Coleção pessoal de CarlosVieiraDeCastro

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ELA

Café e tasca na aldeia.
Era sábado de cálido verão.
A noite teimava na ideia
De não querer o escuro
Como um muro
Que lhe tapasse a visão.

O poeta entrou e nada comunicou.

De pé, observou uma pintura naif
Escarrapachada
Na parede do café triste
E imaginou
E mais não disse
Mas sempre observando.

Eram só dois, para ele olhando.

Um ébrio, de pé e uma mulher sentada
Que dali a nada veio ter com ele, eu,
A perguntar se gostava da pintura
Da parede triste e abandonada.

Na conversa dela com o poeta,
Este correspondeu pela certa.

Falaram, cultivaram e quiçá divagaram...

No final, despediram-se,
Prometeram ficar amigos
Nestas coisas das redes sem trapézio,
As sociais redes de perigos
Que só vingam no mistério
De ser pessoa com mais artigos.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 07-08-2023)

⁠Antes de adormecer, que cada um afira na balança, o peso da sua consciência.

⁠OLHOS MORTOS

Quando te beijei naquela manhã,
Trazias nos olhos um regato de água,
Seco.
Estéril.
Forjado.

Senti em ti rios de desprezo
Subtis,
Hostis,
A correr sem destino,
Mal cheirosos,
Pelas margens do teu rosto,
Dos teus olhos covardes, mortos,
Por não olharem os meus.

Na sede que eu tinha da tua água,
Nem reparei que a tua estudada mágoa
Se misturava com o PH da tua acidez,
Sempre que queres magoar quem te fez.

Minha querida estátua que já és
Para mim tão absorta e estarrecida,
Nas tuas gélidas palavras sem sortida,
Um ser que não conheço nem de frente
Nem já de revés,
Eu que fui o obreiro da tua própria vida.

Um pai, já dizem não valer de nada
Agora neste mundo podre, sem guarida,
Houvera tempo de vida atrás voltada
Que nunca eu te geraria, nem cerzida.

(Carlos De Castro, in Há um Livro Por Escrever, em 31-07-2023)

OS ABUTRES

Voluptuavam e voavam em rasantes de dia,
Como morcegos errantes na noite escura...
Pareciam falos sem testículos por companhia,
A poisarem no largo da minha freguesia,
Como aviões sem asas ou abreviatura.

Tinham enfiadas roupas de boa cagança.
Aquela tentação de pelo hábito conquistar
O que o monge não conseguiu na esperança
De querer despi-lo, para um bom defecar.

Purguem-se, dejetem rijo ou de soltura, vilanagem!
Ó abutres ceguinhos, cofres podres com dinheiro,
Prefiro uma tosca foto do demónio sem imagem,
Que sentir o execrável perfume do vosso cheiro!

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 30-07-2023)

A FLOR AMARELA

⁠Veio um passarinho
Feito abelha
E deixou cair uma semente
Nos interstícios das pedras negras
Da velhinha calçada...

Brotou aí uma pobre flor,
Sem calor,
Nem carinho,
Nem nada...

Tinha a cor amarela,
Tão singela
E pura
De quem nasce ao deus-dará,
Pobrezinho...

Nunca pediu água a ninguém...

Quando vinha a chuva tarde, porém,
Dava-lhe vigor,
Em rega de amor,
Numas gotas de magia
Que a enchiam de alegria.

Veio um sapato e calcou-a.

Por milagre ou sorte,
Ela venceu a morte
E no outro dia
Lá estava ela,
A florzinha amarela
Fresca e viçosa,
Como alface graciosa.

Em frente, nos jardins dos ricos,
As flores ricas morreram todas...

Por serem muito mimosas.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 29-07-2023)


RISO DA MANHÃ

Se começo a rir, logo pela manhã...
Algo, em mim, toca a rebate,
Ou rameira de vinho verde,
Mesmo sem sede,
Ou então, vai ser mosca que mate...

Desde aí, é que eu desatino,
Sem decoro,
Sem remição até em choro,
Como sentença punitiva
Mas nunca assertiva
Que me seduz em pensar,
A meditar,
Por que jeito e destino,
Quando se começa a rir pela manhã,
Ao toque de um sino,
Chorar-se-á,
Quase sempre pela noite,
Com açoite,
Como se eu fosse sempre menino.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 25-07-2023)

⁠PROGENITURA QUIÇÁ

Pai, é barco
É vela,
É uma caravela no mar
Manso
Ou bravo,
Lutando contra a maré
E disputando com a ralé.

É aquela flor chamada cravo
Que nunca renega a fé
Quando o barco ameaça partir-se
Nas ondas revoltas,
Tortas,
Da vida.

Então aí, a mãe ao sentir-se,
Toma conta do leme
E não treme
Nunca no torto
Até o barco amainar,
Serenar,
Em bom porto,
Ainda que isso lhe vá custar
Em contrapartida,
Alguns anos a menos da sua própria vida.

(Carlos De Castro, em Há Um Livro Por Escrever, em 15-07-2023)

⁠Há gatos que já não comem ratos, mas há ratos que já comem gatos.

⁠⁠O passado, é uma foto amarelecida pelo tempo.
O presente, é uma paisagem passageira.
O futuro, é uma carta por jogar.

TRÂNSITO NA PASSADEIRA DA MORTE

⁠Ensinaram-me a andar,
Atento e devagar,
Para não ser atropelado
Nem atropelar
Quem se cruze no fado
Comigo,
Mesmo em único sentido
Na vida.

Senhor, com tanta brida,
Nem se respeitam sinais
Nem prioridades,
Tantos mortais senhores de nada
Que querem fazer da estrada
A coutada dos seus ruins ideais!

Têm cara de demónio
O único prazer património
Que querem auferir na vida,
É matar gente já sofrida.

Ontem, pela manhãzinha,
O sol raiava pela fresquinha
E eu meti pés ao caminho
Para aspirar a vida de mansinho.

Alguém em potente máquina de matar
Quem na frente deles se atravessar,
Me ia levando inutilmente pelo ar,
Como já morto e inerte passarinho.

Salvou-me alguém lá dos céus,
Que mesmo sem ouvir os brados meus,
Deu-me a força de me atirar à valeta
Em voo rasante, como em tempos,
De tantos outros contratempos,
Eu, como uma leve borboleta,
Pousava e saltava sem parar
Sempre que me queriam matar.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 01-07-2023)

⁠O passado, corre sempre o risco de vir a tornar-se presente, no mais imediato futuro.


O LAR DO SOFÁ VELHO

Não chores meu velho
Como eu, a ficar a sê-lo.

Nunca pensaste como ainda penso,
Vá, pensa:
Porque o pensar é de graça,
Afinal o que nos resta.

Já não é a tua casa,
O teu cheiro
E os odores por ti criados
Naquela casita perto do mar
Onde gaivotas te iam beijar
Pela manhã, famintas,
Do teu dar
E abrigo procurar
Nas tardes fortes de tempestade.

O teu lar, agora, é o teu penar...
Outros cheiros,
Gentes que nem sempre gostam de ti,
Pelo que vi, senti e ouvi.

E então fugi, fugi dali
Tão amargurado.

Que triste, é do homem fado
Deixado num sofá velho
A tremer de medo,
Naquele cubículo sem afetos
Onde reinam os dejetos,
Muita fome amordaçada
E mais...

Aquele horrível pecado
De os não deixar morrer
Na sua velhinha cama.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 27-06-2023)

⁠ESTRANHEZAS LUSO-BRASILEIRAS

Que estranho país é este,
Onde de fato nunca é facto,
Nos cus, tornados bundas
Nos paletós dos fatos nossos
Em bebedeiras de tremoços?

É um este sem vento oeste
Quando lá a desoras chega o trem,
E eu por cá à espera do comboio
Que nunca a horas certas vem.

Triste a minha melancolia
Quando eu na vossa Bahia
Imaginava em alegre sintonia,
Estar no Espinho meu em magia
Tomando banho na minha Baía.

Então, a gente galera assim fazia:
Vocês traziam os garfos e os pratos
E íamos acertando os palatos.

Nós, os copos e a pinga de Lisboa
Vocês, aquele petisco tropical,
Nós, as sardinhas metidas na broa
E vocês e nós, Brasil e Portugal,
Transando numa naice mesmo boa.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 26-06-2023)

⁠RISOS

Riam-se em doidice de tão loucos,
Em despregadas e reles bandeiras,
Com dentes podres pelas asneiras,
Os tais grotescos eunucos taroucos.

Eram desafinados e afinal tão roucos,
Mal orquestrados, uma pobreza, enfim,
Que mal eu os ouvi a rirem de mim,
Disse comigo: Façamos ouvidos moucos.

Eram seres de peçonha tinha maligna,
Doença que não poupa corpo nem alma
E só ataca multidões de gente indigna.

Um poeta, nunca morre sem a palma,
Nem se deixa matar por algum estigma,
Ele morre por si só, na mais serena calma.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 20-06-2023)

ALMA RELUZENTE

⁠Pensava ser eu uma alma reluzente.

Como tudo é tão diferente do pensado,
Quando num ápice repente
Recebo, vindo voando, ó gente!
Num escangalhado parapente,
Um anjo do Altíssimo Céu navegado,
Que me diz:

- Rapaz infeliz, sem alma reluzente,
Nunca te eleves, tem calma!
Para teres lustrosa alma,
Primeiro terás de ser gente
De construção hercúlea diferente,
Onde, de facto, o sonho habita.

E só depois,
Muito exigente,
É que a tua alma acende e grita!

(Carlos De Castro, in há Um Livro Por Escrever, em 15-06-2023)

⁠Quando a alma que nunca vimos, se torna objeto na nossa mente, é porque a sentimos e lutamos com ela de frente.

⁠Nem sempre os deleitosos namoros resultaram em casamentos felizes.

POESIA PRENHE

⁠Muitos,
Que tudo fazem
E desfazem
Para emprenhar a doce
E tão amarga
Presa ou solta à ilharga
Senhora bela - A poesia.

Sem nome de pai,
De mãe ou de tia,
Pelo menos nada consta
No cartão de cidadania.

Basta-lhe ser poesia
Pura, rebelde e arisca,
Não deixar copular
Macho ou fêmea,
Ou qualquer outro artista
Que só lhe quer levar a palma.

Gosta de preliminares,
De beijos e doces olhares
Sussurros loucos ao ouvido,
E embriaguez na alma.

Adora longos coçares
E muito depois então
É que abre as pernas
Para ejaculares
E te dar um dia
Um filho da poesia.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 08-06-2023)

CEREJAS

Degustava eu um ramo delas,
Quase assim.
Uma mais vermelhas
Ainda de formas fedelhas
De polpa ruim.

Outras, matizadas de branco,
Amarelado,
E eu sou franco,
Deixei as amarelas de lado.

Algumas, de bordeaux vincado,
Mas só cor
Sem sabor
Adocicado.
Poucas mais encontrei
Doces
Ainda que maduras
Apesar de duras
Como o mel melado.

Ia a meter a última à boca
E parei.
Era mais redondinha que as outras
Mas muito vermelhinha
E tinha
Uma outra cerejinha
Pegada à sua barriguinha
Como uma mãe que acabou
De dar à luz,
E quer mostrar a filhinha
Que reluz.

Tive pena de as comer
E num rebate de consciência,
Com exemplar paciência,
Fui metê-las em terra fresquinha:
A cereja mãe e a filha,
À espera que um dia destes
Irão nascer mais cerejas
Assim,
Por mim.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 05-06-2023)

⁠ESPERA DESESPERADA

Na velha gare esperei por ti;
Na esperança anunciada
De te ter como coisa amada
Naquilo que ao ganhar perdi.

Só depois é que vi
Que as estradas
E os carris das vidas
São feitos de tudos e nadas.

Nem sempre são retas desejadas
Para alcançar o sonho final,
Se não a mim e ao mundo
Vai um logro tão profundo,
Um medonho e abismal
Desígnio infernal
Nas encruzilhadas do mal.

Dessas, eu nunca me lembrei...
Por descuido me esqueci.
Agora, eu sei
Porque peno assim por ti.

(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 04-06-2023)