Suzanne Leal
Era pra ter sido degrau por degrau. Mas num deslumbramento das coisas eu me atropelei e desci escada abaixo.
Eu sou dualidade. Eu vivo uma dualidade. Dois furacões brigam em mim. Uma é pacata e às vezes até um pouco amarga. A outra é viva, é feroz, têm ânsia por revirar rios e florestas. Meu ser tem dois nomes. E eles brigam intensamente. E quem disse que paciência e compreensão são as melhores virtudes? Minha dualidade discorda plenamente.
Cada descoberta vem porque é preciso descobrir. Porque é o instante que precisa, que está preparado para se envolver com mais mistérios.
A eternidade me assusta, o passar do tempo também. Sempre me pego a espreita, de vigia nos ponteiros do relógio. É um tic tac de aflição, ele gira, sem parar. Mesmo que eu tire suas energias, ele passa, ele passa, só porque tem que passar, e esta é sua única função. No mesmo passo, ele vai, sem voltar, sem olhar pra trás, incansável, destemido. Pensando bem, eu gostaria de ter um pouco de ponteiro de relógio.
Meu coração faz planos indiretos de bater calorosamente e alimentar-se de encontros. Constrói segredos e se acalenta em cada traço tecido. Ele não tem garantias. Atrás do pensamento, ele sente que só pode desejar. A verdade é que ele sempre esteve só em silêncio. Mas acredita que um dia será a sua vez de escorregar pela pele e respirar o ar livre trazido pelo balanço das árvores.
De todas as formas de vida
eu queria ser cada uma delas
pintar suas feições
escolher suas cores
e sentir cada toque em meu rosto.
Há em tudo o que fazemos
no nosso comportamento
nas nossas atitudes
um motivo, uma razão
mesmo que inconsciente
do que somos
do que queremos
do que evitamos
e do que encaramos.
Há em nós
toda uma particularidade
que pode ser vista em milhares de outros
ser parecida
mas é única em nós mesmos.
E quando se olha para si
é que se enxerga
e se encara
nosso verdadeiro ser no mundo.
E só então
é que decidimos
o que vai continuar
o que vai ficar
o que vai mudar
o que vai morrer
o que vai viver.
Mas enquanto esse impacto não acontece
a gente vai passando
a pele enrugando
e a vida se perdendo.
Que não seja tarde!
Que não morra o pensamento
nem o desejo
tão singular, tão perfeito
e tão esquecido, às vezes.
Estou sentindo uma dúvida tão grande
que me anula a intuição
e angustia o mundo aqui dentro.
Eu sentia como certeza
agora já não sei
não me alcanço.
Tudo em mim quer conseguir
mas a realidade não é clara.
Preciso da clareza
do que em mim era certo.
Pode-se sonhar sem viver? Sem acreditar que amanhã eu posso dobrar a esquina sem nada esperar e um momento suspirar no meu pescoço e me agarrar pela alma? Pode-se ser tão solitário sem nada ou ninguém esperar, acordar no meio da noite e ser só você e o seu quarto escuro? Pode-se caminhar automaticamente e só olhar o nada que está sobre o chão? Pode-se ser tudo isso, sem nada querer, sem nada desejar? Eu não posso, eu não, eu não quero me afundar em amargura.
Minha alma continua a rugir por experiências.
Uma vontade louca de experimentar todos os gostos do mundo.
Morder, cheirar e sujar a pele.