Coleção pessoal de DouglasClayton
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
- Ainda assim - disse o Espantalho -, quero um cérebro em vez de um coração; porque um tolo não saberia o que fazer com um coração se tivesse um.
- Fico com o coração - respondeu o Homem de Lata. - Porque cérebro não faz ninguém feliz, e a felicidade é a melhor coisa do mundo.
E você, meu amigo galvanizado, você quer um coração. Você não sabe o quão sortudo és por não ter um. Corações nunca serão práticos enquanto não forem feitos para não se partirem...
Quando um homem melhora, torna-se cada vez mais capaz de perceber o mal que ainda existe dentro de si. Quando um homem piora, torna-se cada vez menos capaz de captar a própria maldade. Um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom; um homem completamente mau acha que está coberto de razão. Nós sabemos disso intuitivamente. Entendemos o sono quando estamos acordados, não quando adormecidos. Percebemos os erros de aritmética quando nossa mente está funcionando direito, não no momento em que os cometemos. Compreendemos a natureza da embriaguez quando estamos sóbrios, não quando bêbados. As pessoas boas conhecem tanto o bem quanto o mal; as pessoas más não conhecem nenhum dos dois.
Nenhum homem sabe quão mau ele é, até que ele tenha tentado de toda maneira ser bom. Uma idéia tola, mas muito atual é que as pessoas boas não conhecem o significado ou não passam por tentações. Isto é uma mentira óbvia. Só aqueles que tentam resistir a tentação, sabem quão forte ela é. Afinal de contas, você descobre a força do exército inimigo lutando contra ele, não cedendo a ele. Você descobre a força de um vento, tentando caminhar contra ele, não se deitando ao chão. Um homem que cede ante a tentação depois de cinco minutos, simplesmente não sabe o que teria acontecido se tivesse esperado uma hora. Esta é a razão pela qual as pessoas ruins, de certa forma, sabem muito pouco sobre sua maldade. Elas viveram uma vida abrigada por estarem sempre cedendo. Nós nunca descobrimos a força do impulso mal dentro de nós, até que nós tentamos lutar contra ele: e Cristo, porque Ele foi o único homem que nunca se rendeu a tentação, também é o único homem que conhece completamente o que tentação significa–o único realista no total sentido da palavra.
O carinho é responsável por nove-décimos de qualquer felicidade sólida e durável existente em nossas vidas.
Amar é sempre ser vulnerável. Ame qualquer coisa e certamente seu coração vai doer e talvez se partir. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, você não deve entregá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Envolva o cuidadosamente em seus hobbies e pequenos luxos, evite qualquer envolvimento, guarde-o na segurança do esquife de seu egoísmo. Mas nesse esquife – seguro, sem movimento, sem ar - ele vai mudar. Ele não vai se partir – vai tornar se indestrutível, impenetrável, irredimível. A alternativa a uma tragédia ou pelo menos ao risco de uma tragédia é a condenação. O único lugar além do céu onde se pode estar perfeitamente a salvo de todos os riscos e perturbações do amor é o inferno.
[Em "Os quatro amores"]
Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer.
Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente. Por isso pouco sentiam. Daí a sua perfeita execução da obra de arte.
Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda a esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda a experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhum batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão dos filósofos e néscios.
Ame e dê vexame
Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários. O amor é tanto, não quanto. Amar é enquanto, portanto. Ponto.
Revelação
Eu queria dizer uma coisa que eu não posso sair dizendo por aí.
É um segredo que eu guardo, é uma revelação
Que eu não posso sair dizendo por aí.
É que eu tenho medo de que as pessoas se desequilibrem delas mesmas.
Que elas caiam quando eu disser.
É que eu descobri que a palavra não sabe o que diz.
A palavra delira. A palavra diz qualquer coisa.
A verdade é que a palavra, ela mesma, em si própria, não diz nada.
Quem diz é o acordo estabelecido entre quem fala e quem ouve.
Quando existe acordo existe comunicação,
Mas quando esse acordo se quebra ninguém diz mais nada, Mesmo usando as mesmas palavras.
Gente é mais ou menos como rio:
Tem os que gostam de perigo e se lançam de grandes alturas
Tem os de muitos braços que atiram pra todos os lados
Tem os de muitos redemoinhos que comem bois e gente
Tem os que gostam demais de si e viram lago
Tem os que só sabem correr parados
São os empoçados os pantaneiros os alagados
Tem os que transam com a terra formando ilhas
O fundo de alguns é de pedra. Tem os de peixes coloridos
Outros têm água clarinha. E tem gente córrego seco
E tem gente riacho escuro. Alguns a terra engole vivos
E tem até rio que corre pra trás
O rio que eu sou nasceu em janeiro
"Eu poderia chorar de coisas assim:
Corre um rio de minha boca, corre um rio de minhas mãos.
Dos meus olhos corre um rio.
Na verdade sofro de excessos, que me dão certo vocabulário
Como derramar, escorrer, atravessar.
Tenho a impressão de que tudo vaza em sobras.
Tenho dificuldade em caber.
Pra caber mais, derramo por nada, derramo sem motivo.
Vou acalmar meu excesso pensei (...)
Palavras são estacas fincadas ao chão.
Pedras onde piso nessa imensa correnteza que atravesso."
Doenças
Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão
mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema
Prosa Patética
Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.
As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.
Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.
Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,
Sempre querendo, querendo.
Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.
No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança
Do hálito quente do outro. A voz, o viço.
Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão,
Expulsar de mim essa Nossa Senhora ciumenta.
Madona sedenta de versos. Mas tive medo.
Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.
Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.
E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.
Tive medo de perder o estado de verso e vácuo,
Onde tudo é grave e único. E me mantive quieta e muda.
E mais do que nunca tive inveja.
Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta
Nem pensa essas coisas. Quem simplesmente ama e é amado.
E lê jornal domingo. Come pudim de leite e doce de abóbora.
A mulher que engravida porque gosta de criança.
Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada, mãe, Ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido,
E ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.
Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.
Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.
Clarice diz que sua função é cuidar do mundo.
E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada,
Não tenho bons modos nem berço.
Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.
O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?
Eu, cuja única função é lavar palavra suja,
Neste fim de século sem certezas?
Eu quero que a solidão me esqueça.