Coleção pessoal de dacl
“...a solidão. Sempre me agitara, impedindo que ela se aproximasse de mim. Sempre vivera ruidosamente, rindo e assoviando, para que esse lençol de morte e esterilidade não me envolvesse no seu triste sudário. Ah! Como somos tolos em correr
tanto, em acreditar que realmente nos agitamos e esquecemos tudo: dentro de nós é que está a invisível neblina, e caminha conosco e se junta ao nosso corpo, abraçada ao nosso coração como uma amiga insidiosa. E ali pesa, até poder surgir aos poucos, solene e vitoriosa, derramando-se desde a cama de ferro até o velho lavatório, escorrendo dos objetos de uso cotidiano, formando a vasta teia líquida e sem cor que absorve o mundo em que vivemos, que nos devolve os objetos agudos e desconhecidos, autônomos, verdadeiras ilhas que jamais se incorporarão ao nosso triste destino.”
[Canção da Revolta]
...E se piedade vos sobrar,
tende piedade vossa
que não sois assim
tão poderoso.
Que vossos filhos
são degenerados, porque
não soubestes ser pai
e eles se perverteram.
Tende piedade vossa
que cometestes erro ainda maior:
Aprisionastes almas de poetas
em corpos de homens.
Tende piedade vossa
que os feitos à vossa semelhança
são vampiros insaciáveis.
Tende piedade vossa
que há gente com fome,
gente com medo,
gente com sede e frio,
e um dia essa fome se transforma em ódio,
esse medo vai se defender e atacar,
essa sede vai ser de vosso sagrado sangue,
esse frio vai querer se aquecer no calor da revolta.
E se mais piedade vos sobrar,
tende piedade vossa que não sois
o deus carinhoso com que eu sonhei
Que sois mal e vingativo,
que castigais quando devíeis perdoar.
E se piedade vos sobrar
tende piedade vossa,
que necessitais muito mais de pena
do que nós, míseros sofredores.