronto com o desconhecido, a viagem do conhecimento depara-se adicionalmente com a inédita realidade de que o caminho da Pesquisa deve ser construído a cada momento pelo próprio pesquisador. Até mesmo a escolha do lugar a ser alcançado ou visitado não é mera questão de apontar o dedo para um ponto do mapa, pois este lugar deve ser também ele construído a partir da imaginação e da criatividade do investigador.
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Delimitado o tema, o problema a ser investigado, ou os objetivos a serem atingidos, o pesquisador deverá em seguida produzir ou constituir os seus próprios materiais – pois não os encontrará prontos em uma agência de viagens ou em uma loja de artigos apropriados para a ocasião – e isto inclui desde os instrumentos necessários à empreitada até os modos de utilizá-los.
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É assim que, se qualquer viagem necessita de um cuidadoso planejamento – de um roteiro que estabeleça as etapas a serem cumpridas e que administre os recursos e o tempo disponível – mais ainda a viagem da Pesquisa Científica necessitará deste instrumento de planejamento, que neste caso também será um instrumento de elaboração dos próprios materiais de que se servirá o viajante na sua aventura em busca da construção do conhecimento. Este é o papel do Projeto na Pesquisa Científica”
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[BARROS, José D'Assunção. ‘O Projeto de Pesquisa em História”. Petrópolis: Editora Vozes, 2004]
DA SOCIEDADE INDUSTRIAL À SOCIEDADE DIGITAL
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“Sintetizemos este grande movimento entre os diferentes patamares de conhecimentos científicos que demarcam o caminho da Era Industrial à Era Digital. Com o nível científico alcançado pelas leis de Newton e pelas leis da termodinâmica – e, mais tarde, com a revolução eletromagnética que se tornou possível a partir das leis de Maxwell – vimos que a compreensão e controle do mundo cotidiano havia se expandido admiravelmente, abrindo os portais para a Era Industrial com suas duas revoluções, a mecânica e a elétrica. Mas com o nível alcançado pela combinação entre a física quântica e a relativística, no início do século XX – portanto no auge da Era Industrial – pôde-se agregar a isto tanto a compreensão do universo de escala microscópica dos elétrons e átomos, como uma melhor compreensão do universo de escala macroscópica da estrelas e galáxias.
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Este novo limiar abre os portais para a possibilidade de adentrar a Era Digital que iria se instalar décadas depois, em meados dos anos 1990. Para todos os casos, é interessante observar como os desenvolvimentos de conhecimentos científicos e inovações tecnológicas produzidos em certa Era tanto ajudam a entretecer a sociedade típica de sua época, como abre caminhos para a Era seguinte. A Era Digital não teria sido possível sem o desenvolvimento da Era Industrial, e esta dependeu de desenvolvimentos que ocorreram nas Eras que a antecederam. Os elos e saltos tecnológicos permitem que os historiadores da ciência desfiem uma história polifônica nas quais algumas melodias se desdobram de outras e todas terminam por interagir entre si, sendo importante lembrar que os progressos tecnológicos não correspondem necessariamente a concomitantes progressos sociais ou espirituais. Para o que nos interessa neste momento, a revolução digital não teria sido possível sem a combinação e desenvolvimento paralelo da física quântica e da teoria da relatividade”
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[BARROS, José D’Assunção. História Digital. Petrópolis: Editora Vozes, 2022. p.28].
A PONTE
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Uma ponte amarela,
abaulada sobre o rio...
Sem dizer palavra,
ela diz tudo, fio contra fio.
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Eloquente, fala-nos sobre os fluxos de gentes
a passar de um para o outro lado
do rio.
Mas também fala dos barcos
a lhe ditarem a forma:
profundo pacto
entre os homens e mulheres,
desejosos de passar por cima,
e os barcos e jangadas
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convocados a seguir por baixo.
Este curvar da ponte, humilde e quase sacro,
é a mais sutil forma do acordo
– o produto profano de um pacto –
entre todos os que queriam ir e vir:
seja na forma de passantes,
seja nos modos navegantes.
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Na Ponte – há mais – o olhar encontra
corrimãos que falam
dos que caíram n’água.
Dizem-nos alguma coisa sobre a desatenção,
sobre a imperícia,
sobre a brutalidade do empurrão.
Talvez, quem sabe,
escondam o comovente segredo de um suicida,
ou de um simples e alegre acenar de mão.
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Será, que a ponte, que liga as margens,
é também passagem
para o Outro Lado?
Será ela a cura
para a aflição?
Quantos ali deixaram seu último salto,
o derradeiro gesto
– o silêncio vivo que enfim precede
o calar eterno?
Quantos lá não abandonaram seu último grito mudo
estendido e tingido por sobre a ponte
Como se tudo... viesse de dentro de um quadro?
(E este quadro, ele mesmo atormentado,
não estaria preso à parede exposta
de alguma dimensão secreta?)
Eis que a ponte prossegue
nos dizendo tantas coisas
sobre o rio e sobre tudo.
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É amarela:
de um amarelo-berro...
Somente isso me escapa ao faro.
Porque não verde, vermelha – azul?
Como um sol estendido em linha,
ou o arco-íris de uma só cor,
ela permanece ali,
sem revelar o último dos seus mistérios:
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Uma ponte amarela
sobre o rio, sobre a vida.
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José D'Assunção Barros
[publicado na revista Opiniães, 2023]
O QUE É ABSTRAÇÃO?
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"Quando estamos diante de um objeto concreto ou de uma cena, temos perante nossos sentidos e possibilidades de percepção um fragmento da realidade que reúne uma miríade de características e especificidades. Abstrair, no entanto, é a capacidade de desconsiderar este emaranhado de aspectos que constituem a totalidade concreta do objeto abordado e considerar só aqueles aspectos que nos interessam.
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O homem paleolítico começou a se distinguir de outros animais quando passou a olhar para os galhos caídos ao chão de uma nova maneira, deixando de enxergá-los como o que são concretamente – isto é, abstraindo uma série de elementos que fazem de cada galho um objeto único – para passar a enxergar este ou aquele galho como um “apanhador de frutas”. Visto desta nova maneira – com a abstração de todas as características desnecessárias e a preservação, na mente, apenas das propriedades de solidez e forma alongada do galho – este objeto pôde assumir a função de cutucar uma árvore para precipitar a queda de um fruto. A abstração, enfim, transformou o galho seco em um “apanhador de frutas” – um instrumento capaz de interferir e modificar a realidade, no caso expandindo a capacidade manual de se disponibilizar de alimentos.
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Com a capacidade de abstração, os seres humanos começaram a transformar pedras pontiagudas em armas, troncos flutuantes em pequenas embarcações improvisadas. Ainda no período paleolítico, passariam a juntar diferentes objetos para construir ferramentas sofisticadas: lanças de ponta de sílex, machados de pedra, agulhas. Com a capacidade de abstração, logo desenvolveriam a linguagem simbólica, e também aprenderiam a contar.
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Por fim, os seres humanos aprenderiam a conceituar. O conceito é o produto mais refinado da capacidade de abstrair, já que, para conceituar, precisamos nos abstrair de alguns aspectos concretos para passar a enxergar mentalmente apenas aquilo que nos interessa. Abstrair é o ato de abandonar momentaneamente a realidade concreta – ou deslocá-la, por instantes, para um contracanto – de modo a recriar uma outra realidade: operacional, funcional, referencial, audaciosa, liberta de amarras"
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[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção, O Uso dos Conceitos: uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.38-39]
"
A TERRA PLANA
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Descobriram que. a Terra é plana
e as pessoas chatas.
Definiram, de vez por todas,
que a humanidade insana
não vale um dobrão de prata
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Ah, deuses da virgem mata!
A Gangue dos Decibéis
com dois toscos pares de régua
redesenhou um universo
andrajoso e deselegante
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A Terra, tão coitada como arrogante,
tornou-se uma prisão de gelo
que olha para o restante espaço
à maneira de um estranho prato
de borda dura como a lei
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O Sol, outrora um rei,
de sua ideologia de gênero
foi pomposamente destronado
e agora corre, corre, corre
humilde e desesperado
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Mero pimpolho, de fogo endiabrado,
tem agora o tamanho da Lua
e ambos são bolinhas simplórias
que correm uma atrás da outra
como cão e cadela em cio
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E, falando em cão, por desafio,
era tudo conspiração
desde as mais das priscas eras
desde as sociedades secretas
que se escondem sob o chão
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Com a terra plana, de roldão,
toda ciência se dissolveu
As matemáticas se danaram.
a gravidade saiu flutuando
como bolhas (ou moedas) de sabão
[publicado em Scriptorium, vol.7, nº1, 2021]
Não existe socialismo pleno sem democracia. Comparo tal formação social a um corpo sem alma, ou a uma espécie de sociedade de formigas. Neste tipo de aleijão sociopolítico, a riqueza social pode ter sido distribuída, mas a liberdade não foi compartilhada. Enquanto isso, também não existe democracia plena sem socialismo. Tal formação social configura uma grande mentira; é algo como uma alma perdida no limbo, sem possuir um verdadeiro corpo. De que vale o direito de ir e vir se não temos recursos para comprar a passagem? Efetivamente, não existe Capitalismo com Democracia. Nas ''democracias' liberais, é impressionante o incessante trabalho histórico que precisa ser feito diariamente - através do controle das mídias, da desinformação, da Educação coibida ou manipulada, do encobrimento da parcialidade jurídica - para não ficar evidente a todos que Capitalismo e Democracia são totalmente incompatíveis. A incompatibilidade entre democracia e capitalismo está sempre lá, embora as vezes mais ou menos encoberta;. Mas há momentos em que esta contradição fica bem exposta, como uma imensa ferida à flor da pele. Todos podem vê-la, embora alguns finjam não enxergá-la, e outros desviem os olhos.
[BARROS, José D'Assunção. Páginas de um Diário Não Escrito]
A miséria, a solidão, o desemprego - e mesmo a desfuncionalidade, que é o destino de uma ampla maioria de pessoas que não trabalham com aquilo que amam ou para o qual são vocacionadas - não são, de modo algum, fracassos pessoais, mas sim fracassos do sistema que produz estas anomalias e as transforma em regra. Em um mundo verdadeiramente harmônico todos encontrariam um trabalho que gostassem de fazer, ou no qual se sentissem valorizados. Todos também seriam bem renumerados por aquilo que fazem bem, e a fome e a miséria seriam apenas vagas referências históricas que os ajudariam a valorizar ainda mais a plenitude da vida. Também não haveria solidão e inadaptação social, pois todos encontrariam os espaços de sociabilidade apropriados e seriam apresentados àqueles com os quais poderiam compartilhar a felicidade.
Mas o que ocorre neste sistema que nos escraviza, isola-nos uns dos outros, desfuncionaliza nossas existências profissionais e nos coloca diariamente diante da miséria - nossa ou de nossos semelhantes - é que cada um destes fracassos é atribuído aos indivíduos que deles padecem. São na verdade fracassos do próprio sistema. O dia que todos compreendessem isso também seria o dia em que saberíamos que o desemprego é responsabilidade de todos, assim como a solidão e as inadaptações sociais de todos os tipos. De alguma maneira, também temos de enfrentar o fato de que, se ocorrem diariamente crimes de todos os tipos, isso não se dá apenas por causa de uma maldade individual propriamente dita, mas porque o sistema é criminoso, como um todo, e porque produz criminosos. O racismo ocorre porque estamos imersos em um sistema racista; de maneira análoga, não são os homens que são sexistas - o sistema é que é sexista.
Como sair deste círculo vicioso? Despertar, de um ponto de vista individual, é já um começo, mas ainda não é uma solução. Precisamos despertar coletivamente. Mas como vencer as forças que nos mantém no sono, que vivem do nosso sono, que cultivam a nossa inconsciência coletiva?
[BARROS, José D'Assunção. Páginas de um Diário]
[AS TRÊS QUESTÕES EXISTENCIAIS FUNDAMENTAIS, E O ACORDE DA VIDA]
Existem três grandes perguntas que sempre intrigaram os seres humanos. Qual foi a origem do Universo? Como começou a Vida? Como surgiu a Consciência? Estas são as três perguntas de maior profundidade existencial que podemos fazer; embora, para elas, não tenhamos respostas mais efetivas, senão aquelas produzidas com algum teor especulativo. De um ponto de vista mais científico, os físicos desenvolveram algumas hipóteses instigantes sobre a primeira das três perguntas, tomando por base a observação de certos indícios como a expansão acelerada do universo visível . Quanto às duas outras perguntas – a origem da vida e a origem da consciência – pouco sabemos. Não sabemos, por exemplo, se a vida é um fenômeno isolado, que aconteceu no planeta Terra, ou se também ocorreu em outros pontos deste vasto universo constituído de bilhões e bilhões de estrelas. Não sabemos por que a vida começou, nem como se deu este milagre (ou extraordinário acaso) que teria sido o surgimento da vida em meio à matéria inerte e inorgânica.
Não obstante não termos acesso ao por que e ao como, sabemos com considerável precisão quando surgiu a vida em nosso planeta – pois a ciência se capacitou para ler esta informação em registros fósseis e microfósseis de todos os tipos. Sabemos também quais sãos os elementos necessários à existência da vida. Talvez ainda venha a ser descoberta um dia alguma peça que esteja faltando neste intrigante quebra-cabeça, mas de maneira mais geral podemos descrever com alguma precisão a combinação de elementos e fatores que possibilitaram e possibilitam a existência dos vários tipos de vida que até hoje conhecemos. Além disso, existe ainda um conjunto irredutível de elementos e propriedades que são compartilhados por todos os seres vivos, da mais singela bactéria ao mais complexo dos seres pluricelulares. Este conjunto mínimo de elementos necessários que caracteriza todo e qualquer ser vivo, inclusive o homem, é o que chamaremos de ‘acorde da vida’.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.223-224].
[DEFINIÇÃO ESTRUTURAL DE CONCEITO]
Um conceito é uma estrutura harmônica de sentidos, cuja 'compreensão' é constituída por diversas 'notas' que interagem umas sobre as outras (e todas elas sobre o todo).
[trecho de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.158].
[DEFINIÇÃO DE MÚSICA]
A Música pode ser definida como a arte que organiza sons de modo a produzir resultados e efeitos diversos nos seres humanos – sendo que os homens e mulheres tanto podem produzi-la como criadores (compositores, instrumentistas, etc), como consumi-la em um processo de audição que não deixa de ser também criativo. Além daquela finalidade estética que nos é tão familiar em muitas das sociedades conhecidas, a Música também pode se associar a inúmeras outras práticas. Assim, quando uma música desenvolve certos ritmos, pode mobilizar os seres humanos para a Dança – uma arte que não tem muito sentido senão associada à Música. Em muitas sociedades, como as indígenas, a Música pode ainda assumir uma importante função de trazer coesão e sociabilidade ao grupo, assim como pode ocupar um lugar proeminente em certos rituais e ritos de passagem. Isso também não é estranho às nossas sociedades ditas “civilizadas”, e não é difícil imaginar inúmeras situações nas quais a Música desempenha um relevante papel social ou ritualístico. Posto isto, podemos pensar efetivamente a Música como uma arte entre outras, capaz de desenvolver as suas próprias finalidades estéticas. Seria uma longa discussão, que não caberia propriamente neste ensaio, aquela que poderia mostrar que – embora a função estética da Música frequentemente se volte para a produção de efeitos associáveis à beleza – inúmeras outras sensações podem ser inspiradas nos seres humanos através das músicas que estes escutam.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.133].
[CORPORATIVISMO NA HISTORIOGRAFIA]
Embora ocasionalmente um certo sentimento corporativo leve alguns dos historiadores de formação – ou seja, aqueles que se graduaram em História em uma universidade – a apenas considerarem como historiografia aquilo que foi produzido pelos historiadores profissionais e graduados, não vejo nenhum problema em que também consideremos como historiografia as obras produzidas por historiadores não-especializados. Há muitas maneiras de nos aproximarmos adequadamente, e de modo sério, de um determinado campo de saber, que não necessariamente através dos bancos escolares superiores. Dito isto, é claro que aqueles que pretendem escrever História sem terem se formado em História – se desejarem realmente escrever algo relevante e bem aceito na área – precisarão se aproximar seriamente do modus operandi dos historiadores, dos procedimentos bem aceitos no campo, das suas metodologias, dos seus modos de trabalhar conceitualmente evitando deslizes que são muito comuns entre aqueles que não estão efetivamente familiarizados com a ciência histórica.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "Historiografia: todas as relações possíveis" In: A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.17].
A REGRA DO ESTADO DE EXCEÇÃO
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A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando lhe invadem as casas
Quando violentam as suas intimidades
Quando lhe pedem documentos com aquela cara
De “tu és ladrão”
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A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando não lhe deixam sair mais com a sua cor predileta
Quando a fuzilam – primeiro com os olhos –
Por causa de suas opiniões
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Também percebe a ditadura, a Boa Classe Média,
Quando lhe dirigem preconceitos de cor
Apesar dos seus ternos cuidadosamente engomados
Agora, suas mulheres ouvem piadas
E o assédio dos chefes foi liberado.
Seus filhos são preteridos,
quando tentam entrar para certas universidades,
pois estas são destinadas aos de maior patente
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A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando arrombam a porta de suas casas
Quando mancham de fardas policiais o seu lar
Quando lhe despejam o arrogante arbítrio
Como um balde gelado de água
Quando lhe tiram o emprego sem aviso prévio
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Já os pobres, estes mal percebem as ditaduras,
Pois já fazem todas essas coisas com eles
Durante todo o tempo
[publicado na revista Nós, vol.2, nº3, 2021].
POR QUE SOU LADRÃO
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Por que sou ladrão?
Esta pergunta me fez
O fiscal da transgressão
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Senhor, porque estudei...
Como porque estudaste?
Retruca-me o bom fiscal,
Pedindo explicação.
O que estudaste que justifica
Que tu sejas um ladrão?
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Respondi-lhe, a contragosto:
Economia, História, Meteorologia,
Religião...
Apatetado, sem pouco crer,
Volta-me o fiscal
– Bom fiscal da transgressão:
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Até a Religião?
Principalmente
A de todo o bom cristão...
Afinal, não esteve junto a Cristo
O bom ladrão?
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A questão, meu bom fiscal,
Não é se tu és ladrão
Mas se és um bom ladrão
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Deixemos então em paz
A ciência da religião
Em que a Economia te autoriza
A ser um bom ladrão?
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Vá lá, meu bom fiscal...
Já ouviste falar
Que a propriedade é um roubo?
Quem o disse foi Proudhon
Mas quem sentiu pela vez primeira:
Foi operário, camponês, escravo
Ou qualquer trabalhador
Sob a clave da exploração.
E ainda acrescento o dito de Lenin,
Profeta da Revolução:
O que é o roubo de um banco
Diante da fundação?
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Incorrigível Ladrão,
Deixemos a Economia...
Estudaste também a História?
Em que te ajuda, na questão?
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Ah, meu caro fiscal
Estudei todos os temas
Das guerras ao comércio,
Da realeza à escravidão
Da livre empresa
À colonização.
Seria possível chegar
Partindo-se de um ponto da História
A qualquer outra conclusão?
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Para! Sinto que não há fim
Se adentrarmos esta ciência.
Também disseste algures,
em teu relatório confuso,
Que foi a Meteorologia
Que te ensinou a ser ladrão?
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Senhor bom fiscal,
Estudei, como aprendiz,
As propriedades do ar
Cruciais para a respiração
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Se fosse sólido
Não passava pelo pulmão
Se fosse líquido
Derramava-se no chão
Se tivesse cheiro
Rescendia a poluição
Se fosse visível (preto, talvez)
Virava tudo escuridão
O ar é desse jeito
Porque, segundo creio,
Assim o fez a Criação
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O ar, no corpo,
Diz algo
Mas espalhado no mundo diz tudo
Fala-nos de tempestades
Explica-nos o tempo bom.
Concentrado ou diluído
Difunde-se enquanto gera
Sua própria distribuição
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Sim, mas e daí com isso?
Disseste que as propriedades do ar
– Ou compreendê-las –
Fizeram de ti ladrão?
.
É que a certa altura, meu bom fiscal,
Eu flexionei a questão.
Pus-me a perguntar, a certo clarão,
E a certa altura do diapasão,
Não pelas propriedades do ar
Mas pela propriedade do mesmo
Dita no singular
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Imagina um meliante
Este sim,
O verdadeiro ladrão
(Não como estes, que apenas roubaram
Um litro de leite,
A passagem de um trem,
Uma bala de açúcar,
ou um pedaço de pão)
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Nosso meliante inventa uma máquina
Capaz de sugar todo ar
E depois o começa a vender
Todo o ar do planeta
A dois reais a ração
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E a partir daí tem cada vivente
Ao comando de sua mão
Subjugado e indefeso
– Revertido à escravidão!
Diante da propriedade do ar
Não acharias justa e necessária
Uma boa rebelião?
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E se esta ainda não vem
Não acharias mais justo
Que lhe invadissem a mansão
Para respirar da cruel máquina
O ar roubado pelo mau ladrão?
.
Agora, meu bom fiscal,
Troca o ar pela terra que pisamos,
Pelo tempo de nossas vidas,
Pela saúde arrancada
Ao camponês, de antemão
– Aquele que é explorado de sol a pique
Condenado à velhice, ainda jovem,
Se não morrer de insolação
.
Troca o ar pela própria vida
Do soldado condenado à morte
(Sua e de seus irmãos)
Aquele soldado infeliz
Que ao contrário do General
Não espia a guerra do alto
De um posto de observação
Ali está ele, dormindo em pé,
Condenado a desarmar minas
Quando não é bucha de canhão
.
Ou, por fim, troca o ar
Pelo teu trabalho digno
Já que te fizeram aceitar
(Para não ficar do outro lado)
Ser um fiscal de transgressão
.
Para, chega!! Vai-te embora
Sinto que, se ficas mais um pouco,
Vais me roubar o coração!
A propósito, por curiosidade,
Qual foi mesmo o teu delito?
Dize-me com precisão.
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E antes de sair,
Olharam-se o bom fiscal
E, claro,
Este que vos fala,
um simples bom ladrão:
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Roubei
Um pedaço de chão
[publicado em Transgressões, vol.9, nº1]
PINDORAMA CONTRA BRAZIL
Pindorama estava em guerra
Contra um país chamado Brazil
E uma gente vestida em verde
Veio convocar a juventude
Para lutar do lado errado
Aos que não foram, deram um paredão
Uma venda e um pelotão do outro lado
E uma coisa abstrata chamada morte
Mas que talvez não passasse de uma passagem
Para o Campo de Caça Feliz
Aos que foram, deram um fuzil
Prometeram uma medalha e disseram
– Vai, e me traz um índio!
Aquela guerra estava fadada a não terminar nunca
Porque também era a guerra contra os passarinhos
Contra as borboletas, e o que sobrou de ar puro
Para vencê-la, seria preciso matá-los todos
Ou convertê-los à cor cinza
Quanto a mim – este índio civilizado –
Ficarei para sempre no espaço
Intermediário que chamam de limbo
... A floresta, ali não entrarei
A cidade... jamais entrará em mim...
[publicado em Ponto de Vista, vol.10, nª1, 2021]
[HISTORIOGRAFIA - Definição]
A Historiografia – ou História – pode ser compreendida como o vasto universo de realizações produzidas até hoje por todos os historiadores e autores de História. Neste sentido, a Historiografia é a “História escrita”; de modo que não é à toa que a expressão indica literalmente isto (historio-grafia). Oportunamente, veremos ainda que – se o universo de realizações historiográficas inclui tudo o que já foi produzido em termos de livros de história, artigos ou conferências sobre os mais diversos temas históricos – há muito mais que isto envolvido na ideia de historiografia. Afinal, constituem igualmente realizações historiográficas os próprios sistemas conceituais desenvolvidos pelos historiadores, as metodologias por eles criadas ou empregadas, os diversos paradigmas teóricos que foram por eles construídos coletivamente, as hipóteses levantadas para abordar os diferentes objetos de estudo, e a própria ciência histórica tal como esta é compreendida hoje.
A transformação da História escrita em uma modalidade científica de saber, a partir do trânsito do século XVIII para o XIX, é de fato a maior realização historiográfica de todas. Neste sentido, pode-se dizer que a Historiografia também termina por incluir dentro de si o próprio campo de saber mais específico que tem sido construído pelos historiadores desde os seus primeiros tempos e até o momento contemporâneo: um campo de saber ou disciplina que – ao mobilizar diferentes aportes teóricos e as mais variadas metodologias – estuda a própria história.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "Historiografia e história: todas as relações possíveis" In: A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, p.15].
O CEGO, E O OUTRO QUE VIA
Havia na estrada do mundo
um Cego, e um Outro
que via
O Cego tinha uma estrela
cujo brilho não sabia
A Noite não lhe era um mal
pois não via o que não devia
O Outro tinha três olhos
e pelo excesso sofria
pois via com o olho da sobra
tudo aquilo que não podia
Numa flor via seus átomos
e nessa profundidade desastrada
Toda beleza se perdia
No perfume sentia cheiros
(cada nota em separado)
pelo nariz lúcido e enfermo
que todo aroma dissolvia
E assim, pela estrada do mundo
Ia o Cego, e o Outro que via
O que via indagava a causa
e o Cego gozava o efeito
Sendo feliz porque não via
Contava-se nas estalagens
Por onde a estrada passava
Que Um era a sombra do Outro
E os Dois, partes de um mesmo ser
Cuja felicidade de ver
Somente estava onde não devia
[publicado em Recital, vol.3, nº1, 2021]
[O CAMINHANTE E O TEXTO URBANO]
Ao caminhar pela cidade, cada pedestre apropria-se de um sistema topográfico (de maneira análoga ao modo como um locutor apropria-se da língua que irá utilizar), e ao mesmo tempo realiza este sistema topográfico em uma trajetória específica (como o falante que, ao enunciar a palavra, realiza sonoramente a língua). Por fim, ao caminhar em um universo urbano onde muitos outros caminham, o pedestre insere-se em uma rede de discursos - em um sistema polifônico de enunciados, partilhado por diversas vozes que interagem entre si (como se dá com os locutores que se colocam em uma rede de comunicações, tendo-se na mais simples ‘conversa’ um dos exemplos mais evidentes).
Enfim, se existe um sistema urbano - com a sua materialidade e com as suas formas, com as suas possibilidades e os seus interditos, com as suas avenidas e muros, com os seus espaços de comunicação e os seus recantos de segregação, com os seus códigos de trânsito - existem também os modos de usar este sistema. A metáfora linguística do universo urbano aqui se sofistica: existe a língua a ser decifrada (o texto ou o contexto urbano), mas existe também o modo como os falantes (os pedestres e habitantes urbanos) utilizam e atualizam esta língua, inclusive criando dentro deste mesmo sistema de língua as suas comunidades linguísticas particulares (dentro da cidade existem inúmeros guetos, inúmeros saberes, inúmeras maneiras de circular na cidade e de se apropriar dos vários objetos urbanos que são partilhadas por grupos distintos de indivíduos)
]trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.43-44 ].
[A CIDADE COMO TEXTO]
Entre as diversas metáforas operacionais que favorecem a compreensão da cidade a partir de novos ângulos, uma imagem que permitiu uma renovação radical nos estudos dos fenômenos urbanos foi a da “cidade como texto”. Esta imagem ergue-se sobre a contribuição dos estudos semióticos para a compreensão do fenômeno urbano, sobretudo a partir do século XX. Segundo esta perspectiva, a cidade pode ser também encarada como um ‘texto’, e o seu leitor privilegiado seria o habitante (ou o visitante) que se desloca através da cidade - seja nas suas atividades cotidianas para o caso do habitante já estabelecido, seja nas atividades excepcionais, para o caso dos turistas e também do habitante que se desloca para um espaço que lhe é pouco habitual no interior de sua própria cidade. Em seu deslocamento, e em sua assimilação da paisagem urbana através de um olhar específico, este citadino estaria permanentemente sintonizado com um gesto de decifrar a cidade, como um leitor que decifra um texto ou uma escrita.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.40].