Coleção pessoal de annagenga
Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.
Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.
Seus gestos
Numa câmera lenta
de um simples fechar de olhos,
transmite sentimentos ao abrir
Numa câmera lenta
de um lindo sorriso no rosto,
transmite sentimentos ao sorrir
Seus gestos
lentamente me despertam sentimentos,
foi sempre assim, desde que te conheci
Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse
Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...
Me deixem ficar aqui apenas
sozinha no meu quarto
a contemplar as folhas secas do outono
que se amontoam pelo chão
levadas e trazidas pelo vento...
Deixem-me ouvir o som das nuvens
e admirar suas formas negras...
Deixem-me suspirar pela vida
que reflete no meu ser
assim, penso nas horas
que não posso mais perder
e nas que eu perdi...
Do Outro Lado da Tarde
Sim, deve ter havido uma primeira vez, embora eu não lembre dela, assim como não lembro das outras vezes, também primeiras, logo depois dessa em que nos encontramos completamente despreparados para esse encontro. E digo despreparados porque sei que você não me esperava, da mesma forma como eu não esperava você. Certamente houve, porque tenho a vaga lembrança - e todas as lembranças são vagas, agora -, houve um tempo em que não nos conhecíamos, e esse tempo em que passávamos desconhecidos e insuspeitados um pelo outro, esse tempo sem você eu lembro. Depois, aquela primeira vez e logo após outras e mais outras, tudo nos conduzindo apenas para aquele momento.
Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse - e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado - a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou. E foi essa coisa que me levou há pouco até a janela onde percebi que chovia e, difusamente, através das gotas de chuva, fiquei vendo uma roda-gigante. Absurdamente. Uma roda-gigante. Porque não se vive mais em lugares onde existam rodas-gigantes. Porque também as rodas-gigantes talvez nem existam mais. Mas foram essas duas coisas - a chuva e a roda-gigante -, foram essas duas coisas que de repente fizeram com que algum mecanismo se desarticulasse dentro de mim para que eu não conseguisse ultrapassar aquele momento.
De repente, eu não consegui ir adiante. E precisava: sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto. Mas de repente não havia depois: eu estava parado à beira da janela enquanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. Era dessas lembranças que eu queria te dizer. Tentei organizá-las, imaginando que construindo uma organização conseguisse, de certa forma, amenizar o que acontecia, e que eu não sabia se terminaria amargamente - tentei organizá-las para evitar o amargo, digamos assim. Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro, quando e como nos conhecemos - logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.
Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada - sabia o tempo todo disso -, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo.
E era sempre de tarde quando nos encontrávamos. Até aquela vez que fomos ao parque de diversões, e também disso eu lembro difusamente. O pensamento só começa a tornar-se claro quando subimos na roda-gigante: desde a infância que não andávamos de roda-gigante. Tanto tempo, suponho, que chegamos a comprar pipocas ou coisas assim. Éramos só nós depois na roda gigante. Você tinha medo: quando chegávamos lá em cima, você tinha um medo engraçado e subitamente agarrava meu braço como se eu não estivesse tão desamparado quanto você. Conversávamos pouco, ou não conversávamos nada - pelo menos antes disso nenhuma frase minha ou sua ficou: bastavam coisas assim como o seu medo ou o meu medo, o meu braço ou o seu braço. Coisas assim.
Foi então que, bem lá em cima, a roda-gigante parou. Havia uma porção de luzes que de repente se apagaram - e a roda-gigante parou. Ouvimos lá de baixo uma voz dizer que as luzes tinham apagado. Esperamos. Acho que comemos pipocas enquanto esperamos. Mas de repente começou a chover: lembro que seu cabelo ficou todo molhado, e as gotas escorriam pelo seu rosto exatamente como se você chorasse. Você jogou fora as pipocas e ficamos lá em cima: o seu cabelo molhado, a chuva fina, as luzes apagadas.Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava - ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas, bobas, insignificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros. Talvez você tenha me chamado de fatalista, porque eu disse todas as coisas, assim como acredito que você tenha dito todas as coisas - ou pelo menos as que tínhamos no momento.
Depois de não sei quanto tempo, as luzes se acenderam, a roda-gigante concluiu a volta e um homem abriu um portãozinho de ferro para que saíssemos. Lembro tão bem, e é tão fácil lembrar: a mão do homem abrindo o portãozinho de ferro para que nós saíssemos. Depois eu vi o seu cabelo molhado, e ao mesmo tempo você viu o meu cabelo molhado, e ao mesmo tempo ainda dissemos um para o outro que precisávamos ter muito cuidado com cabelos molhados, e pensamos vagamente em secá-los, mas continuava a chover. Estávamos tão molhados que era absurdo pensar em sairmos da chuva. Às vezes, penso se não cheguei a estender uma das mãos para afastar o cabelo molhado da sua testa, mas depois acho que não cheguei a fazer nenhum movimento, embora talvez tenha pensado.Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nós conversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, e quando ela parou, você foi embora.
Além disso, não consigo lembrar mais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe, mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser uma lembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse a alguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quem escreve uma história e procura ser interessante - seria bonito dizer, por exemplo, que eu sequei lentamente seus cabelos. Ou que as ruas e as árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nada a ninguém. E quando penso, não consigo pensar construidamente, acho que ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então pensei numas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela nossa conversa - depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais!
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Tal é o prazer e a dor... saem de um tronco único porque têm uma só e mesma base, eis que cansaço e dor são a base do prazer e os prazeres vãos e lascivos estão na base da dor.
Julgar Aparências
Julgar pela aparência é como olhar um cacto. Não se percebe a água contida em seu interior, nem a beleza de suas flores.
Se te pareço noturna
e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim,
como se tu me olhasses
E era como se a água
Desejasse...
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...
Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Se é pra sofrer, que seja sozinho, onde seu rosto possa estampar desalento, inchaços, nariz vermelho, olhar perdido, boca crispada. Se é pra sofrer, que o corpo possa verter, vergar, amolecer. Se é pra sofrer, que possa ser descabelado, que possa ser de pés descalços, que possa ser em silêncio.
Te quero. Te quero molhado, com o cabelo despenteado, com cara de sono, com sorriso malicioso, com olhar sincero. Te quero sorrindo, bravo, nervoso, emburrado, feliz, chateado, triste. Te quero lindo, te quero feio, te quero desarrumado, te quero perfumado. Te quero na sala, no quarto, na rua, tanto faz. Te quero aqui, te quero acolá. Te quero para transformar eu e você em nós.
Faz aquele café meio amargo, toma três goles, fuma teu último cigarro. Passa um batom vermelho. Ajeita o cabelo e vai.
(Gatos no Telhado)
As noites seguem sendo noite,
a vida pulsa no interior desta cidade
estou me prendendo a céu aberto, como gatos no telhado
Não sei se por medo da solidão ou insegurança de andar sozinho...
Tenho convulsões dentro de mim.
A alma grita: VIVE !!!!
O tédio tem sido meu companheiro, e eu já deitei sobre o comodismo
Conhecemos somente esta vida...
E, então, o que faço com esse gato preso no telhado, dentro de mim ?
Me de mais uma bebida, bem forte por favor, pra decidir se me iludo mais um pouco
ou se chuto o gato pra além das estrelas, perto do que se chama esperança
onde se possa ouvir o sussurro da liberdade, sem sofrimento, sem mágoas, sem dor...
Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como um homem, mas sinto como mulher. Não me considero vítima de nada. Sou autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos.