Julio Cortázar

26 - 30 do total de 30 pensamentos de Julio Cortázar

Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância.

Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem se molestarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete, e pelas onze eu deixava a Irene as últimas peças por repassar e ia à cozinha. Almoçávamos ao meio-dia; sempre pontuais; então não ficava nada por fazer além de uns poucos pratos sujos. Era para nós agradável almoçar pensando na casa ampla e silenciosa; e em como nos bastávamos para mantê-la limpa.

Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que aquela quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível.

⁠"Ninguém é mais sério do que um menino quando está brincando"

Instruções para dar corda ao relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora abre-se outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai-se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa ao seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

Já acreditara alguma vez no amor como enriquecimento, como exaltação das potências intercessoras. Certo dia, deu-se conta de que seus amores eram impuros porque pressupunham essa esperança, enquanto o verdadeiro amante amava sem esperar o que quer que fosse fora do amor, aceitando cegamente que o dia se tornasse mais azul e a noite mais doce e o bonde menos incômodo.