Coleção pessoal de crislambrecht

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A VALA

Dos esgotos ao riacho, a água suja levando todo tipo de relaxo humano. Aqui embaixo, no vale dos escrotos, pouco se vê daquela selva de concreto onde a vida abstrata torna a todos os cinzentos viventes robôs, inorgânicos por natureza consumista destrutiva.
Minha pele ferida pelo tempo passado dentro de manilhas ásperas e contaminadas, enfraquecida pela carência do sol, marcada pelo desespero. Considerava-me parte deste submundo de fezes e lixo, entre os ratos e as baratas, partilhava de suas rotinas o mesmo espaço, porém, hoje percebo que sou apenas mais um fruto da desumanidade, um resto inútil que um dia foi descartado.
Pelos canos rastejei buscando abrigo, porém minha presença opressora prejudica a liberdade no esgoto, não sou resto suficiente de algo, talvez seja eu restos de nada, talvez nada. O córrego de merda desperta-me o desejo de navegar, de sair pra ver o céu, respirar um pouco melhor este ar.
Principio de um desejo a jornada rumando junto à corrente, das paredes abissais escorrem desesperança, mas, o trajeto da grande valeta parece me trazer o sentimento de um futuro favorável. Segui-lo hei na minha aventura, embrenhado na pequena mata baldia sigo, e a cada passo que dou me sinto um pouco mais vivo, pelo menos, a sensação de que o coração ainda bate me conforta.
Ruídos, buzinas, freadas, sirenes, latidos, roncos, pancadas, batidas. A cidade é um monstro estranho, não pretendo compreende-lo. Deveria me assustar, apavorar, mas ele já arrancou de mim todo o medo, consumiu-me até não restar bagaço à desfazer, ando por suas entranhas como um fantasma anônimo, perdido, avulso, perambulando leve nulo desumanizado.
Avanço pela fenda cada vez mais larga, distante dos tubos, enquanto acompanho o escorrer do denso regato fétido sou observado pelos habitantes das fossas, um desirmanado só, errando extraviado de todo o resto, perdido. Mas por que julgar de tal modo o olhar curioso das criaturas? Por que estabelecer tais qualidades tão desprezíveis à mim mesmo? Talvez minha imaginação tenha sido arruinada, uma cabeça desprovida de sonhos e esperanças, uma cabeça oprimida e comprimida de forma a servir um propósito alheio não mais pensa livremente para si.
Deparo-me com uma comunidade às margens do riacho, estranhamente sinto pelos que ali vivem o horror de ser humano lixo, descartados como bosta deste monstro conhecido como cidade. O crepúsculo triste de um sol que não se vê, torna aquele lugar mais estranho. Na escuridão vejo uma tímida fogueira, queimando lixo, iluminando e aquecendo rostos anônimos a queimar e fumar a dura pedra da decepção, cravando desilusões na mente já ludibriada pelo desapontamento vívido vivido desde a infância.
Peço-lhes fogo, para atear em minha própria fogueira, longe da desesperança e do lamento, aquecerei meu desejo de seguir adiante e matarei minha sede longe do olhar desconfiado dos que receiam. O cheiro das fezes lançadas pelos tubos empesteia a noite, e não há noia que catingue tanto a ponto de nos fazer esquecer que o vale dos escrotos foi enterrado com esterco e pavimentado com ignorância.
A chuva cai sobre nós lixos, evaporando do solo toda a podridão tornando o fedido cânion um caldeirão infectado, que logo é tomado por uma enxurrada de chorume decomposto lavado das ruas levando indiferente tudo o que havia ou não pela frente.
Fui junto, tornei-me mais um corpo inchado boiando na merda removido com repulsa e enterrado com repugnância, despido de qualquer pingo de empatia tido como resíduo inútil de uma existência desnecessária.
Tornei-me lembrança passageira de alguns ratos de esgoto, o homem que foi lixo do homem, um lixo de homem na vala de lixo.

Cosmonauta hiperativo
Transformou-se em explosão
De tão rápida passagem
Mais veloz que o pensamento
Atravessou o multiverso
Se desfez em tantas partes
Que sentiu-se o próprio tudo

Um talvez poeta
Taxado de louco
Sobre o asfalto negro
Sussurra vermelhas palavras

Feliz, sim
Expressa sentimentos
Enquanto anda
Em busca do silencio

Uma cinzenta e densa massa metálica
Ameaçada pelo que não vê
Por detrás dos muros mandam sinais
E escondem-se debaixo do cobertor

A covardia medrosa uniformizada surge
Violentamente calam o suposto insano
Plantando uma rosa vermelha no asfalto preto
Como as palavras que subiam ao céu noturno
Invisível

O vazio
De mim esvai-se
Torna-me então
Muito menos

Há vozes na minha cabeça
Que parecem pensamentos
Ou, talvez
Sejam pensamentos que parecem Vozes

O fato é que eu não consigo controlar oque ouço
Não consigo fugir de quem fala
É como um diabo sentado no meu ombro
Sussurrando sem parar

Parte da culpa é minha
Foi eu quem há muito tempo o convocou para me ouvir
E hoje ele faz parte de mim
Eu desabafo, mas também sou obrigado a ouvir

Geralmente fala de pessoas
O quanto não são confiáveis
O quanto são prejudiciais
E eu ouço

Geralmente falo de mim
O que me preocupa e me entristece
Meus medos lhe revelo
Mas não sei se ele ouve, nem faria diferença

Se não estou bem
Se não estou chapado
Se estou triste, se irritado
Ele fala
E eu

Ouço-o

Não acredito em algo como o nunca mais
Pois é como para sempre
Outro tanto como um
São nada
Sequer
São

Não tem como não relembrar
Depois de lembrado é dificilmente esquecido

Se é áspera a partida de uma boa memória
A grande cartada é não lacrimejar
Já que não irá embora
Não esqueça de lembrar

Pois para parar basta estar em movimento
E a parada é pesada como paixão

A última rosa da roseira
Já pálida
Pálido branco de uma derradeira rosa branca

cravada no coração arrancado
O afiado galho com velhos espinhos afiados
Escorre o sangue
Perfura o púrpura cor vermelha

Atira-os ao Mar
Tudo avermelha-se
A rosa branca
O Mar
Vermelha fica

Mantém-se o silêncio

Na praia
A rosa pálida
Pálido rosa
Quase não mais é vermelha como outrora
Agora murcha
E morre

Vermelha
Rosa
AO
Mar

O amor não está no peito
O amor não está no coração
O amor está em não ter razão
E o que eu tenho de emoção
É apenas minha criação
Está na minha imaginação
Onde não está o amor
Onde não há amor

É onde estamos

O gato branco chama-se Noé
Pra quem assim o chama
E a chama do seu amor
É fogo fátuo
É assombro sem vida
Persegue-te noite adentro

O novelo se desenrola
A trama da novela
Enquanto dura
Enquanto mole
A luta pela sombra mais fresca
Seria então o seu fim
Se não fossem os cães de rua

Que latem noite a dentro
Ladram para a lua
Roubam e viram latas
Barulho, lixo, incomodo
E o gato branco é apenas um reflexo
Da lua que vagueia pelos céus
Vaga-lumeando com seu grande poder

Noite a dentro
Da boca pra fora
De lá pra cá
É vertical
E a queda
Nunca tem fim
Há de cairmos em pé
de guerra?

Em pó de terra
Ao pó branco
Da lua
Do gato
Dos dentes rangindo
Sorrindo e sangrando palavras

Terra
Gato
Lua

.

E o impulso
Ainda pune

Distante
Tão longe
Que mal posso sentir

Distante
No espaço
Foi-se o alcançável

Distante
No tempo
Pensar sem emoção

Desculpe
Mas sou apenas um fantasma
Sou um fugitivo

Vendi minha alma
E o demônio vem me cobrar
Todo o dia
Por isso fujo

Corro deste deus
Ele sabe que tenho algo a fazer
Tenho que escrever meu livro póstumo
E ele o quer agora

A eternidade é complicada de se entender
Às vezes
Nem eu nem deus nem ninguém
Existimos

Nunca é sempre

Cercados de dedos, olhos e bocas
Mãos munidas de ferramentas
Julgamento, condenação
Dentes furiosos rangem
Espuma nos lábios
Gigantes sombras
Barulhos assustadores
Esmagam o quanto podem

Eu tenho medo
Medo demais
Mas tudo passará
Como tudo passa

Difícil é saber o que restará

Em plenas trevas
Em minhas eras
Trevas cristãs
Uma pausa
Para um mar de sangue
Injustiças mil
A caça às bruxas
Condenada à fogueira
Sabrina queima
Solta gritos de dor
Mas ela é imortal
Eterna
Como o seu sofrimento
E eu sigo
Como um exército de fantasmas

Que se irreleve o incompreendido
Deixado de lado
Soterrado
Se possível for
Se for
Importante
Não importará
Desde que se vá
Aos poucos ou de repente

Mas ando de um lado à outro
Às vezes no litoral
E a maré traz a mim
Tudo o que joguei ao mar
Sabe se lá o que
Se foi
Importante
Importará
Desde que não me lembre
O porque de tê-lo jogado
Se foi incompreendido
Se foi irrelevado
Por quê?

Círculos
Infinitos
E um peso cada vez maior
Na carga do velho burro
Que, cada vez mais fraco
Anda sem saber
Se sabem
Se importa
Ao burro
O que é relevante?

Círculos, círculos
Fantasmas pesados
Chão de areia
Passos
Correntes
Chaves
Cadeados
Ferrugem
Canhada
Lágrimas
Silencio
Fantasmas
..

Lua lunática
Lunáticas ideias
Ideias lúcidas
Lucidez onírica
Onironauta perdido
Perdição real
Realidade cruel
Crueldade comum
Como um mundo normal

Passageiro cansado
Com sativas passagens
Passos confusos
Confusão passageira
Passageiro confuso
Confunde os passos
Passos ligeiros
Ligeiras passadas
Passa o tempo
O tempo não pára

Poderes onipotentes
Potência elevada
Elevação acentuada
Ascensão vertical
Vértice das vertigens
Tontura
Enjoo
Infinita busca
Riscos infinitos

Paz
Foi-se aqueles dias
Irão-se estes
A paz de hoje
Já acabou
A vida é injusta
Para quem não vê
Os dragões como são
Como não são

Não quero mentir
Alimento-me de vós
Alimento as vozes
E vocês
Alimentos
Ali
Malemal

Tenho um monstro faminto
Ele parece deus
Talvez não exista
Embora dependa de mim
Pois vive aqui

Alimento-o de mim
Alimento-me de vós
Alimento-te disto
Dito isto
Desculpo-me
E me despeço novamente
Pois não quero mentir

Azul
Canto doce
Vindo do porão
Trancado numa gaiola

Azul
no escuro
Percebe a luz
Explode as grades
Voa para longe
Queima suas asas

Azul
Caído no chão
Recolho-o
E torno a deixá-lo no porão

Azul..

Então a vontade vai e vem
Sabe-se lá pra onde e de onde
pouco importa
O conforto me desconforta
O fácil me afronta
A tentação da monotonia segura
Esquecer o belo
O que se busca como um caçador
O que faria a vida valer realmente a pena
A pena de viver sendo tomado de assalto
Por fantasmas de todos os lugares
Lugares, lugares
Fantasmas, fantasmas..

Vou para as águas
Atrás destes olhos negros
Destes cabelos ondulados
De um sorriso revitalizador

À beira da areia
O cheiro salgado
E a brisa relaxante
Me entorpeço

Que cresçam estas mechas
Que estas raízes se estendam
Do seco sertão longíncuo
Ao início ou fim dessas águas

Quero voltar a caminhar
Sobre a espuma branca
Sob o céu azul;
extensão do mar azul..

Contaminado como estou
Os Piraíns afastam-se de mim
Estou sujo e pareço com os porcos
As cabras
O gado
Os cães
As galinhas
E os ratos

Toda fumaça deixou-me cinza
E essa água poluída quase me matou
O alimento contaminado me adoeçeu
Mas volto
E percebo-os aqui
Os Piraíns lembram de mim
Apenas mantém-se afastados
Esperando o retorno de mim