Moacir LuÌs Araldi
Pássaros da vida
Olhou encantado para o alto do parreiral.
Se não estivesse diante de uma Isabel gaúcha, jurava se tratar de uma Nebbiolo Piemontês. O clima favorável possibilitou um desenvolvimento espetacular tornando-as viçosas e lindas naquele ano. A associação com a uva italiana que tanto apreciava foi inevitável.
Fez-se adulto no tempo em que o vinho era feito de forma artesanal. Amassava-se a uva com os pés. Eram dias especiais aqueles que se ocupavam nos afazeres vinícolas.
Orgulhava-se do progresso, mas mantinha certa nostalgia em seus abundantes e fantasiosos pensamentos.
Repentinamente lembrou-se Dela.
Há tempos não à via. Contudo mantinha na memória o sorriso tão lindo, tão mágico e tão doce como o vinho suave. Nunca a esqueceu, nem esqueceria.
Por alguns segundos imaginou uma cena inusitada com o gosto de um beijo com uva Merlot que ela, atrevidamente, manteria apertada nos lábios carnudos e adoráveis num gesto de gostosa provocação. Adoraria viver isso.
Jamais houve um adeus definitivo. Apenas deixaram que os pássaros da vida consumisse-os como devoram os grãos maduros dos parreirais.
Despertou do pensamento alucinante e tratou de experimentar um cálice de vinho ali produzido.
Impossível saber quanto bebeu daquele tinto maturado. Deduz-se que foi bastante, pois no dia seguinte ele afirmava com certa convicção: Ela veio me ver esta noite. Estava encantadoramente linda como sempre.
Pode ter sido só um delírio, um sonho, uma ilusão. Mas o que importa saber a verdade se ela não faz feliz.
O que importa? Pensou.
Nada conta depois que o sonho acaba.
Lenta, mas decididamente, com o copo na mão caminhou para a pipa de Chardonnay.
Outro sabor, outra variedade, outra uva, outro vinho, mas os desejos mantidos de acordar feliz após passar mais uma noite, supostamente com a amada.
Queria uma noite longa para o tempo de felicidade, quem sabe, ser... Eterno.
Quem sabe...
Se a sorte ajudar.
Pólen
Saudade é como ginete caindo do cavalo.
É fruto que se fere ao cair do pé.
É gangorra em seu trepido embalo.
É nome saudoso de mulher.
É a roupa sem passar,
O perfume que se deixa de lado.
É marcar gol e não comemorar.
É entrar mudo e sair calado.
É o ativo que se despreza.
É abelha sem pólen pra pousar.
É ajoelhar quando se reza.
É perder a vontade de lutar.
Trechos da vida
Dorme a tarde enferma e calada.
Impiedosa a chuva debocha.
Bate no vidro sem nenhuma graça.
Solitária a alameda deixou ser tomada pelas águas.
Sem o fascínio do sol estampado
Meu semblante enrijece desmedido.
O caminho encharcado me inibe,
Tropeço no lodo criado.
Cair nunca é esperado,
Em pé supera-se a quem está sentado.
Mas as resvaladas que não se acredita
Estatelam no chão uma intenção bonita.
A roupa enlameada até entristece,
Mas não compromete o aclive do ser.
Cada escorregada faz deslizar
A vontade de tudo superar.
Melodias cantadas animam a subida,
Nesta avenida íngreme e sangrenta.
É preciso ser forte para fazer o percurso
Dos trechos enlameados da vida.
Defumando Versos
Tirou do violão, talvez a derradeira nota.
A voz não respondeu.
Mudo, apoiou o rosto no próprio instrumento.
O fogo ainda o aquecia.
A parede da alma já amarelada.
A fumaça aumentava
Preenchendo cada vazio da poesia da sua vida,
Defumando os versos, provocando tosse na rima.
O pensamento mal cavalgava lembranças
De um alfabeto extinto.
De súbito soprou a vela
Percebendo a complexidade escura do labirinto.
Apenas vestígios de carvão.
Nas cinzas, o destruído eterno.
Nada mais das chamas galopantes
Vistas pouco tempo antes.
De costas deitou-se no chão.
Cobriu o rosto com o próprio chapéu.
De qualquer forma não viria o céu.
Nos olhos apenas nuvens formando véus.
DOIS VERSOS
Faço de sonhos os meus versos,
Opostos de mim que habitam o mesmo universo.
Se o primeiro é cinismo que beira a loucura
O segundo é feito de letras de candura.
Se um desfaz e deprecia
Segue-se o que exalta e alivia.
Antecipa-se aos olhos o que emociona,
Abrindo caminho para o que chora.
Grita alto o que interroga rebelado
Responde calmo o tolerante que me deixa silenciado.
Agiganta-se meu verso que é pedra na vidraça,
Se segura o outro que é de vidro e se estilhaça.
Cresce a ira do que me vaia e me critica
Entende-me o verso que me aplaude e me paparica.
Abre-se em cada linha o lírico de ternura explícita.
O mais grosseiro avança para fechar a lista.
Agressivo é o verso tenso que me desestrutura,
Mas o verso suave cava a sua sepultura.
O meu primeiro verso fala de amor.
O segundo... Ratifica o anterior.
(Primeira poesia publicada no meu blog: www.doisversos.com). Visite-me.
Sonhas em ser feliz?
Tente ser humildemente você.
Disfarce
Cuide-se, alimente sim suas vaidades.
Tendo vontade disfarce até a idade.
Sinta-se bem. Julgue-se bonito.
Respeite sempre seus princípios
Mas arrisque um pouco mais.
Lembre-se que o mundo do faz de conta é finito.
E a perfeição artificial
Acaba fazendo mal.
Reencontro
Algumas quadras à frente,
Numa esquina qualquer,
Ou no trevo de acesso
De um café casual
A gente, por certo,
Voltará ao luar.
A quem meu Deus?
Acordo em soluços de medo profundo.
Sem mais ter a inocência de criança,
Quanto mais se vive mais dói este mundo,
A quem meu Deus se deve preferir amor à vingança?
Todos os dias tenho que provar que sou justo.
Por que se até estrelas se desprendem da constelação?
Por que se constroem a falsos heróis até bustos,
A quem meu Deus se deve conceder perdão?
Abro-me em confissão deliberada,
Exponho cada pedaço da minha consciência.
Pessoas maltratam para se sentirem amadas,
A quem meu Deus se deve conceder clemência?
Silenciosamente
No rosto marcas de lábios.
Registros de um plano abortado.
Desejos extra fortes
Apetites vorazes
E gosto de ontem.
Cheiros vulgares
Lençóis
Em cetim.
Um voo rasante
Desejos de amantes
O barco distante
Silenciosamente
No prado...
Encalhado.
Plástico bolha.
Fora de mim há uma partitura do que sou e sinto.
Nela outro mundo que a música da vida incendeia.
Luzes ofuscadas e generosas doses de absinto
Em delírios escuto tua voz com a concha na orelha.
No guardanapo faço poesia pra não me aborrecer,
Rabisco. Amasso e raivoso rasgo a folha.
Baixo a cabeça dorida sem entender,
Pensativo, destruo imaginárias células de plástico bolha.
Ondas madrugadas de verão me remetem ao paraíso.
A memória alcoolizada e seletiva não apaga.
Ainda vejo amor, areia, sal e sorrisos.
Sol e corpos bronzeados na superfície da água.
Protagonize
Pegue o vento com as mãos.
Comprima, encha e solte o balão.
Dê mais altura à pandorga.
Finja que hoje é tua folga.
Cante qualquer besteira.
Apanhe a flor na roseira.
Vibre com as conquistas.
Aceite outros pontos de vista.
Prove a comida,
Elogie a cozinheira.
Passe pelo muro de cabeça erguida.
Não tenha ganâncias descabidas
No espírito é que está a nobreza.
Preserve-se e a natureza.
Deixe recados.
Diga que ama.
Sinta-se amado.
Pule sobre a cama.
Não esconda que sente saudades.
Não tenha vergonha da felicidade.
Nem tudo é tão sério,
Preserve só alguns mistérios.
Protagonize a própria vida
Por você que ela quer ser gerida.
Rei de copas
Trago o cheiro forte de incenso.
Espalhado em meus perfumados pensamentos.
Ao longe, o barulho incessante de vento.
A lareira ofegante ainda aquece aqui dentro.
Na claridade deficiente avisto um vulto.
A garrafa de vinho deitando-me insultos.
Meu interno titubeia em total tumulto.
Foge o menino, grita de longe o adulto.
Eu que não venci meu irmão pra fundar uma cidade.
Não fui grandioso pra estampar o rei de copas.
Não bradei descobertas geniais na minha mocidade.
Nem naveguei, ainda que trôpego, pelos mares da Europa.
A água no vaso não impede que as rosas murchem.
Nas estufas da vida novas flores surgem.
Não vou deixar a vida no cofre trancafiada.
Sigo, mesmo que lôbrega possa ser a jornada.
Ábaco
Faço dos meus dedos um ábaco,
Somo os dias, divido pelas horas.
Sei detalhadamente há quanto tempo
Deixei-me ir embora.
Vinho pra mim é verbo.
“Vinhar”.
Que na primeira e segunda pessoa se conjuga como
Amar.
(© Moacir Luís Araldi – Cabernet)
Embaçado
O dia estava me esperando. Lindo.
Primaveris adornos a enfeitá-lo.
O talentoso sol desenhava sombras dos meus pedaços.
No outside marítimo pranchas a deslizar com surfistas equilibrados.
E eu que acabei de chegar de um sonho “desperfumado” questionei
Por que havia me acordado?
Meus olhos buscaram também o céu.
Límpido, mas estranhamente o vi embaçado.
Jogo.
Aposto tudo.
Espero que as cartas não me traiam.
Quero a sequência real.
Viver é jogo.
Só vai vencer quem arriscar.
É preciso querer ganhar.
Não espere que eu escreva poesias complexas. Não é meu estilo. Minha marca é a simplicidade. Escrevo para ser entendido por todos e até porque meus conhecimentos são limitados. Quando alguém não entende o poema penso que acaba sepultando a poesia e até o poeta. E eu quero viver e se possível abraçado à poesia até o último segundo do derradeiro dia.
Tem coisas nesta vida
Que é difícil de aceitar
Que triste ter um grande amor
Mas não poder amar.
(Moacir Luís Araldi)