Coleção pessoal de IrineuMagalhaes
Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.
Quando chega a noite
E a lua aparece de vestido
O céu se desmantela em cores
Eu em risos Deep blues.
Na noite o amor é mais denso.
ARTE POÉTICA
na serra da desordem
no piracambu tapiri
em cada igarapé do pindaré
em cada igarapé do gurupi
existe uma palavra
uma palavra nova para mim
PEQUENA VALSA PARA O FUNERAL DAS HORAS.
Se eu pudesse, minha irmã, ouvir o que ela ouvia
Quando olhava, em silêncio, os relógios, seus ponteiros a girar.
Se eu pudesse escutar o som que eles faziam,
O tempo que existia, quando o tempo costumava a caminhar.
As mulheres costumavam engordar,
Os homens desatavam a beber,
Os velhos tinham o hábito de morrer,
E o tempo não parava de passar.
Se eu pudesse acompanhar seus olhos que seguiam
As horas que morriam quando outras começavam a nascer.
Se eu pudesse escutar que o som do que ela via
Era um tal barulho imenso que podia, em silêncio, ensurdecer.
Quando ainda era cedo.
Quando ela ainda podia ficar.
Quando ela ainda queria me ver.
E o tempo não parava de passar.
POUSO
Para me aninhar nos teus braços percorri mil oceanos,
As águas profundas de mim mesma.
Até dormir a teu lado passei as noites em claro,
Percorri os subterrâneos.
Para ver os teus olhos tive que descobrir os meus,
Meus olhos pousados sobre pedras quentes.
Chegar a ti foi tudo o que fiz. E foi o bastante.
JANELA ACESA
A moça se inclina sobre o parapeito,
silêncio, flor branca guardada.
Perdida de mim, a moça ausente me olha.
É a minha alma que ela espreme entre os dedos ferozes.
A moça habita o azul,
entre nuvens, anjos e pássaros, seu rosto sem sol.
Suspensa nos olha, atrás da vidraça, seu nicho de santa,
sua vida que eu não conheço.
De longe eu a vejo, princesa do céu,
enquanto estou preso em mim.
TEMPO
Vê-se a noite. Os relógios calam.
Um pêssego apodreceu no aparador.
O tempo põe manhãs nos dias, flores em cada primavera,
o que se vê é a morte.
E flores roxas como gritos,
insônias e febres.
A criança constrói de espanto balbucio e olhar,
constrói de leite pétalas internas.
Os relógios calam.
A vida nos vive, garganta aberta.
E a luz que pousa sobre a lua
vai perseguida por um véu de sombra
— caçada.
O tempo põe manhãs nos dias, flores em cada primavera.
Um pêssego apodreceu no aparador.
O que se vê é a morte. Os relógios calam.
ESTRADA
Por todas as curvas do caminho
há sempre um paraíso perdido,
um amor abortado
um podia ter sido
aberto em flores vermelhas.
Adiante o que é: áspera dormida estrada branca.
RESÍDUO
Palavras brotaram desconexas e esparsas.
Sua seiva era de lágrimas.
Incompreensível.
E rosas são as que ficaram fenecendo
em meus jardins de pasmo.
Caules se inclinam, se adelgaçam
no crescer, no confiar.
Verde-tenro se quebram, estalando leve,
choram seiva.
Navios se afastam do cais
e brechas surgem onde o corpo afunda
nutrindo vazios.
De tudo que fomos de caules,
de pequenas pedras, de penugem;
de tudo que fomos de sutil e tênue,
de troca de pólen e seiva,
de pequena ternura;
de tudo que fomos de fremir de abelhas,
de corola e aquiescência e espanto,
resta esse campo desolado na manhã
coberto de geada e assombro.
Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi.
Que bobagem falar que é nas grandes ocasiões que se conhece os amigos! Nas grandes ocasiões é que não faltam amigos. Principalmente neste Brasil de coração mole e escorrendo. E a compaixão, a piedade, a pena se confundem com amizade. Por isso tenho horror das grandes ocasiões. Prefiro as quartas-feiras.
Ela repetia sempre "Carlos", era a sensualidade dela. Talvez de todos... Se você ama, ou por outra se já deseja no amor, pronuncie baixinho o nome desejado. Veja como ele se moja em formas transmissoras do encosto que enlanguesce. Esse ou essa que você ama, se torna assim maior, mais poderoso. E se apodera de você. Homens, mulheres, fortes, fracos... Se apodera.
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Não exijas mais nada.
não desejo
também mais nada,
só te olhar,enquanto
A realidade é simples e isto apenas.
Poemas da amiga
VII
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
De Poemas da Amiga
Quando eu morrer quero ficar
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
A Vigília de Hero
Tu amarás outras mulheres
E tu me esquecerás!
É tão cruel, mas é a vida.
E no entretanto
Alguma coisa em ti pertence-me!
Em mim alguma coisa és tu.
O lado espiritual do nosso amor
Nos marcou para sempre.
Oh, vem em pensamento nos meus braços!
Que eu te afeiçoe e acaricie...
Não sei porque te falo assim de coisas que não são.
Esta noite, de súbito, um aperto
De coração tão vivo e lancinante
Tive ao pensar numa separação!
Não sei que tenho, tão ansiosa e sem motivo.
Queria ver-te... estar ao pé de ti...
Cruel volúpia e profunda ternura dilaceram-me!
É como uma corrida, em minhas veias,
De fúrias e de santas para a ponta dos meus dedos
Que queriam tomar tua cabeça amada,
Afagar tua fronte e teus cabelos,
Prender-te a mim por que jamais tu me escapasses!
Oh, quisera não ser tão voluptuosa!
E todavia
Quanta delícia ao nosso amor traz a volúpia!
Mas faz sofrer... inquieta...
Ah, com que poderei contentá-la jamais?
Quisera calmá-la na música...
Ouvir muito, ouvir muito...
Sinto-me terna... e sou cruel e melancólica!
Possui-me como sou na ampla noite pressaga!
Sente o inefável!
Guarda apenas a ventura
Do meu desejo ardendo a sós
Na treva imensa...
Ah, se eu ouvisse a tua voz!
Mulheres
Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! Fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...
És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa e tinham cara de pau)
Boda Espiritual
Tu não estas comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.
O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a...
Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua...
Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra n'água.
Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...
Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...
E te amo como se ama um passarinho morto.
Renúncia
Chora de manso e no íntimo... procura
Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...