Klaas Kleber
Agô meu pai
O soluçar do tambor
faz o gemido de um cântaro vazio
lúgubre, lamurioso e triste
Sua epiderme magoada
segrega a seiva bílis encarnada
dos golpes do açoite
Palpita forte e sensível
invocando o velhusco negro
adormecido no seu oco
Agô meu pai!
Domingo de inverno
A chama do candeeiro guarda silêncio
enquanto os ponteiros do relógio
musicam as horas tardias
As noites dominicais
são sempre monótonas
O cortinado encandeia o clarão da lua
e matiza de cores sombrias
as velhas paredes do quarto
As noites invernosas
são sempre enfadonhas
Apanho um bloco de rascunhos
preenchido de frases mortas
e rabiscos sem sentido
A poesia nem sempre
surge na forma de versos
Confortado num velho cobertor de lã
versejo em pensamentos
sentimentos de tristeza
Os domingos de inverno
sempre inspiram melancolia
Porto cinzento
A tonalidade cinza
e melancólica
dos seus monumentos
ornados de lavores
tem a intensidade
de um fado dolente
a obscuridade do luto
e da mortificação
Libertino
Minha elegância de maneiras
oculta desejos impuros
por prazeres carnais
obscenos
Tenho um jeito lascivo de amar
um jeito devasso de possuir
sem pudor e decência
libertino
NADA MAIS
A noite dissipou-me o dia
dispersou-me os amigos
nada mais me apetece
senão, o acalentar do silêncio
A noite dissipou-me o dia
fragmentou-me os pensamentos
nada mais me ambiciona
senão, o cenário do vazio
Já não quero pensar
já não quero falar
nada mais me aspira
senão, velejar nos meus sonhos
Retirar-se na solidão
Retirar-se na solidão
é estar consigo mesmo
é colonizar seu pensamento
é desencarcerar seu sentimento
é desoprimir sua emoção
Retirar-se na solidão
é conectar-se com o fora
é ouvir o seu entorno
é estender o seu universo
é transcender a sua imaginação
Retirar-se na solidão
não é renunciar a si próprio
não é retirar-se do mundo
não é morrer para a vida
não é perder a razão
A solidão
também tem seus encantos!
CARÊNCIA
A carência
é uma correnteza de desafetos
que serpenteia por entre a vida
arrastando os homens
para abismos recônditos
e obscuros
Pudera eu,
ser uma ilha abraçada pelo mar
e pudesse estreitar
nos meus braços
o calor do ocaso poente
A premência de afeto
é algo que fragiliza
a natureza do nosso ser!
FLOR MORENA
Vá flor morena, vá!
Embala-te nos abraços
da mulher que te gerou
E nana!
Nana flor morena, nana!
São Cosme e São Damião
hão de vigiar o teu sono
E sonha!
Sonha flor morena, sonha!
Pois a candura dos seus sonhos
tem a beleza de um Querubim
O JARDIM DOS BADEN
Acalentado pelo outono
o jardim do Palácio de Karlsruhe
exala o seu último suspiro
antes de invernar
O outono resguarda-o
tece-lhe um manto de folhas
em tons vívidos e harmoniosos
como as sinfonias de Beethoven
Sublime por realeza
o jardim do marquês de Baden
será abrigado das nevadas
até o alvorecer da primavera
ESBOÇO INACABADO
Se me perguntarem
o que é ser um homem
de meia idade
eu direi: não sei
De fato não sei
Mas sei que na minha idade
o homem se torna o que é
Um esboço inacabado
de uma obra dele todo
Marinheiro
Homem ao mar!
É marinheiro mas não sabe nadar
Imergiu-se, desvaneceu-se,
fundiu-se à própria imagem
refletida no espelho d’agua
Amálgama de cânticos
As sereias fizeram-no adormecer
Acalentam-no na seiva luz
dos seios nutridos do ocaso
Vidas transitórias
Chegará o dia em que meus olhos
ofuscados pelo nevoeiro da morte
já não perceberão pela vista
o lacrimar dos ausentes
aguardando o exalar
do meu último suspiro
Chegará o dia em que meu rosto
regelado pelo sopro da morte
já não perceberá pela tez
as mãos cálidas dos ausentes
aguardando a despedida
da minha última existência
Chegará o dia em que minha memória
viverá nas lembranças fugazes
na efemeridade dos sonhos
dos ausentes mortais
aguardando o seu tempo
que também há de cessar
E quando esse momento chegar
eu terei desvanecido
para a eternidade
Adormecer
Cerro os olhos
e entro em estado de inércia
O cansaço roubou-me o tempo dos vivos
e a consciência do tempo de agora
Quero distanciar-me do meu eu desperto
e adormecer sobre papoulas
Quero distanciar-me da existência
e assombrar os meus sonhos oníricos
Quero distanciar-me das minhas memórias
e mergulhar no abismo do esquecimento
Quero distanciar-me do grito do mundo
e penetrar no vácuo do silêncio
O tempo
Digno de figurar um poema
o relógio recita amiúde
o instante sem pressa
do célere tempo
Tic-tac, tic-tac, tic-tac
repetidamente
laborioso
Pudesse eu,
inverter o sentido destro dos ponteiros
que ascendem para a finitude
da fugaz existência
Pudesse eu,
resvalar pela espiral do tempo
para o abraço carinhoso
da mulher que mais me amou
Pudesse eu,
fazer parar o tempo
o tic-tac do relógio
e a dor da saudade
Lembranças
Sou sensível às minhas lembranças
do mesmo modo como sou sensível
às belezas e misérias da vida
Lembranças!
Jubilosas e dolentes lembranças
Lembranças de momentos
cuja brevidade assemelha-se à
efemeridade dos amores adolescentes
Lembranças de lugares
de rostos, de olhares
de sorrisos e de afagos
Lembranças de ausências
de perdas, de perigos
de fome e de dor
Lembranças!
São tudo o que vai nos restar
Entreditos
Pensamentos não-ditos
vivências não-ditas
sonhos não-ditos
Não-dita a admiração
não-dita a saudade
não-dito o amor
Tantos “não-ditos”
sufocados
omitidos
Outrora
guardados
nunca esquecidos
O jogo da vida
A vida é um jogo irresoluto
cujos objetivos e desafios
impõem tensão, medo
e incertezas
Neste prélio sem regras
vencedor é sempre aquele
que aposta nas leis
do acaso
No espetáculo do existir
a serenidade é a peça-chave
que fortalece quem
a alberga
O cativo
O homem de pés agrilhoados
galga as paredes mucosas da cripta
Efêmero casulo de morte
catacumba dos infortunados
Traz na tez da sua face
a palidez dos aflitos
No seu rosto desfigurado
as cicatrizes das lutas travadas
Lirismo
A lua reluz ardente
por um jovem pescador
que nas noites de lua cheia
é poeta trovador
A lua se desnuda da noite
para esposar o pescador
e corpo-a-corpo, enlaçados
trocam juras de amor
Medo do medo
Eu tenho medo
medo do apego e da desafeição
medo do outro e da solidão
medo do sim e do não
Eu tenho medo
medo de ficar e de pôr-me a caminho
medo da certeza e do mau êxito
medo da bravura e da dor
Eu tenho medo
medo de que a vida seja um abismo
escarpado e profundo
encoberto de desilusões
Eu tenho medo
medo de que as belezas da terra
como a essência dos sonhos
não passem de mera utopia
Eu tenho medo
medo de que o medo
por ser tão capcioso
tiranize a minha existência
Eu tenho medo
medo do medo do medo
Momento fugaz
Espelho d´alma
de ardil transparência
invólucro sensível
do finito tempo
penetra, magoa
o âmago do meu tormento
tudo parece fugaz
o tempo
o aqui
o agora
Rir é algo que me apraz
Rio-me de figuras excêntricas
de comportamentos inusitados
de imitações grotescas
de chacota sobre acontecimentos correntes de histórias engraçadas
de piadas e de caretas
Rio-me de mim mesmo
da minha seriedade
da minha confiança em minhas certezas da minha fraqueza
da minha mediocridade imaginativa
dos meus erros
Rio-me quando me divirto
quando danço, canto e brinco
numa festa, num velório, num motel em qualquer lugar
Algumas vezes rio-me de tristeza, de medo
de raiva e de desespero
outras vezes rio-me da miséria
do sofrimento e da morte
Porque rir é algo que me apraz
Alvorecer
Conceição...
que esta se transforme em bem maior!
Exclamou o homem
A senhora do sol talhou uma fenda
Nas sombras habitam almas em expiação
na luz os homens de fé e razão
Conceição…
pela sacratíssima paixão!
Exclamou o homem
A senhora do sol entalhou um anjo
Nas trevas habitam demônios
na luz os arcanjos e serafins
Ouve-se revoadas de pássaros
os pardais entoam cânticos
para o primeiro alvor do dia
Conceição sorri, o homem sorri junto
Fênix negra
Os olhos vítreos e bacentos
tomaram a forma de um escudo
pupilas contraídas de morte
o homem vai ser possuído
Tem o rosto empalidecido, cadavérico
seus pulmões empedrados
assassinaram sua alma humanizada
o homem vai ser possuído
A criatura renasce
ressurge das próprias entranhas
traz a força de mil demônios
Isolamento
Entressonhos, desvarios virginais
também existe beleza em tudo
que é indecoroso e causa espanto
Nas incertezas, nos temores e medos
em tudo aquilo que apavora
e que só pela imaginação se pode alcançar
Escancaro as portas do meu cativeiro
as janelas do meu cárcere domiciliar
para que a luz do mundo possa entrar
e tingir de candura a minh’alma