Coleção pessoal de daisyxavier
Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna, delicada.
– Se você fosse meu marido, eu envenenaria o seu chá.
– Se eu fosse o seu marido, eu tomaria esse chá.
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(Do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)
Eu criei todos os meus inimigos, um a um, diretamente ou não. Alguns odeiam fielmente a minha pessoa, outros apenas não gostaram da impressão que eu deixei ao me ver passar. E muitos me odeiam simplesmente por não ser eu. Paradoxal e insano. Isso que eu chamo. Eles tentam, mas cada um é bom na arte de se ser. Se quer tanto ser quem eu sou por que não sofrer o que eu sofro? Ou você achava que minha vida se resume nesse sorriso barato que coloco em meu semblante? Posso ser o que você achar que sou, pode ser o que você achar que é, mas que a verdade seja dita: o verdadeiro ser está nos olhos, e o brilho dos meus você realmente não tem.
Ando devagar porque já tive pressa,
E levo esse sorriso, porque já chorei de mais,
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe,
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou
Nada sei, conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maçãs.
È preciso amor pra puder pussar, é preciso paz
Pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir.
Penso que cumprir a vida, seja simplesmente
Compreender a marcha, ir tocando em frente,
Como um velho boiadeiro, levando a boiada
Eu vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou,
Estrada eu sou, conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maças,
È preciso amor pra puder pussar, é preciso paz
Pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir
Todo mundo ama um dia, todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora,
Cada um de nos compõe a sua historia, cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz, e ser feliz,
conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maças,
È preciso amor pra puder pussar, é preciso paz
Pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir
Ando devagar porque já tive pressa,
E levo esse sorriso, porque já chorei de mais,
Cada um de nos compõe a sua historia, cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz, e ser feliz
Todo mundo ama um dia todo mundo chora,
Um dia a gente chega, e no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz.
Versos Íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Vontade de não dar sentido algum às coisas, às palavras e à própria vida. Assim como é a vida na realidade ausente de sentido.
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
Eu nunca fui uma moça bem-comportada.
Pudera, nunca tive vocação pra alegria tímida ou pro amor mal resolvido sem soluços.
Eu quero da vida o que ela tem de cru e de belo. Não estou aqui pra que gostem de mim. Estou aqui pra aprender a gostar de cada detalhe que tenho. E pra seduzir somente o que me acrescenta.
Adoro a poesia e gosto de descascá-la até a fratura exposta da palavra.
A palavra é meu inferno e minha paz.
Sou dramática, intensa, transitória e tenho uma alegria em mim que me deixa exausta.
Eu sei sorrir com os olhos e gargalhar com o corpo todo.
Sei chorar toda encolhida abraçando as pernas.
Por isso, não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha a mim com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar...
Eu acredito é em suspiros, mãos massageando o peito ofegante de saudades intermináveis, em alegrias explosivas, em olhares faiscantes, em sorrisos com os olhos, em abraços que trazem pra vida da gente.
Acredito em coisas sinceramente compartilhadas.
Em gente que fala tocando no outro, de alguma forma, no toque mesmo, na voz, ou no conteúdo.
Eu acredito em profundidades.
E tenho medo de altura, mas não evito meus abismos.
São eles que me dão a dimensão do que sou.
Quando o amor vacila
Eu sei que atrás deste universo de aparências,
das diferenças todas,
a esperança é preservada.
Nas xícaras sujas de ontem
o café de cada manhã é servido.
Mas existe uma palavra que não suporto ouvir,
e dela não me conformo.
Eu acredito em tudo,
mas eu quero você agora.
Eu te amo pelas tuas faltas,
pelo teu corpo marcado,
pelas tuas cicatrizes,
pelas tuas loucuras todas, minha vida.
Eu amo as tuas mãos,
mesmo que por causa delas
eu não saiba o que fazer das minhas.
Amo teu jogo triste.
As tuas roupas sujas
é aqui em casa que eu lavo.
Eu amo a tua alegria.
Mesmo fora de si,
eu te amo pela tua essência.
Até pelo que você poderia ter sido,
se a maré das circunstâncias
não tivesse te banhado
nas águas do equívoco.
Eu te amo nas horas infernais
e na vida sem tempo, quando,
sozinha, bordo mais uma toalha
de fim de semana.
Eu te amo pelas crianças e futuras rugas.
Eu te amo pelas tuas ilusões perdidas
e pelos teus sonhos inúteis.
Amo teu sistema de vida e morte.
Eu te amo pelo que se repete
e que nunca é igual.
Eu te amo pelas tuas entradas,
saídas e bandeiras.
Eu te amo desde os teus pés
até o que te escapa.
Eu te amo de alma para alma.
E mais que as palavras,
ainda que seja através delas
que eu me defenda,
quando digo que te amo
mais que o silêncio dos momentos difíceis,
quando o próprio amor
vacila.
Cada um tem de mim exatamente o que cativou, e cada um é responsável pelo que cativou, não suporto falsidade e mentira, a verdade pode machucar, mas é sempre mais digna.