Júlia Figueiredo
Confesso, já dei nome para todas as suas curvas.
Um platonismo que me recuso evitar.
Desejo calado não mata ninguém.
Essa mércia nos parece tão sagrada, tão solidária conosco, com o mundo. Você encontrou o caminho do meu sofrimento, contando meus últimos minutos nos seus lábios inclementes que, quando paralisam, aceleram minha agonia.
Ela comprava poltronas caríssimas
Mas gostava de sentar nas janelas
Vestiu até um tapete confortável na sala
Mas passava suas noites balançando a rede do quintal
Instalava persianas pela casa
Mas contemplava o céu pela janela vaga da cozinha
Tinha seus eletrônicos
Mas o vinil é que cambaleava sem parar na vitrola
Cada joana que via era uma poesia em sua coletânea datilografada
E ninguém entendia nada
Era seu universo particular
Sujeito a senhas indecifráveis
- Não consigo respirar. Eles são muitos.
E naquela multidão de vozes do mesmo timbre, ela se sentou recolhendo os joelhos na testa. Bem baixinho começou a suplicar:
- Silêncio
- Silên...
Sem que a ordem de comando surtisse efeito, foi enfática (com leve tom de brava piedade, como se quisesse chamar a atenção sem agitá-los demais):
- SILL!!!
Com a conquista de meios olhares, continuou:
- Sssssi...
E com a ordem acatada, inspirou ar, expirou lágrimas rolando joelhos abaixo.
Era o seu deságue desesperançoso.
Ninguém podia a salvar de si mesma, nem suas vozes interior.
A minha escrita não é um ditado do pensamento.
Agora, por exemplo, não sei quais durezas se materializarão em palavras organizadas. O leme é o sentimento, mas das águas que navegaremos, só reconhecerei o território ao percorrer até o ponto final desta última linha.
O meu pensamento só ganha forma a partir da leitura.
Meu papel: atender ao chamado.
O do universo: se encarregar de me recompensar pelos risco que assumo em seu nome.
Seu encontro com o artista interno daquela vez foi tomar banho de chuva.
No começo, os pingos desajustados a incomodava. No chuva intensa, sentia-se bem. E, com o tempo, o frio a inquietava.
Era de se esperar: até a plenitude do sentir causa arrepios.
22 botões na roseira do vizinho, entre lindas e exuberantes. O relatório de flora dela a salvava de seu passado caótico e um futuro ansioso.
Enquanto contava, a beleza da vida se multiplicava em sua história e, com o tempo, havia mais desabrochares do que decepções.
Era sua maneira mágica de enfeitar a vida.
- Acabo de voltar do médico frustrada.
- Por que, Joana?
- Eu disse: Dr., partiram-me ao meio. E ele perguntou: O que encontraram?
- E o que cê respondeu?
- Carne, ossos e tpm.
- Mas e qual a frustração?
- Uai, eu queria que me remendasse, mas ele só receitou um colírio.
Conversa de loucos:
- Você é feliz?
- Dois dias atrás eu contei quantas pétalas da roseira do vizinho havia caído no meu quintal. Percebi que até a beleza do que não é meu tem um fim, adubar o meu jardim.
- (Risos). Vamos tomar um café no meu quintal?
Não brigues comigo.
Se eu escrever sobre dor, vou machucá-lo em sua identificação.
Mas se escrevo sobre esperança é para confrontá-lo à descoberta.
É nesse olhar que te entrego a minha empatia.
Relato de um renascimento:
No dia 11 de agosto de 2022 eu estava com amigos na Ponta de Corumbau, que significa “Lugar longe de tudo” em Tupi. Alguns ainda acrescentam: “e perto do paraíso”.
Corumbau estava no meu roteiro por causa do seu significado. Essa praia faz parte da Rota do descobrimento do Brasil, a qual eu havia planejado fazer de mochilão à pé. A rota também foi escolhida pelo nome. Eu estava me preparando: seria a rota do autodescobrimento.
Nesse dia estávamos especialmente cansados da noite anterior e resolvemos tirar um cochilo pós almoço. Eu dormi cerca de 20 min, o suficiente para ter um sonho impactante.
Sonhei com uma tela de celular preta com um ícone de agenda de tarefas escrito assim:
11 de agosto de 2022
Evento: Morte Júlia ✝️
Eu acordei impressionada, mas não quis dar tanta atenção, apesar de que na minha mente só havia um pensamento: de hoje não passo!
Mais tarde, havíamos planejado participar do ritual da lua cheia. Seria também a inauguração da Oca da Lua na aldeia indígena Porto do Boi (uma comunidade indígena Pataxó) e a última super lua do ano.
Durante a cerimônia, eu tive uma visão, o que chamo de uma imagem ou cena fixa na mente. E foi esta:
Eu estava dentro de um pequeno barco, sentada confortavelmente olhando para o horizonte, onde o sol se punha. Era uma penumbra de entardecer, acompanhada pela mata densa de mangues às margens do rio estreito, que desaguava no mar. O barquinho fluía sem qualquer intervenção minha. Em minha cabeça havia uma coroa de flores - delicada - como um ornamento artesanal. O detalhe que mais me impressionou na visão é que não havia remos no barquinho. Eu estava fluindo com o rio, rumo ao mar, como um delta, parte dele, com ele e através dele.
O interessante da visão é quando ela vem acompanhada da interpretação.
Logo que lembrei do meu sonho, compreendi e comecei a chorar compulsivamente.
Ainda era dia 11 de agosto e eu estava R E N A S C E N DO… leve, serena, e fita no presente. Sem precisar empurrar o barco. Sem tocar na direção. Deixando-me fluir na força do rio.
Então, lembrei imediatamente de Lispector em sua feliz advertência:
“A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas de arranjam, não é preciso empurrar com tanta força”
CARAÍVA
Qual é a expressão exata do sentir? Há exatidão no verbo? Qual palavra tem peito para assumir a responsabilidade de carregar a tradução?
Caraíva, como te expressarei? Como retribuirei senão devolver todo esse sentimento? Senão desaguar no outro… transferir o afeto? Meu amor, você me curou de mim mesma. Impossível fugir aí.
Caraíva é sobre encontro e autodescoberta, é sobre um rio que deságua no mar. Sobre um delta. Um canal no outro, maior, imenso, oceânico. É sobre conexão rio-mar-ser.
Caraíva é sobre navegar sem remo, deixar fluir, sem precisar empurrar com tanta força. É sobre colocar uma coroa de flor na cabeça, entrar no barco e confiar no curso do rio. Saber que ele o levará para o mar… É sobre conflito, cura, metarmofose, morte, e, principalmente, RENASCIMENTO!
É sobre não querer voltar apenas inteiro, mas transbordando (chorando, mas transbordando).
Eu nunca vou esquecer. Eu não posso esquecer. É uma questão de vida agora.
Caraíva não dá pra “desver”
E tá visto!
Dedique-se com afinco a coisas inúteis, porque são elas que oportunizam a felicidade.
Perceba: a felicidade é inútil em si mesma.
Ou você tem resposta para a pergunta:
"Ser feliz pra quê?"
É por isso que, quando algo é verdadeiramente inútil, sentimo-nos preenchidos.
Veja: balançar na rede vendo as estrelas para quê? Contemplar o pôr do sol para quê? Mergulhar no mar para quê? Dançar uma música para quê?
Para nada disso há resposta, pois é para nada mesmo. Seu valor está em si mesmo e não para um fim (objetivo).
Por isso, aconselho: INVISTA EM COISAS INÚTEIS, assim como as crianças.
Inspire-se na sabedoria dos pequenos que se concentram apenas em exercer a vida, viver sua plenitude e mergulhar na existência.
Atente-se a isto: abra mão do pragmatismo e romantize a vida, porque sua extraordinariedade merece ser venerada.
E JAMAIS transfira para a rotina o poder de acinzentá-la.
Assim como as digitais, o deleite é personalíssimo.
"A cada um serve aquilo que é dele"... suas delícias, suas percepções, seu desfrute... a dor e a alegria da própria existência.
Nos bastidores, a vida é solo.
Canso frequentemente ouvindo e lendo tantas coisas....
Mas quando olho para o céu, percebo: lá só tem o necessário.
(...), então, ela se identificava com um pequeno lago a nutrir apenas quem está às margens. E o que é a essência de um mar represado num pequeno lago? É a dor da contenção oceânica.
Quer saber como ela sente?
Entrelace bem forte os dedos das mãos. Agora faça muita força para descruzá-los, mas não deixe que isso aconteça - MAIS FORÇA!!!! - até que seu corpo estremeça por completo. A vontade de se libertar dessa amarra é a única coisa que importa agora.
Os ossos doem, os dentes enrijecem, você precisa de espaço, precisa fluir, se expandir. É assim, exatamente assim, que ela se sente muitas vezes.
Com a imensa necessidade e fúria de romper as barragens, de abrir caminhos, de marejar poros afora toda essa água represada.
A lâmpada dimerizada, amarela como a lua abundante, não foi o que cativou você. O meu erro não estava nas taças com o vinho escolhido a dedo. Nem no tapete de algodão losangular que eu despi sua blusa branca. O problema não estava no meu toque suave que percorreu montanhas e vales do seu corpo. Nem no gosto forte que suguei da sua "intensity"... Por horas pensei que o problema era a utopia perfeita que criamos no refúgio frágil das nossas escolhas. Escolhas tão claramente abaláveis… Não, não era a soma das nossas vidas, era particularidade dos nossos casos, dois mundos inteiros se trombando no espaço-tempo mal calculado. Eu avisei! Como eu avisei! Estávamos irremediáveis. Não existe antídoto para a nossa intensidade. Impossível não ser catastrófico. Não éramos corpos (eu avisei), somos almas que se vestem para contactar o mundo dos gélidos. Protocolos e regras não nos protegem. Nossas almas não ignoram o sabor do plano intenso extracorpóreo. Almas que não engolem seco. Um beijo não é seco, um toque não é seco, uma palavra não é seca. Somos aquelas que contam letras, que decoram sua ordem e incorporam seu significado. E isso era demais pra nós. Era como abrir um vinho e só olfatar a rolha. Impossível não te beber inteira. Eu avisei! Não estamos remediadas. Nunca estaremos. Somos como a lua e suas crateras agora, um lugar inóspito (onde socorro não se verbaliza) à mercê de bilhões de anos para nos recriamos como outro planeta. Tampar nossas memórias profundas é tão impossível como reinventar a vida. Eu já sabia que éramos lunáticas, mas a certeza é ácida, corrói-me por inteira. Dois mundos que precisam encontrar órbitas diferentes, burlar a física das atrações dos nossos pesos maciços. Nessa equação a única variável a diminuir nossa força é o quadrado da distância. Uma distância que somente será mensurável no distanciamento e na percepção do seu efeito atenuador (a longo prazo). Até que assim seja, seu mundo influenciará o meu, mesmo às escuras. Siga em paz, pequeno sonho. Não nos cabe mais na mesma galáxia. Mas por aqui, todas as estrelas continuarão inclinadas, clamando sua "intensity", todas elas já sabem seu nome (isso eu não consigo consertar. A física, a química e a nossa natureza não se conserta).
Às vezes, para sair vivo de algumas tempestades, é preciso sair primeiro da cabine de controle e segurar forte nos ferros da embarcação.
Antes de qualquer coisa, devemos criar espaço para nossa espiritualidade e só a partir daí nos abrirmos às demais criaturas.
Saltar e a rede aparecer?
Filosoficamente catastrófico, mas (realmente) é o passo da morte que traz renascimento.
Algumas soluções implicam deixar nossa melhor versão de lado e vestir a versão possível.
Para hoje:
Faça tu o que deres conta.