Marina Colasanti
Entre cada gesto consignado às redes sociais ou flagrado pelas câmaras onipresentes, restam ainda largos espaços livres, e frinchas, frestas, portais por onde se pode escapar. A discrição é possível, o silêncio não perdeu sua função e nos acolhe.
Não existem vidas insignificantes. Cada vida é um universo estrelar em que outras vidas orbitam com seus temores e seus amores. E para cada vida, todo dia, do passado ou do futuro, vale muitos anos luz.
Mas a leitura da vida não se faz só com os próprios olhos, entram na receita a sensibilidade e os conhecimentos que se têm.
O que mais me doeu (...), além da dor da ausência das pessoas queridas, é perder os interlocutores das minhas lembranças mais remotas. (...) Recordações partilhadas são uma necessidade. (...) Nosso passado não passa, é um pretérito que mantemos vivo a poder de lembranças.
Os gestos, os gestos todos que a automação está dispensando, têm mais funções além daquela imediata. Fazer uma cama não é só esticar lençóis e cobertas. (...) E não se trata apenas de exercício muscular. O cérebro também é convocado para lembrar a sequência certa dos gestos, a sua finalidade. (...) Os gestos são lembranças de gestos anteriores, nossos e alheios, são parte do repertório gestual que amealhamos ao longo da vida.
Olho a casa inteligente estampada na página do jornal, destacados em vermelho os pontos da automação. E não a quero. Abrir as cortinas do meu quarto ao levantar é um gesto que inaugura a manhã. O mesmo que a minha mãe fazia quando eu era criança. Afasto as cortinas para receber a luz, olho as montanhas, estudo o céu e suas nuvens, rego meus gerânios na beira da janela. E o dia começa.
A vida não é linear, e o outro não te oferece sempre o mesmo rosto, o outro te oferece um rasto hoje, e um novo rosto amanhã, e por aí vai. Nesse caso, se você quer manter o seu casamento, há os acertos que precisam sempre ser feitos... Então, você puxa um pouco para cá, puxa um pouco para lá, eu te ofereço isso, você me oferece aquilo, segue para aquele lado, segue para aquele outro. Dito assim parece uma negociação fria, mas não é
No diálogo de amor, o amor cresce junto com o medo, e no amor busca-se o amparo. A meta proposta é tão mais fascinante do que tudo, que tange e empurra e leva adiante. Propõe-se o encontro. O encontro de cada um consigo mesmo. E o encontro total entre duas pessoas, que só o conhecimento individual permite. A proposta desse encontro é tão grande, tão luminosa, que assusta. Mas, ainda que trêmula, ainda que assustada, é preciso colocar a mão sobre o primeiro botão e soltá-lo — é preciso procurar as palavras para começar o diálogo. Porque é falando da vida que espantamos a morte.
Desconfie, portanto, dos liberados sem felicidade. Dos liberados agitados, tensos, nervosos, sempre em busca de novas afirmações libertatórias. A liberação verdadeira é equilíbrio, é serenidade, e transmite sua paz facilmente.
Abro a porta do armário como abro um diário, a minha vida ali dependurada.
De quem é esta pele
que cobre a minha mão
como uma luva?
Que vento é este
que sopra sem soprar
encrespando a sensível superfície?
Por fora a alheia casca
dentro a polpa
e a distância entre as duas
que me atropela.
Pensei entrar na velhice
por inteiro
como um barco
ou um cavalo.
Mas me surpreendo
jovem velha e madura
ao mesmo tempo.
E ainda aprendo a viver
enquanto avanço
na rota em cujo fim
a vida
colide com a morte.
Não existe metro nem fita métrica, como usam as costureiras, para medir a felicidade. A felicidade é diferente para qualquer um.
Não sei como se mede o amor. O amor é inconsútil, não tem medida. Cada um vive o amor do seu jeito.
Assim a vida vai, entre os revolucionários que gostam de mudanças, e os conservadores que não gostam delas.