Coleção pessoal de IrineuMagalhaes
Diga-me com quem andas e dir-te-ei [que língua, a nossa!] quem és. Pois é: Judas andava com Cristo. Cristo andava com Judas.
O último refúgio do oprimido é a ironia, e nenhum tirano, por mais violento que seja, escapa a ela. O tirano pode evitar uma fotografia, não pode impedir uma caricatura. A mordaça aumenta a mordacidade.
A verdade é que a maior parte das pessoas foge de tentações que nem se dão ao trabalho de tentá-las.
A ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcança limites insuspeitados e seu caráter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas depois da sua morte.
Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado.
Gostaria, querida, de ser inesperado
Como a madrugada amanhecendo
à noite
E engraçado também, como pato num trem
Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa.
Noturno
Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.
Será que mais Alguém vê e escuta?
Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.
Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?
Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.
Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?
Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão...
Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.
Ó meu amor, por que te ligo à Morte?
LÁPIDE
Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.
Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.
Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido
que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!
Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas - és tu. Ainda és tu, esses grandes rios e canais tranquilos. Os enormes navios que eles levam, todos carregados de riquezas e de onde sobem os cantos monótonos da manobra, são meus pensamentos que dormem ou resolvem-se no teu peito. Suavemente, tu os conduzes para o mar que é o infinito, espelhando as profundezas do céu na limpidez da tua bela alma; e quando, cansados do marulho e abarrotados de produtos do Oriente, eles regressam ao porto natal, são de novo meus pensamentos enriquecidos que voltam do infinito a ti.
Que demônio benévolo é esse que me deixou assim envolto em mistério, em silêncio, em paz e perfumes?
VAMPIRO
Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho ao jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!
Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao vento, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.
Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! - se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!"
ESSA MULHER
Essa mulher que paira docemente
Nos meus sonhos de amor tão erradios;
Essa deusa de lindos amavios,
Que me seduz o coração e a mente;
Essa ninfa dos prados e dos rios,
De rosto angelical e olhar ardente;
Essa do brilho místico e inocente
Estrela d'alva nos meus céus vazios;
Essa que me fez cartas delicadas,
Com frases meigas, como as namoradas,
E com doce emoção, como as amantes;
Essa mulher é como se uma aurora
Me iluminasse pela vida afora
E me sorrisse todos os instantes.
O REI DOS LÍRIOS
O rei dos lírios quer me ver feliz
E que eu desfrute de um prazer sem fim.
Ele me deu cem mil maravedis
E comprou um castelo para mim.
O rei dos lírios quer me nomear
Embaixador no reino do Sião
Para que eu possa lá me consolar
Do tédio que corrói meu coração.
O rei dos lírios disse que vou ser
Um nobre em sua corte sideral,
Com direito a fazer e acontecer.
Livre de tudo que me cause mal.
E vai me dar, em bom jacarandá,
Uma cama onde eu possa dormir bem
E esquecer esta angústia que em mim há.
E por todos os séculos. Amém.
Quando esta noite passar
Com sua carga de treva,
Com seu espesso veludo
Que te incomoda e te enerva,
A ti que estás todo preso
Numa sinistra gaiola,
Comendo o alpiste do dono
Do mundo que te viola;
Quando passar esta noite
Com seus frios caracóis
De angústia e desesperança,
Praga dos que vivem sós,
Quando esta noite passar,
Faz teu canto na manhã,
Que todo dia traz luz,
E não é vã, não é vã...
O APRENDIZ
Sou pobre realmente.
Tenho apenas algumas folhas de papel na alma
E uma vontade — digamos, mansa —
De hipnotizar borboletas.
Oue coisa sei da vida?
Pouca coisa sei da vida.
O bastante para não correr.
CAIS
para Gato
Eu vou amanhecer no cais da aurora,
Com as minhas longas roupas de fumaça,
Para encontrar meu coração que chora
Por todos os caminhos onde passa.
Eu vou encher de vinho minha taça
E bebê-la na mais propícia hora
Até que o meu espírito se faça
Risonho e colorido como a flora.
Na popa de um saveiro luminoso,
Vou conhecer o cenário formoso
Das ilhas do Recôncavo singelo.
E, quando na tardinha eu regressar,
Verei o pôr-do-sol cair no mar
De cima do fortim de São Marcelo.
RETORNO
O seio da mãe que simboliza o mar.
Carlos Anísio Melhor: "Elegia a Hart Crane"
Nasceram-me gaivotas nos sentidos
E, todo iridescente, fui ao mar
Buscar a vida e o sonho milenar,
Que jazem sob as águas esquecidos.
A luz da madrugada singular
Banhava os areais adormecidos.
E os ventos eram cães enlouquecidos
Uivando nos rochedos ao luar.
Eu me elevei ao mais alto rochedo
E, sem medir efeitos e sem medo,
Gritei uma palavra ritual.
O mar abriu-se, então, de lado a lado.
E eu mergulhei no abismo sossegado.
Como quem volta ao seu país natal.