Coleção pessoal de jalves
Para se roubar um coração
Para se roubar um coração, é preciso que seja com muita habilidade, tem que ser vagarosamente, disfarçadamente, não se chega com ímpeto, não se alcança o coração de alguém com pressa.
Tem que se aproximar com meias palavras, suavemente, apoderar-se dele aos poucos, com cuidado.
Não se pode deixar que percebam que ele será roubado, na verdade, teremos que furtá-lo, docemente.
Conquistar um coração de verdade dá trabalho, requer paciência, é como se fosse tecer uma colcha de retalhos, aplicar uma renda em um vestido, tratar de um jardim, cuidar de uma criança.
É necessário que seja com destreza, com vontade, com encanto, carinho e sinceridade.
Para se conquistar um coração definitivamente tem que ter garra e esperteza, mas não falo dessa esperteza que todos conhecem, falo da esperteza de sentimentos, daquela que existe guardada na alma em todos os momentos.
Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes, que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago.
...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele, vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco.
Uma metade de alguém que será guiada por nós e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração.
Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria.
Baterá descompassado muitas vezes e sabe por que?
Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós.
Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava.
... e é assim que se rouba um coração, fácil não?
Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade, a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então!
E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples... é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você.
DA OBSERVAÇÃO
Não te irrites, por mais que te fizerem
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio.
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Da calúnia
Sorri com tranquilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...
DOS MILAGRES
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois
Somos donos dos nossos atos
mas não donos dos nossos sentimentos.
Somos culpados pelo que fazemos
mas não pelo que sentimos.
Podemos prometer atos,
mas não podemos prometer sentimentos.
Atos são pássaros engaiolados.
Sentimentos são pássaros em voo.
Seiscentos e sessenta e seis
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª feira...
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente...
e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Amor é síntese
Por favor, não me analise
Não fique procurando
cada ponto fraco meu
Se ninguém resiste a uma análise
profunda, quanto mais eu!
Ciumenta, exigente, insegura, carente
toda cheia de marcas que a vida deixou:
Veja em cada exigência
um grito de carência,
um pedido de amor!
Amor, amor é síntese,
uma integração de dados:
não há que tirar nem pôr.
Não me corte em fatias,
(ninguém abraça um pedaço),
me envolva todo em seus braços
E eu serei perfeita, amor!
Humildade
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.
Saber Viver
Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar
A Esperança
A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença,
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença do fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro -- avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!
As cismas do destino
I
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.
Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.
A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.
É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!
E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!
Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.
Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!
Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!
Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!
II
Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!
Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!
Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.
Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.
Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!
Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!
Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!
Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!
Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!
Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contracção dos gritos instintivos!
Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!
Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!
Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos pólipos.
Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.
A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!
Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!
E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!
Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!
A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!
Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!
Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.
Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.
Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.
Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!
Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!
Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!
Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria embele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!
E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!
Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstracta do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!
Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:
III
"Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.
Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!
Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!
Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!
A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;
As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;
O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;
O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;
As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;
O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;
A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;
As projecções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;
Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;
O instinto de procriar, a ânsia legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
A morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O Espaço — esta abstração spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.
Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!
Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!
Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"
IV
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o Rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentorde mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!
Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.
Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa,
Vinha me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.
O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!
O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!
Versos Íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Também já fui brasileiro
Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.
Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.
Urgentemente
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
é urgente destruir certas palavras.
odio, solidão e crueldade,
alguns lamentos
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
CONSOLO NA PRAIA
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.