Coleção pessoal de CarlosVieiraDeCastro
O HOMEM E O URSO
Gostam de me chamar o velho,
Por este corpo desfigurado;
Sei que inflamo por capricho
Como urso branco sem brado,
Pelo destino de ser bicho.
Sou aquele pequeno grão
De areia,
Plebeia,
Nesta teia de ilusão,
Quase no fim do percurso.
Então em último recurso
E em termos de simpatia,
Prefiro mil vezes ser urso,
Que velho por analogia.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 18-11-2023)
SE
Se todos gostassem da minha poesia,
Jamais haveria
Paz no mundo.
O mar e as fontes secariam,
Os rios ao contrário correriam,
O ovo não teria gema
Nem o ovário
Seria berçário
De hormonas,
Neste meu mundo de sintomas
Da falta de teorema.
Seria o caos completo,
Tudo morreria
O absoluto e o obsoleto.
Por favor:
Para que haja paz no mundo,
Nunca leiam a minha poesia;
Podem até falecer de ironia,
Ou então ficar moribundo.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 12-11-2023)
NÃO
Não fui eu que me inventei.
Nem projeto,
Nem desenho,
Apenas mais um da grei,
Pelo que sei,
Um ser de certo dialeto
E, já agora, convenho:
Simples, fiel, muito reto.
Fui na pobreza criado
E nunca algoz de ninguém
E muito menos bastardo,
Quer de pai ou de uma mãe.
Sou apenas o resultado
De um amor de vida a dois.
Com a minha voz se canta o fado,
Com a minha vara eu toco os bois.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 11-11-2023)
VIDAS E ENCONTROS
Na rua dos sem esperança,
Entre cartões, lixo e encolhos,
Viram estes meus tristes olhos
Um ser sem futuro ou herança.
Nem sequer um ar de bonança
Da sorte que já lhe foi aos molhos,
Eu vi entre os seus escolhos
Nos olhos da sua lembrança.
Sentei-me então mano a mano
Ao pé dele, rosto de criança,
Mas eis que num gesto insano
Demonstrando inconfiança,
O pobre quase me rejeitou.
Deu um grito que me arrepiou
E da sua garganta avança:
Nunca a tempestade amainou
Nem me trará a bonança!
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 05-11-2023)
DAQUI
Desta terra em que vos falo,
Outros em tempos a habitaram.
Consta que dela também se fartaram
Dos mandadores crista de galo.
Ó terra amarga de que não calo
As injustiças tamanhas,
Dos que a roubam sem abalo,
Por ardis e artimanhas.
Os ouriços embrulham castanhas
Com a carapaça picante,
Assim me rasgam entranhas
Gentes do pior tratante.
E então logo num instante
E sempre que for preciso,
Peço aos mandões não obstante,
Que tenham melhor juízo.
DOÇURAS
Beijar teus cabelos,
Encostar os teus olhos aos meus,
Quentes,
Roçar a tua boca
Sôfrega,
Nos meus lábios
Sequiosos,
Tanger os teus seios
Com os meus dedos
Nervosos,
Entrar no teu ventre
Ofegante,
Através do rosado
Da abertura
Arfante,
Onde perdemos os sentidos
Num instante,
Do prazer que é rei
Dos nossos fluidos,
Que eu sei.
NA NOITE
Era noite escura,
Tudo invitava ao descanso,
Até o rugido do mar era manso,
Convidando ao remanso.
Nisto, o chiar de pneus no asfalto,
Como um grito alto
Na noite serena e pura
Toda silêncio de negrura.
Gritos e bebedeiras loucas na noite.
Músicas tolas debitadas às paletes,
Que mais pareciam um açoite
Nos ouvidos, como foguetes
Estourando nas retretes.
Era uma discoteca na estrada,
Urros de animais grotescos,
No rebentar de fluidos
Dos possuídos
De duas patas quixotescos.
E a noite ia avançando
A chorar pelo seu descanso,
Já em maré de balanço.
Lembrou-se então,
Com emoção,
Dos tempos
De outros tempos,
Que era a dona do serão.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 31-10-2023)
O VENTO A ÁRVORE E A CASA
Tarde de sábado.
A depressão do tempo castigava.
Agora, chamam depressão
Ao tempo mau que faz.
Porque não!?...
Mas o vento é sempre rapaz
E as árvores também femininas
Quanto velhas mais meninas.
Com a diferença que o vento
Tem agora mais lamento
E as árvores amém,
Nestas tardes sem ninguém.
O vento soprava,
A árvore balançava
Sobre a humilde casa.
Era aí que ele habitava,
Um homem pobre,
De rosto nobre.
Invocou os deuses dos ventos
E dos contratempos
A ver se a borrasca amainava.
Qual quê!?...
O vento insistiu,
A árvore caiu
E a casa humilde ruiu.
E ele deixou de acreditar
Nos deuses dos ventos
E contratempos.
Abriu os braços e pôs-se a voar.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 29-10-2023)
O coração, em termos de emoção, deve ser sempre o último a escutar.
Nestas ocasiões, vale mais a razão de bem pensar, antes de agir.
AS MÃOS
Elas pegam
E despegam,
Apertam
E desapertam
Emoções.
Matam paixões,
Fazem reviver
Quem está a morrer
De mortes ou sensações.
Benzem
E banzem
Orações,
Bruxarias,
Arrenegam heresias,
Aliviam comichões.
De muito as glorificar,
Acabei por me lembrar
Que há tantos anos
De desenganos,
Não beijo as mãos
De minha mãe.
Pobre de quem a não tem.
Valho-me dum retrato dela
E mato a sede da saudade,
Beijo-lhe as mãos de papel
E até me parece que ela
De verdade,
Me afaga o rosto,
Com tanto gosto,
E aquela doçura do mel.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 23-10-2023)
DIVAGAÇÕES
Eu já nem sei o que sou,
Porque vim e aqui estou,
Para onde vou
Neste barco que me castrou
Sem remos de princípio ao fim.
Só sei que não vim por mim...
Se viesse, não estaria aqui,
Neste degredo,
De vos revelar o segredo
De uma vida que vivi,
Sempre na escuridão do medo.
E é por isso que vou
Com meu pincel e apenas,
Borrar um quadro de penas
Na tela que Deus traçou.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 21-10-2023)
SORRI TRISTEZA
Anda comigo tristeza,
Não sintas medo ou horror,
Traz só uma capa fina
De esperança pequenina,
Nos ombros da tua dor.
Iremos então lado a lado,
Dois cegos a cantar o fado,
Sem esmola, só pelo sonhar...
Anda tristeza e meu fadar,
Para onde vamos só basta
Trazeres na tua canastra,
O vento que vem no ar.
Anda tristeza, arrasta
A nossa vida pró mar,
Sorri tristeza sem parar,
Pois sorrir até afasta,
O fantasma do penar.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 20-10-2023)
PRAGAS EM VINHA D'ALHOS
Tantas penas, tantas pragas
Me rogaram de mansinho,
Pra tolher o meu caminho
Em horas tão aziagas.
Esqueceram que até nas fragas
Rijas das penedias,
Nos rochedos escabrosos
Pedregulhos tenebrosos
Das montanhas tão bravias,
Por obra de algum autor
Tal Cristo mostrando as chagas,
Pode aí brotar uma flor.
E essa flor que nasceu
Fui eu,
Me confesso, pecador
E autor nas horas vagas,
Que por força do meu fervor,
Já não me pegam as pragas.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 18-10-2023)
DE FACTO E NUNCA DE FATO
De facto sendo, assim é.
De fato nunca, por não gostar
De enfiar no corpo até,
Tamanho estorvo de apertar.
E me obrigar
Pela simples razão da força,
Ainda que o diabo torça,
Debaixo das axilas,
Rangendo as maxilas,
Estroncar a fatiota toda,
Ainda que me digam
Ou maldigam
Que não percebo da poda,
E não saber andar na moda.
Também não me interesse a roda
Do vestir nas estações,
Basta-me, para andar na moda,
Tapar bem os meus feijões.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever)
EM MIM
Só agora, no fim, serei
O ser que não fui,
Porque errei no escolher
Da sorte, por não saber
Que ela só flui
A quem tem a coragem
De viver,
Sem querer entender
Se a vida é quadrada
Ou redonda
Como o mundo
Profundo
Entre a areia dourada,
A terra e o mar
E aquela onda malvada
Que nos arrebatou
E na tragédia nos levou,
Para um poço sem fundo.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 15-10-2023)
EM MIM
Cai tanto nevoeiro em mim...
Enregela,
Amortiça,
Sem justiça,
Os pobres ossos.
Até os pardais se riem de mim...
Dos destroços
Que o nevoeiro
Traiçoeiro,
Deixa nos meus ossos.
Não é nevoeiro do ar
Aquele que me atormenta,
É mais aquele pesar
Pelo que me fazem passar
E mata de forma lenta.
Em mim, há fonte sedenta
De amor, paz e alegria,
Quer de noite quer de dia,
Verdade que não se inventa.
(Carlos De Castro, in Há Um Livro Por Escrever, em 15-10-2023)