Verônica H.
Não adianta me oferecer o discurso de faculdade-emprego-família como verdade absoluta. A gente não aprende a viver sentado numa carteira de colégio. Não é a fórmula de Pitágoras ou a definição de pronome oblíquo que vai fazer com que eu seja mais ou menos inteligente. Saber organizar informações burocráticas em série e ser programado roboticamente não faz de ninguém um ser humano repleto. Isso tudo só rende uma possível colocação relevante numa prova de vestibular, um êxtase momentâneo. A vida se aprende nas perdas. É perdendo a liberdade que a gente descobre que não se encaixa, é perdendo alguém que a gente descobre que não vale a pena lutar por futilidades, é perdendo o apoio que a gente descobre que o resto do mundo não para só porque nosso mundo parou. A gente vai aprendendo a viver assim, na marra, no grito, no sufoco, no impulso. Eu quis mudar o mundo, quis ser brilhante, quis ser reconhecida. Hoje eu quero bem pouco e prefiro me concentrar no agora do que planejar um futuro incerto. Eu me libertei da culpa e dei de cara com algo novo: não me encaixo, e aceito. Não é justo perder as asas no momento em que se descobre tê-las. É preciso poder voar, é preciso ter uma visão estratégica das janelas. Ver o sol e não poder tê-lo é absurdo. Então eu deixo algumas coisas passarem incompletas porque tenho consciência de que certas palavras ainda não têm tradução. Por mais que eu grite, vai ter quem não entenda, não aceite. O que eu não aceito é ter nascido num mundo tão grande e conhecer só uma pequena parte. Vou voar. Quem conseguir compreender, que me acompanhe.
Todos os sentimentos ridículos que só são ridículos pelo tamanho da verdade, pela vontade de dizer sem motivo e mil vezes.
Se por acaso fujo, não é por falta de luta. Qualquer abandono exige coragem. Qualquer fuga tira um pedaço de nós que não volta. É preciso força até para desistir.
Permita-me desfalecer enquanto disserto sobre coragens que não tenho. Deixe-me ir quando não houver mais disposição para ficar. Aceite minhas falhas que hoje me definem e me limitam, mas diga o que for preciso pra me corrigir. Deixe-me chorar pela incompletude desses dias que não passam, mesmo que seja bobagem, mesmo que minha solidão seja infundada e incompreensível. O telefone não toca e se você não conhece o desespero do silêncio, apenas aceite.
Eu ando sorrindo mentiras por aí. Fazendo novos eus, como se só houvesse possibilidade de ser verdade ao lado de alguém. É coisa de gente que se ilude, eu sei, gente que espera o aval de outras pessoas para ser feliz. Mas é que me dá um aperto, uma angústia. Você sabe do que eu estou falando, aquele sentimento que a gente tem quando todo dia é segunda-feira. Eu espalhei muito sorriso à toa, pra ver se um deles prendia alguém no canto dos lábios. Não funcionou. Mas ainda tenho alguns guardados, chorosos, quase desistentes, quase sem motivo, esperando valer à pena escapar pelos olhos.
Perdoe-me a indelicadeza, a maneira bronca no convívio humano. Falta-me a consciência de amar. Sobra-me o medo de ser mal entendida. Tenho limitações bobas que não se explicam com definições certas, palavras existentes. Tem um dicionário inteiro de termos ainda não criados para falar sobre mim. Não sei o que, não sei o motivo, não sei como. Não explico, nem me importo. Apenas sou. E isso tem que bastar.
Você me pergunta se eu não tenho coração. Eu tenho. Tenho um coração vazio de ódio ou amor. Se você não consegue ouvi-lo é porque não faz ele bater. Me provoque, me ofenda, brigue comigo, mas não me deixe presa no comum. Não permita que o tédio silencie meu coração.
Se você tivesse chegado antes, eu não teria notado. Se demorasse um pouco mais, eu não teria esperado. Você anda acertando muita coisa, mesmo sem perceber. Você tem me ganhado nos detalhes e aposto que nem desconfia. Mas já que você chegou no momento certo, vou te pedir que fique.
Quando foi a última vez que você tomou banho de chuva sem se preocupar com o celular no bolso, os cartões do banco, a chapinha, o sapato que não pode molhar? As pessoas têm que se permitir. Aprender o atraso, o olhar em volta. Mudar o caminho de todos os dias e se perder no seu próprio bairro. É o que tenho feito, me perder. E devo dizer que estou muito feliz por não encontrar o caminho de volta.
" Falar de melancolia é fácil. Os dicionários estão recheadíssimos de palavras bonitas que tendem tristes a explicar o sofrimento dos outros. O difícil é falar da alegria. Alegria que pode ser felicidade momentânea, mas quase não tem sinônimos na literatura.
O estar bem não inspira, não vira música nem poesia. Estar triste é sentimento premiado no Oscar de melhor drama, é realidade inventada para vencer o tédio que é ser comum e não ter do que reclamar. "
Verônica H.
Me liberta, me expulsa de mim. Mostra uma arte verdadeira, sem ensaios e apresentações semestrais. Quero perder a garantia por uso excessivo, gastar os saltos dos meus sapatos. Eu não quero nada impossível, quero realidade. Quero alma e vida de verdade.
Eu nunca me apaixonei por você, mas sempre gostei muito. Principalmente porque achei que você gostasse de mim. Admirei seu coração e respeitei seus medos. Agora, já não sei se ainda sinto.
(…) regras não servem pra mim. Não tenho vocação pra bailarina, tenho fobia de linha reta, tenho o corpo livre, o espírito solto, sou do mundo, das pessoas, das conquistas, das novidades, vou construindo fatos e lembranças nas esquinas. A vida que tem lá fora gritou e eu não ouvi. Agora me movo a passos curtos, ziguezagueando por entre mudas de flores recentes que querem ser botão. Eu quero ser flor: quero terra viva que se mova e me faça mover.
Não me completo porque eu quero que seja meu o que já pertence aos outros e porque todos já pertencem, de alguma forma. Ninguém mais é virgem de alma. Carregam por aí paixões mal resolvidas, soluções mal apaixonadas, são metades vazias que não podem completar vida nenhuma.
Se quer mesmo saber de mim
O que eu sou não lhe diz respeito, em parte nenhuma lhe toca. Nasci para poucos e morro por quase ninguém. Contradigo-me em passos de dança invisíveis, enlaçando pernas e prendendo bocas, querendo muito e gostando tão pouco. Não é insatisfação ou sofrimento, é só um tudo ao mesmo tempo agora que não respeita amor de menos, não aceita um gostar pouquinho e querer às vezes. Uma intensidade que não se conforma com noites únicas de começo, meio e fim. Se estou aqui é pela música, pela companhia, pra me perder. Jamais pra desperdiçar uma noite com quem não sabe conversar.
Não me pergunte o que eu faço da vida, isso é banal, é triste, é comum. Queira saber o que me faz feliz, meu ponto fraco pras cócegas. Não pergunte o que me dá dinheiro, porque este é o menor dos meus sucessos. Esqueça meu nome verdadeiro, se eu venho sempre aqui, se estou gostando da música. Agir sem naturalidade é o seu maior fracasso.
Se é mesmo importante que eu responda as perguntas que tanto desprezo, se definir o que sou vai te fazer mais feliz, se quer mesmo saber de mim, comece pelas entrelinhas. Pelo não dito. Pelo movimento dos cílios e as pupilas dilatadas, os olhos nervosos que não se fixam, o modo de apoiar o peso do corpo em uma das pernas e me preocupar com o cabelo. Olhe para as mãos que não sabem repousar e a voz que desafina. Por favor, sou tão ridiculamente fácil de decifrar e ainda insistem em seguir pelo caminho errado. Exponho-me tanto e ainda querem uma cartilha.
E fazem isso porque amam de relance, querem no momento e só por desafio. Porque têm preguiça ou medo de cumplicidade e acreditam perder a noite se optarem por se apaixonar pelo próprio ego. Porque perdem oportunidades de se calarem quando é papel dos olhos falar.
É por isso que eu estou sozinha nesse mundo de luzes e pessoas. É por isso que eu saio de casa e minha roupa não precisa agradar ninguém além de mim. Porque não deixo o calor da minha rotina pra ser prenda em vitrine.
O que eu sou não lhe diz respeito, em parte nenhuma lhe toca. Mas se quiser mesmo saber de mim, experimente não me perguntar. E talvez assim desperte minha vontade de contar.
É tanta falta
Vamos no atrasar. Por causa da chuva, por causa da preguiça. Sem culpa. Tem um mundo todo de gente lá fora que pouco importa. O carro bem poderia ter quebrado, ninguém vai saber se a gente não contar. Vamos nos atrasar por querer mais de nós dois.
Fica mais um pouco e me deixa fazer parte da sua história. Quero o seu dia-a-dia na minha rotina e seu colo pra dormir. Quero nossos assuntos em pauta e nossa falta fazendo companhia. Eu quero mais que solidão a dois e inseguranças tristes para preencher cotidiano. Mais que sorrisos inconvicentes e quase amizades convenientes. Eu quero menos. Menos pensamento, menos dúvida. Um equilíbrio e você de brinde.
Vamos nos atrasar, deixar o mundo acontecer do outro lado da porta enquanto a gente discute desenhos animados na cozinha e faz comida para o jantar. Esqueça a música alta, esqueça as pessoas e seus cumprimentos tediosos, é sábado, deixa pra lá. Tudo o que a gente precisa está aqui. Tem eu, tem você, tem uma madrugada inteira de nós dois. E isso é tudo.
Eu sou volúvel. Grande surpresa. Mas ser volúvel também cansa. Porque ninguém leva a sério alguém que passa a semana chorando pra ficar bem na semana seguinte. Como se fosse preciso ser feliz pra sempre ou triste pra sempre pra ser alguma coisa de verdade.
Não quero mais a realidade comum. Isso é o que mais cansa, pra ser bem sincera. Tenho até arrepios de pensar num futuro escrito e óbvio nas prateleiras de gente sem sal. Só de saber o que vai ser de mim, já quero ser outra coisa. Uma coisa nova e diferente, pra quebrar o que é certo.
Me provoque, me ofenda, brigue comigo, mas não me deixe presa no comum. Não permita que o tédio silencie meu coração.
Quero os melhores romances, ou prefiro ficar sozinha. Quero as melhores lembranças, ou prefiro não lembrar. Ou vivo intensamente, ou vou levando essa rotina que não incomoda, não interfere, não fere, mas também não é vida. Vou dispensando tudo o que não julgo suficiente pra me roubar a solidão. Vou excluindo do meu convívio todos que não parecem prontos pra marcar meus dias.
E agora sou essa criança que só quer agarrar você e proibir de brincar com os outros amiguinhos. Só meu, não empresto.
Só numa multidão de amores
Eles não estavam trocando juras de amor, não andavam de mãos dadas, nem se chamavam por nomes infantis. Não tinha pieguice romântica ali. Mas foi a cena mais doce que eu vi: dois olhares se encontrando. Não só se encontrando: se confortando, se sabendo, se completando. Eu notei que eles eram algo além de amigos, que se desejavam e se protegiam, e foi só pela cumplicidade dos olhos, que deixavam de ser dois e se enlaçavam quatro.
Eu quis então ter um olhar pra mim. Não alguém pra chamar de meu, como diz o clichê, como grita a conveniência, mas um olhar que fosse meu por puro encaixe. Foi um pouco de inveja, talvez. Eu soube naquelas duas pessoas que elas não se sentiam sozinhas ou perdidas. Que mesmo depois de um dia cheio e chato, tinham uma certeza de carinho. E eu quis. Quis algo além da rotina do trabalho e gente fabricada com seus narizes perfeitos e cabelos penteados. Quis algo certo como o frio na barriga e a respiração travada, o coração esquecendo de bater. Quis algo errado que me fizesse bem só por escapar do caminho óbvio de toda noite. Uma espera no fim do dia, sabe? Essa espera. Não a espera de uma vida toda sem saber o que buscar pra ser feliz. Só sair do dia igual pra ter uma noite diferente. E tornar esse diferente comum só porque é bom estar perto.
Todo o amor que eu sufoquei por excesso de razão agora grita, escapa, transborda. Estou só numa multidão de amores, assim como Dylan Thomas, assim como Maysa, assim como milhões de pessoas; assim como a multidão de amores está só, em si. Demonstro minha fragilidade, meu desamparo. Eu não procuro alguém pra pentencer e ter posse, só quero uma fonte segura de amor que não dependa das obrigações, das falas decoradas, dos scripts prontos. Eu sei que eu abri mão de várias oportunidades. Sei que fiz pouco caso do amor que me entregaram de maneira pura e gratuita, só porque eu achava que podia encontrar coisa melhor. Se as pessoas estão sempre indo e vindo, eu só queria alguém minimamente eterno em sua duração, que me fizesse parar de achar normal essa história de perder as pessoas pela vida.
Vou embora querendo alguém que me diga pra ficar. Estou sempre de partida, malas feitas, portas trancadas, chave em punho. No fundo eu quero dizer "Me impede de ir. Fica parado na minha frente e fala que eu tenho lugar por aqui, que não preciso abandonar tudo cada vez que a solidão me derruba. Me ajuda a levar a vida menos a sério, porque é só vida, afinal." E acabo calada, porque não faz sentido dizer tudo isso sem ter pra quem.
Eu não quero viver como se sobrevivesse a cada dia que passo sozinha. Não quero andar como se procurasse meu complemento em cada olhar vago. Eu acho que mereço mais que isso por tudo o que eu sei que posso fazer por alguém. E fico só esperando, na surpresa do dia que eu desencanar de esperar, um par de olhos que me faça ficar sem nenhuma palavra, nada além de dois olhos se enlaçando quatro. Nessa multidão de amores, sozinho é aquele que não espera.
O mundo me prefere com dois braços e duas pernas, mas não sei mais ser humana. Sorrir cansa. Chorar cansa. Mas o que mais cansa é procurar desesperadamente um intermediário e esquecer que o mundo é mais que aparências.
Eu sou volúvel. Grande surpresa. Mas ser volúvel também cansa. Porque ninguém leva a sério alguém que passa a semana chorando pra ficar bem na semana seguinte. Como se fosse preciso ser feliz pra sempre ou triste pra sempre pra ser alguma coisa de verdade.
Não quero mais a realidade comum. Isso é o que mais cansa, pra ser bem sincera. Tenho até arrepios de pensar num futuro escrito e óbvio nas prateleiras de gente sem sal. Só de saber o que vai ser de mim, já quero ser outra coisa. Uma coisa nova e diferente, pra quebrar o que é certo.
Eu ando tão cansada de seguir as regras. Ando tentando mudar as regras. Eu sei que o que acomoda não é fácil de mudar, mas alguém um dia tem que dizer chega, né? Pras coisas mudarem, o mundo girar. Tanta engrenagem e tão pouco suor.
Só sei que ando dedicando meus dias pra gente que nem sabe que eu existo. Vou fazer minha faculdade, conseguir meu diploma. Vou fazer o que for preciso pra nunca mais precisar fazer nada. E passar o resto da minha vida fingindo que acredito na minha liberdade.
A falta de alguma coisa que eu não sei o que é
Eu sempre acho que amanhã será o dia de mudar de vez, de me assumir por completo. Mas daí o amanhã chega e tenho uma imensa preguiça de sair da minha área de conforto, porque é bem provável que ninguém entenda. E dá medo encarar o que é definitivo. E porque é mais fácil reclamar da vida do que torná-la leve de sobreviver.
Hoje eu sinto saudade e nem sei do quê. É uma angústia louca, um misto de vontade de chorar e sorriso leve. Eu não sei citar motivos, mas alguma coisa me falta. Estou ao mesmo tempo feliz e deprimida, tenho companhia e nunca fui tão sozinha, tenho sucesso e nuna me senti tão fracassada.
Eu crio mil planos pra mim e boicoto todos eles. A vida é tão cheia de ciclos e fases e eu me agarro doentiamente ao conhecido. Eu evito mudanças drásticas, sabendo que são meus impulsos mais interessantes e busco o conforto da mesmisse. É ridículo, não há surpresas.
Ninguém nunca espera que eu saia dos meus limites. Quem me conhece de verdade? E quem sabe dos momentos que eu estou a ponto de explodir? As saudades são grandes, o telefone mudo. Me identifico com livros e personagens e nem tenho uma história pra contar. E se eu contar, quem vai se importar?
Eu me importo, e muito. Quero marcar mais quem passa por mim, quero perder esse medo de não agradar, essa preocupação em ser o que todos esperam. Tentando não incomodar ninguém eu fico neutra. Invisível. E todas as minhas experiências de falta de preocupação já me indicaram que seria bem melhor me assumir. Eu não sou tímida. Sou calculista.
E essa falta... Na verdade eu sei, mas não queria saber... É falta de mim.
(…) Minha distância, que você percebe e julga ser frieza, é apenas um mecanismo de defesa contra o que virá depois. Já me acostumei à desilusão e sua argumentação em favor do mundo não vai ajudar. Estou desiludida de mim, dos meus impulsos, das minhas incapacidades, da minha falta de sentidos, não das outras pessoas. As outras pessoas cumprem direitinho com seu papel, se esforçando pra quebrar meu gelo, algumas gostando sinceramente de mim, apesar da falta de resposta. Sou cigana, sou estrangeira, sou de partida, nunca de chegada. Sou de começo e fim, não de durante.