Coleção pessoal de AlexiaKilaris
PÍLULAS DO GRANDE SERTÃO
Coração da gente – o escuro, escuros.
Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.
No sistema de jagunços, amigo era o braço, e o aço!
Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.
A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.
O diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!
O diabo, na rua, no meio do redemunho.
O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?
Quem muito se evita, se convive.
Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.
O que lembro, tenho.
Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
Quem mói no asp'ro, não fantaseia.
Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente.
Vingar... é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.
Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia?
Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores.
Um chefe carece de saber é aquilo que ele não pergunta.
Comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.
Toda saudade é uma espécie de velhice.
Riu, de me dar nojo. Mas nojo medo é, é não?
Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor.
Tudo é e não é.
Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.
Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!
O sertão é do tamanho do mundo.
Sertão: é dentro da gente.
O sertão é sem lugar.
O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.
O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.
O sertão é uma espera enorme.
Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.
A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.
A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.
Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.
Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...
Feito flecha, feito faca, feito fogo.
Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem.
Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília.
Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor.
A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.
Se você quiser muito, muito mesmo, algo, deixe ir. Se voltar para você é porque é seu para sempre. Se não voltar, é porque nunca foi seu.
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Pensar, pensar
Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.
Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida.
Com a tripa em sossego qualquer um tem ideias, discutir, por exemplo, se existe uma relação direta entre os olhos e os sentimentos, ou se o sentido da responsabilidade é a consequência natural de uma boa visão, mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.
Nós temos sempre necessidade de pertencer à alguma coisa; e a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, e neste caso, a língua com que se escreve?
Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se limitar à quilo que se faz agora, se ele andar pra traz e começar do principio, e poder ler os primitivos e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação, transformando-se numa mina inesgotável de beleza e valor.
Com pesos dúvidos me sujeito à balança até hoje recusada de saber o que mais vale:
Se julgar, assistir ou ser julgado.
Ponho no prato raso quanto sou.
A virtude, quem o ignorará ainda, sempre encontra escolhos no duríssimo caminho da perfeição, mas o pecado e o vício são tão favorecidos da fortuna que foi ela chegar e abrirem-se-lhe as portas do elevador.
Retrato do Poeta Quando Jovem
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
SE PUDERES OLHAR, VÊ. SE PODES VER, REPARA.
Retrato do desmoronar completo da sociedade causado pela cegueira que aos poucos assola o mundo, reduzindo-o ao obscurantismo de meros seres extasiados na busca incessante pelo poder. Crítica pura às facetas básicas da natureza humana encarada como uma crise epidémica. Mais do que olhar, importa reparar no outro. Só dessa forma o homem se humaniza novamente. Caso contrário, continuará uma máquina insensível que observa passivamente o desabar de tudo à sua volta.
Dulcineia
Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.
Há ocasiões que é mil vezes preferível fazer de menos que fazer de mais, entrega-se o assuntto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição dos instantes seguintes.
Não me Peçam Razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma maneira bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratularmo-nos ou para pedir perdão, aliás, há quem diga que é isto a imortalidade de que tanto se fala.