Coleção pessoal de doracinonaves

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Me descubro, definitivamente, dual. Sou gêmeo de mim. Um dos gêmeos voa às alturas e o outro permanece preso a terra. Tal qual a lagarta e a borboleta, o homem vive uma dualidade inquietante. A fase crisálida é para pensar no dicotômico viver.

Ninguém se esconde de si mesmo. Se a laranjeira esconder a fruta, não é laranjeira. O vento só é vento quando venta. O gol do futebol só é gol quando a bola, ao levar uma 'bicuda', entra.

A dor que se esconde não é doença. Quando adoeço ponho a boca no mundo; gemo e resmungo sem parar. Só paro quando bebo água fluída no batismo da bênção.

Aos poucos, sem perceber, alterei rotinas, costumes e o jeito de ver as coisas. De contador a jornalista foi um pulo de pião que roda a trezentos e sessenta graus até encontrar o ponto em que o giro parece estático.

Meus pensamentos são beliscados pelas impressões da vida. Hoje, o som do bolero me pede para recomeçar. Recomeço na necessária desconstrução das emoções. A orquestra celestial – com o Maestro a oriente de um imenso salão - me espera com músicas suaves.

O homem, pobre ser humano, tem o universo para conhecer, porém, passa a maior parte do tempo dentro de prédios. Anda pelos mesmos caminhos, igual a uma lagarta que não sabe que, num belo dia, o seu destino a fará voar.

Uma chuva fina cai sobre a cidade. No rádio a canção de Gal Costa que fala sobre a poeira do caminho. Pois é. O pó das eras também viaja comigo; bem acomodado no meu banco.

Hoje, uma porta de entrada também serve de saída.

Não importa se as esquinas se voltam para o leste, o sul, o norte ou para o oeste; elas são majestosas. E ideologicamente definidas: sempre à direita ou à esquerda da rua; nunca no centro. Anunciam-se aos quatro ventos em variadas formas, cores e alturas.

Até os que se julgam mais fortes e lutam contra a finitude morrem como ovelhas no final da noite.

Sou um mero espectador da alma goianiense. Apanho pela cidade o sentimento humano que nem o tumulto da pressa da metrópole antecipada pelo tempo é capaz de abafar.No meio da névoa, a copa de um pé de cajá-manga aparece como uma ilha virtual. Goiânia é uma cidade digna; contemplo-a com paixão. (Do livro de crônicas Romanceiro de Goiânia - Doracino Naves).

Cada pessoa tem uma função e vem ao mundo para realizar a sua tarefa. No seio da imensa cidade nasce uma solidão plasmada em nossos olhos cansados. (Do livro de crônicas Romanceiro de Goiânia - Doracino Naves).

Somos cidades ambulantes; as emoções são casas que precisam de asseio e luz. E, claro, cuidados para acolher as almas solitárias que se esgotam na folia.

O vento balança bandeiras e árvores; arrasta papéis e pode até arrancar o telhado das casas. Mas não leva o cheiro da cidade e nem o cheiro do próprio vento. Também não leva as coisas mais leves como o pensamento.

Vejo o meu retrato: um menino pobre de Porto Barreiros que chegou a Goiânia num caminhão de mudanças. Penso que evoluí muito.Mas não importa o quanto eu tenha evoluído, eu continuo num caminhão de mudanças.

Na pobreza mental, o homem das cavernas raciocinava simplesmente: caçar um animal era mais fácil do que três. E voltava ao ócio do paraíso. Era assim: um é pouco, dois é bom, três é demais. Além disso, era como calcular a distância da terra às estrelas: inimaginável. Só os poetas, mesmo avessos à matemática, eram capazes de imaginar milhões de estrelas no céu.

Mesmo sem saber onde fica a minha casa quero voltar para ouvir o balir dos anjos, ovelhas do paraíso. Estarei em minha casa quando Deus terminar a crônica da minha vida.

Falo sobre Goiânia sem pretender conquistá-la nem me igualar aos bons cronistas e poetas daqui. Imagino ser uma espécie esburgada de Odisseu viajando entre dois paredões do tempo: a Goiânia de ontem, bela e acolhedora e a de hoje, imprevisível com seus tentáculos a inflar as nossas vaidades. (Do livro de crônicas Romanceiro de Goiânia - Doracino Naves).

No balanço das sementes tocando os casulos vazios da bucha sai um som de chocalho. Não poetizo os sons; sinto-me uma bucha seca para entendê-los como são.

Na rua quase deserta ouço gargalhadas, talvez vindas de festas, saltos batendo no asfalto duro de um dia que termina para uns e começa nos olhos do crepúsculo. São ruídos de quem nem sabe que eu existo.