Mia Couto

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"A palavra de hoje é aquela que cada vez mais se despiu da dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo diferente”.

( em "E se Obama fosse africano?". Lisboa: Editorial Caminho, 2009)

Inserida por portalraizes

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
(trecho extraído do livro “O fio das missangas”, Cia. das Letras, 2004, pág. 131.)

Inserida por portalraizes

"Lembrou as palavras da sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo".
(Em "O Perfume" - Do livro "Estórias Abensonhadas)

Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros.

Mia Couto
No livro: Antes de Nascer o Mundo

"A morte se tornara tão frequente que só a vida fazia espanto."

História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, tem todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens.

Tenho duas pernas: uma de santo, outra de diabo. Como posso seguir um só caminho?

Os vindouros, esses que aguardam por corpo, são quem mais deveríamos temer. Porque deles sabemos o quase nada. Dos mortos ainda vamos recebendo recados, afeiçoamo-nos a suas familiares sombras.

Inserida por Filigranas

Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo.

Esperto é o mar que, em vez da briga, prefere abraçar o rochedo.

A Demora
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

,

O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos."
Mia Couto

Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer. – Levanta, ó dono das preguiças.

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai me matar

O voar não vem da asa. O beija-flor tão abreviadinho de asa, não é o que voa mais perfeito?

*São Demasiado Pobres os Nossos Ricos*

A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.

A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos «ricos». Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.

O maior sonho dos nossos novos-rícos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. OMercedese oBMWnão podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas, muito convexos e estradas muito concavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.

As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. Por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam. O fausto das residências não os torna imunes. Pobres dos nossos riquinhos!

São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam de ser sustentadas com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.


Mia Couto, in 'Pensatempos'

Inserida por walter_soares

E o tempo comeu o chão.

Sem terra, sem rio, sem céu, não me restou
senão o vislumbrar
de um sonho.

E o sonho
foi ave e peixe,
foi tempo e foi céu.
Depois, aos poucos, o sonho me devorou a vida.

E, assim,
em mim,
nasceram todas as vidas.

Inserida por ecopriscilares

Hoje acordei sem mim.
Saí à rua,
para me deixar possuir
pela simples leveza de existir.

Dentro de mim
o universo se dissolveu
e um respirar de céu
em meu peito se inundou.

Seria a Vida,
seria o Tempo sem nostalgia, ou seria, apenas, a poesia?

Sei que havia um fluir de rio lavando antiquíssimas dores.

E do cristal de tristeza
que antes me negava o ar, desse nó de vazio,
voltou a nascer o mar.

⁠Em tempos de terror, escolhemos monstros para nos proteger.

⁠A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.

O mar é o habilidoso desenhador de ausências.

Mia Couto
Venenos de Deus, remédios do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Inserida por pensador

Era como se o mar, com seus infinitos, lhe desse um alívio de sair daquele mundo.

Mia Couto
Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Inserida por pensador

O amor é como o mar: sendo infinito espera ainda em outra água se completar.

Mia Couto
Contos do nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Inserida por pensador

O vento foi um pássaro e fugiu para fora de si mesmo quando os homens o quiseram capturar. Deixou de ter corpo, fez ninho nas nuvens e viaja com elas para pousar quando se cansa. É por isso que o vento canta.

Mia Couto
O bebedor de horizontes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Inserida por mstrege