Manuel António Pina
A visão de o que está de fora,
de aquele que regressa sem ter partido
dançando sobre os destroços da sua imagem,
é o que me vê a mim ; falo ainda de mim
Uma coisa que existe: memória. Porque está tudo a ser dito sucessivamente (tempo, mesmo partindo da hipótese de que não pode ser tudo sido ao mesmo tempo, isto é, que tempo é as palavras que me faltam). Memória, ou tempo, ou palavras, ou a falta de as palavras ou de qualquer coisa, alguma coisa existe : a falta de alguma coisa. Parei um pouco para pensar e esqueci-me de tudo...
terei palavras para falar-Te?
E compreenderás Tu este,
não sei qual de nós, que procura
a Tua face entre as sombras
O jardim onde tantas vezes
florira o meu desespero
não era real,
era uma coisa passada;
real era o meu medo, tão real
que mesmo abrindo os olhos não passava.
A solidão é uma sôfrega evidência, alimenta-se de pequenos materiais, de circunstâncias e de passagens, devorando a vida por onde ela é mais óbvia : por dentro.
No teu coração
impérios irresolúveis se guerreiam;
e como foge o campo de batalha
sangrando, sob os golpes das espadas
e o tropel dos exércitos,
ferida a luz primaveril
e destruídas as sementeiras
assim o teu coração foge
para fora e para longe
e para dentro e para longe
Um espelho, um olhar
onde me ver;
um silêncio onde escutar
as minhas palavras; algo como uma vida para viver
Temei, palavras de amor,
há por aqui muitos inimigos novos,
sobretudo lembranças,
e desconfia-se de recém chegados,
sobretudo vindos de tão longe
e de sítios tão incertos.
Sabes que já não durmo por dentro? Fecho os olhos e afundo-me num poço sem palavras nem espaço, continuando, sem o saberes, acordado, temendo perder-te. E tantas vezes te perdi, tantas vezes regressei e não te encontrei, tantas vezes inquietante te chamei e não respondeste!
Como quem, vindo de países distantes fora de
si,chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.
Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca
Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no amor como em casa.
Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.
Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.