Coleção pessoal de cassiojonatas

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DESAF(L)ORO

Não sei como nasci
Não sei por que nasci
Mas sou flor como vocês
Por que não me enxergam?
Por que me cospem?
Por que me pisam?

Queria estar num jardim
Queria ser bem cuidada
Queria estar em bons ares
Queria ser irrigada

Porém estou ressecada
Estou de cara pro nada
E brotei assim desbotada:
Quase cinza
Quase cinzas...

Perversos conversos
Com versos inversos
Em versos travessos
Conversam avessos
Diversos universos
Universo de versos
De versos reversos.

vazio?
que nada!
cheio de tudo
não me enche!
senão transbordo.

Reformar
o meu amor
por isto espero.

Informar
meu dissabor,
a falta de esmero.

Conformar?
de forma alguma,
ainda te quero.

AMARRAS

Queria-saber-fingir...
Seguir-em-frente
Sem-moral-alguma
Levado-pela-corrente
Queria-saber-fingir...
Estar-de-acordo
E-aprender-a-sorrir
Com-a-corda-no-pescoço
Queria-saber-fingir...
Ser-mais-um-careta
Não-sair-da-linha
Andar-em-linha-reta
Queria-saber-fingir...
Estar-de-mãos-atadas
Ser-seu-coligado
Não-ligar-pra-nada
Queria-saber-fingir...
Não-ter-mais-garra
Agarrar-me-às-verdades
E-aceitar-as-amarras
Queria-saber-fingir...
estar-acorrentado
estar-atado
estar-alinhado
estar-ligado
estar-agarrado
Queria-saber-fingir...
Porque-dói desacorrentar-me
Porque-dói desatar-me
Porque-dói desalinhar-me
Porque-dói desligar-me
Porque-dói desgarrar-me
Porque-dói ser eu.

MEU CANTO

Canto quando estou sozinho
Canto pra me decantar
Canto, mas não te encontro
Sei que meu som vai reverberar
Sei que meu som vai reverberar

Canto com a voz embargada
Canto pra você chorar
Canto e depois recanto
Em meu recanto quero te esquentar
Em meu recanto quero te esquentar

Canto e te causo espanto
Canto de cisne e até de sabiá
Canto com o olhar escanteado
No canto da tua boca eu quero pousar
No canto da tua boca eu quero pousar

Será que o meu canto agrada?
Será que vou te encantar?
Sei que o meu canto é simples
Mas em meu canto quero te abrigar
Mas em meu canto quero te abrigar

Canto pra te dar carinho
Canto pra te conquistar
E como te quero em meu canto
Eu crio um canto pra você voar
Eu crio um canto pra você voar

Canto no canto da sala
Canto em qualquer lugar
Canto alto, canto baixinho
Em teu ouvido eu quero morar
Em teu ouvido eu quero morar

Canto com os olhos fechados
Canto e não vou parar
Por isso, canto canto, canto,
Canto, canto, canto, canto
Canto, canto, canto, canto
Canto, canto, canto, canto
Canto até ficar rouco
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar...

MEU FOGO (2)

Você quer se aquecer e borbulhar
E encontra a minha fornalha
Quer trocar calor e perder o ar
E meu fogo falho em teu corpo espalha

Mas será que meu fogo não irá te queimar?
Será que minha fumaça não irá te estafar?
Será que minhas faíscas não irão te hipnotizar?
Será que meu carvão irá te marcar?
Será minha fornalha não irá te domar?

Então, por que se alimentar da minha chama?
Por que se afazer à minha labareda?
Será que é seguro você se aproximar?
Será que meu fogo é amigo?
Será que meu fogo é aprazível?
Quem inflamou meu fogo?
Será que existe fogo?

Noite fria, escuridão; te acomete a solidão
Será que conseguirei te esquentar?
Será que minha chama irá te iluminar?
Ou será que não mais existe chama?
E se ainda não estou apagado
Por que continuar a faiscar?

Talvez porque eu queira te acalorar
Te ensinar a brincar com fogo
Fazer você ficar em brasa
Adentrar em teu corpo e alma
Avermelhar teus olhos encantados
Reavivar-te e estar ao teu lado

Por isso, te aqueço mesmo impermanente
Sou fogo caliente e reluzente
A chuva tenta me arrefecer
Fumaço, renasço das cinzas
Ainda quero te incendiar
Quero te deixar sem ar
Mas minhas faíscas não cintilam mais
Minha fumaça me sufoca
Minha chama se cala
Apago-me.

MEU FOGO

Meu fogo pode te incendiar, te fazer pegar fogo. Pode te queimar por dentro, te inflamar por fora e até te sufocar. Pode acender a tua chama e servir como luz em meio à escuridão, assim como também pode te ofuscar. Os ventos tentam me apagar, mas acabam potencializando minha ardência. Aumentam a minha vividez, que carboniza os teus medos, te arrebata e excita. Faz-te dissipar todas as suas forças e queimar de prazer.

Meu fogo não te procura, basta você faiscar para encontrá-lo. E você não precisa crer nele, outras chamas mais vivas podem te acalorar. Mas, se buscá-lo, entregue-se de corpo e alma. Assim, ele vai te domar, te estafar, te fazer ficar em brasa e fumaçar desejos. E saiba que você pode arder sem culpa e até incitar meu fogo, atritar-se em mim, unindo nossas chamas, permutando nosso calor, enquanto te marco com carvão.

A fumaça gerada pelo meu fogo esvai-se, adentra à tua boca, visita as tuas vísceras e sai pelas tuas narinas, avermelhando os teus olhos. Com meu calor, você colhe ternura e aumenta a tua chama, resgatando outras chamas quase apagadas. E não precisa transgredir para sentir meu fogo, sou chama perene e impermanente; só quero te esquentar. Sou fogo em brasa que te deixa sem ar, te abraça e acolhe em noites de frio. Aproxime-se, minha chama te chama, sinta-me, deleite-se, tente até me apagar, mas cuidado pra não se queimar.

TRAGO

repleto de cicatrizes
aparento-me belo
trago um sorriso

minto, engulo a dor
tento omiti-la
trago uma droga

choro, me importuno
e dentro de mim
trago feridas

feridas em carne viva
jorram palavras:
causam um estrago.

LIBERTINAGEM

Cansei de ficar fazendo pose
De falar somente o que te agrada
De trancafiar-me em mim mesmo
De te ver por trás dessa máscara

Sei que se esconde dentro de si
Massageando o teu ego inflado
Mas não quero ser mais um santinho
Nem só mais um anjinho sem asas

Quero pisar à tua cabeça
Quero comer os teus miolos
Me alimentar do teu murmúrio
E zombar da tua desgraça

Quero precipitar teu choro
Quero arrancar a tua roupa
Quero te fazer meu mártir
Quero calar a tua boca

Então, por que não desacatar?
Por que esconder meus impulsos?
Por que mentir para o espelho?
Por que não cortar meus pulsos?

Não deixo a moral me enforcar
Nem você me deixar pra trás
Mas se houver um paraíso
Sei que será tarde demais

Pois só venero o agora
Faço pouco caso da morte
Meu combustível é a birita
A libertinagem é meu mote.

Pela doce história
Eu marcho errante
E minha alma levita

Me dá água na boca
E no olhar meloso
Os versos formigam.

VOZ

Você quer me mudar...
Quer um rosto bonito
Popular, barbeado
Uma chaga mascarada

Você quer me calar...
Quer me impor doutrinas
Calar meus instintos
Uma mente lavada

Você quer me mudar...
Quer me ver na moda
Engravatado, engomado
Uma alma abafada

Você quer me calar...
Só quer ouvir loas
Que soam como música
Palavras deformadas

Você quer me mudar...
Quer me fazer máquina
Raptar meus princípios
Me tonar mais um na manada

Você quer me calar...
Mas falo, brado, grito!
A minha voz vem de dentro
E eu não calo por nada.

EU INDIGENTE

Eu, o resto sem eira nem beira
Quem cata os restos na feira
Mais uma escória programada
Mais uma história mal pichada

Interpreto um papel maçado
Reciclo o papel passado
Um papelão: é o que faço
No papelão: deito e me abraço

Vender bala: meu ganha-pão
Correr da bala: destinação
A indiferença: desperta minha dor
A sirene: meu despertador

A lua enche meu saco
Com seu olhar pálido
Nem a terra absorve
O meu chorar árido

O sol nasce, minha pele frita
E minha sombra assombra
Minha voz trava, meu silêncio grita
E meu grito tomba

Varrido pelo vento
Sou mais um excremento
Maltratado pelo tempo
Dormir é meu passa-tempo

Abrigado na solidão
Sou um eterno desvalido
Com o pensar comprimido
E o latido reprimido

Meu signo: cão de rua
Destino: viver no mundo da lua
Guerra: encarar esse mundo insensível
Sonho: tirar essa coleira invisível

Nome: Zé ninguém
Sobrenome: algum alguém
Sem identidade
Sem entidade
Sem idade.

EU PÁSSARO

Você sabiá
Não sou cegonha
Sou assanhaço
Sou curióso...
Eu mal-te-vi
E quero-quero
Beijar flor
E papar capim.

EU SUOR

Sou o suor...
Que brota dos teus poros
Escorre por tuas valas
Te deixa molhada
Provoca o teu calor

Sou o suor...
Que expele da tua face
Peregrina em tua fronte
Impele em teu bojo
Exímio arrebatador

Sou o suor...
Andarilho do teu corpo
Explora os teus traços
Em meio aos abraços
Numa noite de amor

Sou o suor...
Que se perde em tua estrada
Precipita o teu regalo
Esparrama em teu regaço
E esgota o teu vigor.

EU ÁFRICA

Acorrentado pela escravidão...
Tenho marcas, sou marco,
Na face trago traços,
Sofrido negro afro.

Acorrentado pela escravidão...
Refém do fenótipo, nasci no cortiço,
A dor me traga, é tanto sacrifício,
Nada me revigora, resta-me o vício.

Acorrentado pela escravidão...
Agonizando eu sigo ermo,
E sinto a falsa liberdade num terno,
Preso no aflitivo quilombo hodierno.

Acorrentado pela escravidão...
Minhas ideias: estanques,
A morte: um baque,
Então suspiro ao som dos atabaques.

Acorrentado pela escravidão...
Venho do Saara, aro a seara,
E enquanto a ferida não sara,
Jogo minha capoeira odara.

Acorrentado pela escravidão...
Com açoite, os senhores tolhem,
E enquanto a dor não aboli,
Meu ópio é o folclore.

Acorrentado pela escravidão...
Minha sina é rastejar,
Na lavoura a dançar,
Dois pra lá, dois pra cá.

Acorrentado pela escravidão...
Conquisto a alforria,
Viro escravo da alegria,
Minha prisão: a fantasia.

Acorrentado pela escravidão...
Perdido, mergulho em teu mar,
Afogo-me em teu branco olhar,
E encontro-me em tua íris negra.

Acorrentado pela escravidão...
Tenho meus desejos cerceados,
Tenho o meu samba censurado,
Mas não calo: sangro os meus versos calejados.

ANDARILHO AMOR

Meu amor esparrama
Não preciso demonstrar
Meu amor é genuíno
Reflete no meu olhar

Não me interprete mal
Não guardo para ti
É panaceia universal
Não quero te possuir

Meu amor é perdigueiro
Pouco afeito a dinheiro
Ama praia, mar, coqueiro
Ama mãe, pai, lixeiro

Cumprimenta toda massa
Deixa migalhas onde passa
Pra quem está no chão da praça
Pra quem está nos palacetes

Meu amor é poligâmico
Com um olhar ou um espreite
Ao humilde ou histriônico
Deixa tácitos bilhetes

Sem medos e arremedos
Meu amor é um enredo
Com flertes e cortejos
Ama Maria, João e Pedro

Meu amor não tem muros
Meu amor morre de fome
Na cama, causa urros
Sorrateiro, te consome

Meu amor não escraviza
Meu amor não dilacera
É uma delicada brisa
Que extermina uma guerra

Meu amor à terra
Aos grãos e sementes
Amor medido em tera
Afoga-se nas nascentes

Meu amor é ateu
É teu, é réu, é deus
É vivo, não morreu!
Nos versos, eterneceu.