Mia Couto
NÃO SABEMOS LER O MUNDO
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
___Sementes___
Olhos,
vale tê-los,
se,de quando em quando,
somos cegos
e o que vemos
não é o que olhamos
mas o que o olhar semeia
no mais denso escuro.
Vida
vale vivê-la
se,de quando em quando,
morremos
e o que vivemos
não é o que a Vida nos dá
nem o que dela colhemos
mas o que semeamos
em pleno deserto.
____
– Tens medo de fazer amor comigo?
– Tenho – respondeu ele.
– Por eu ser preta?
– Tu não és preta.
– Aqui, sou.
– Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
– Tens medo que eu esteja doente...
– Sei prevenir-me.
– É porquê, então?
– Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Sempre que chorares, nascerás uma outra vez.
E tudo era novo, tão novo que nenhuma saudade morava em mim.
Cada ser se revela apenas pela luz que dele emana.
A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
Na barriga da mãe, não se tece apenas um outro corpo. Fabrica-se a alma.
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. A infância é uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado, mas de um cotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é trabalhar muito. O que mais cansa é viver pouco. O que realmente cansa é viver sem sonhos.
"a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste." -
""Eu sinto-me velho às vezes... assim quando estou distraído.
Em geral, é uma coisa quase irresponsável. Eu olho para mim como se tivesse 17, 19 anos, como se houvesse uma vida inteira à minha frente.
(...) Eu tenho medo é que a velhice pense em mim.”
(Mia Couto em entrevista a José Pedro Goulart)
“ Perdi a vontade de limpar
a casa .
Se tivesse que arrumar
não seria a casa.
— Arrumaria , sim, as coisas que não existem,
os sussurros e suspiros
que se acumulam
pelos cantos.
Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitámos tão pouco.