Júlia Figueiredo
Hoje estou sóbria… (leia-se sem poesia). Seca como a roseira do vizinho. Vendo azul como azul. Por dentro sou cinzas. Irrecuperável.
Todas as coisas as quais retirei de mim mesma eram muletas. E aprender a andar sem elas foi uma dor de se quebrar vidro com a garganta e…
en gol i r. . .
Nunca tive um triturador no meu sistema digestivo.
Você tem?
Sempre foi no seco mesmo.
Eu, que quero controlar tudo, custei a tirar meus dedos do leme.
Justo eu que escrevi … "e se for para controlar algo, que seja o leme e não a maré"...
Nem maré, nem leme… Às vezes o socorro só vem com a entrega absoluta de todo apego, de todas as muletas, de todo suprimento (de carência, de afagos, de afetos, de atenção, dos prazeres imediatos …).
Às vezes para sair vivo de algumas tempestades é preciso sair primeiro da cabine de controle e segurar forte nos ferros da embarcação.
Eu estou passando minhas tempestades apenas com um guarda chuva fechado na mão.
E o que é um guarda chuva fechado senão a esperança que não floresceu?
A escrita é como uma convulsão para mim. Subitamente meus pensamentos começam a se contrair. Dói e assusta, às vezes. Com urgência, paro tudo para manter a segurança nessa descarga elétrica e, involuntariamente, começo a escrever.
Não se para um curto-circuito (hoje eu entendo)
É preciso deixar fluir a corrente de pensamentos.
E, muitas vezes, é na CONVULSÃO DE IDEIAS QUE EU ENCONTRO A CURA.
Existe o presente em que se vive, e existe o presente em que se lembra.
E é necessário ter tempo para viver os dois.
Imagine um dia onde os céus se abrem para qualquer petição.
E que seus ouvidos estão atentos a toda resposta.
Imagine um dia em que novas chances nascem com o sol.
E as dores se põem com ele.
E que o perdão pode ser dado e recebido sem empurrar com tanta força.
Imagine um dia em que a dor não te paralisa.
E em que o universo se inclina para te ouvir com atenção.
Onde se respira e o ar vem sem formar um nó no caminho.
Onde o vendaval que sempre bagunça a casa não leva embora a paz.
Imagine um dia em que a vulnerabilidade seja sua maior força.
E ser o que se quer ser é a chave para romper todas as barreiras.
Imagine um dia em que tudo é possível.
Esse dia pode ser hoje.
Você só precisa dizer: que assim seja!
Cada dia nasce consigo uma infinita particularidade de sim's.
Não seja um objetor hoje!
Com o tempo, algumas coisas ficam tão fragilizadas que, se formos retirar sua poeira, elas quebram.
Algumas coisas são folhas secas.
O sentimento nem sempre era tangível em papel e tinta, né, Clarice? Eu sinto muito.
Admito que continuo me perguntando se você era tão exigente. Se empilhava papéis amassados ao redor da sua máquina de escrever.
Se rasgava seus livros com ódio. Se questionava: isso é bom?
Você viveu poesias, dramas e contos que jamais leremos. E, mesmo parindo tantas páginas, nem 100 séculos te decifrarão.
Mas é justo, caso o dom da vida seja existir, em partes, intocável e sagrada.
Pelo menos você retribuiu essa justiça, tornando acessíveis alguns gritos íntimos dessa dor missionária.
seja na introspecção angustiante de Lóri (tantas de nós) ou nas suas tramas nitidamente pessoais.
Que vê lição nas galinhas, nas rachaduras... Que vê Deus ao pisar num rato morto na orla do Rio de Janeiro.
E, a propósito, custei a recuperar o rumo após "Perdoando Deus".
Sempre admirei sua coragem de lançar palavras céu afora e f#das!
"Quem quiser ler, leia por sua conta e risco". Um certo descaso com o perfeccionismo e com as opiniões.
Era seu modo de sobrevivência, né? Mas também... que opinião vai impedir um ovo prestes a chocar?
Pois eu assumi o risco... (devo dizer que tinhas razão!)
Mesmo acessando suas páginas (desesperada pela identificação), nasceu a minha maior dor: não ler seus escuros.
O que você foi quando suas mãos estiveram amputadas... quando, na missão da escrita, você aposentou as fardas?
Minha dor é não saber o que se passava na sua cabeça enquanto o bolo de palavras não descia (nem por reza) esôfago abaixo.
Era isso que eu queria perguntar, mas cheguei uns 50 anos atrasada.
Aquela dor de estar entalada... de nenhum arsenal de palavras ser suficiente para fazer escorregar o sentimento que se agarrou na garganta.
O que você fazia?
Quando não era a palavra, ERA O QUÊÊÊ?
Qual era o mecanismo, Clarice?
(silêncio!)
Perdi a palavra viva andando pelas ruas da Tijuca. Fiquei com os ecos, que são meu desespero de hoje e ciclicamente.
Mas é justo, né?
Você continua intocável. Não é sobre a escrita, é sobre aquilo que não se fez ler.
Não é sobre o pecado... consumado. Ele pode ser escrito.
A dor sempre residirá sobre a nossa sagrada, intocável, dolorosa e incompreensível solidão!