José D'Assunção Barros
[DEFINIÇÃO DE MÚSICA]
A Música pode ser definida como a arte que organiza sons de modo a produzir resultados e efeitos diversos nos seres humanos – sendo que os homens e mulheres tanto podem produzi-la como criadores (compositores, instrumentistas, etc), como consumi-la em um processo de audição que não deixa de ser também criativo. Além daquela finalidade estética que nos é tão familiar em muitas das sociedades conhecidas, a Música também pode se associar a inúmeras outras práticas. Assim, quando uma música desenvolve certos ritmos, pode mobilizar os seres humanos para a Dança – uma arte que não tem muito sentido senão associada à Música. Em muitas sociedades, como as indígenas, a Música pode ainda assumir uma importante função de trazer coesão e sociabilidade ao grupo, assim como pode ocupar um lugar proeminente em certos rituais e ritos de passagem. Isso também não é estranho às nossas sociedades ditas “civilizadas”, e não é difícil imaginar inúmeras situações nas quais a Música desempenha um relevante papel social ou ritualístico. Posto isto, podemos pensar efetivamente a Música como uma arte entre outras, capaz de desenvolver as suas próprias finalidades estéticas. Seria uma longa discussão, que não caberia propriamente neste ensaio, aquela que poderia mostrar que – embora a função estética da Música frequentemente se volte para a produção de efeitos associáveis à beleza – inúmeras outras sensações podem ser inspiradas nos seres humanos através das músicas que estes escutam.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.133].
[DEFINIÇÃO ESTRUTURAL DE CONCEITO]
Um conceito é uma estrutura harmônica de sentidos, cuja 'compreensão' é constituída por diversas 'notas' que interagem umas sobre as outras (e todas elas sobre o todo).
[trecho de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.158].
[AS TRÊS QUESTÕES EXISTENCIAIS FUNDAMENTAIS, E O ACORDE DA VIDA]
Existem três grandes perguntas que sempre intrigaram os seres humanos. Qual foi a origem do Universo? Como começou a Vida? Como surgiu a Consciência? Estas são as três perguntas de maior profundidade existencial que podemos fazer; embora, para elas, não tenhamos respostas mais efetivas, senão aquelas produzidas com algum teor especulativo. De um ponto de vista mais científico, os físicos desenvolveram algumas hipóteses instigantes sobre a primeira das três perguntas, tomando por base a observação de certos indícios como a expansão acelerada do universo visível . Quanto às duas outras perguntas – a origem da vida e a origem da consciência – pouco sabemos. Não sabemos, por exemplo, se a vida é um fenômeno isolado, que aconteceu no planeta Terra, ou se também ocorreu em outros pontos deste vasto universo constituído de bilhões e bilhões de estrelas. Não sabemos por que a vida começou, nem como se deu este milagre (ou extraordinário acaso) que teria sido o surgimento da vida em meio à matéria inerte e inorgânica.
Não obstante não termos acesso ao por que e ao como, sabemos com considerável precisão quando surgiu a vida em nosso planeta – pois a ciência se capacitou para ler esta informação em registros fósseis e microfósseis de todos os tipos. Sabemos também quais sãos os elementos necessários à existência da vida. Talvez ainda venha a ser descoberta um dia alguma peça que esteja faltando neste intrigante quebra-cabeça, mas de maneira mais geral podemos descrever com alguma precisão a combinação de elementos e fatores que possibilitaram e possibilitam a existência dos vários tipos de vida que até hoje conhecemos. Além disso, existe ainda um conjunto irredutível de elementos e propriedades que são compartilhados por todos os seres vivos, da mais singela bactéria ao mais complexo dos seres pluricelulares. Este conjunto mínimo de elementos necessários que caracteriza todo e qualquer ser vivo, inclusive o homem, é o que chamaremos de ‘acorde da vida’.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. O Uso dos Conceitos - uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.223-224].
A miséria, a solidão, o desemprego - e mesmo a desfuncionalidade, que é o destino de uma ampla maioria de pessoas que não trabalham com aquilo que amam ou para o qual são vocacionadas - não são, de modo algum, fracassos pessoais, mas sim fracassos do sistema que produz estas anomalias e as transforma em regra. Em um mundo verdadeiramente harmônico todos encontrariam um trabalho que gostassem de fazer, ou no qual se sentissem valorizados. Todos também seriam bem renumerados por aquilo que fazem bem, e a fome e a miséria seriam apenas vagas referências históricas que os ajudariam a valorizar ainda mais a plenitude da vida. Também não haveria solidão e inadaptação social, pois todos encontrariam os espaços de sociabilidade apropriados e seriam apresentados àqueles com os quais poderiam compartilhar a felicidade.
Mas o que ocorre neste sistema que nos escraviza, isola-nos uns dos outros, desfuncionaliza nossas existências profissionais e nos coloca diariamente diante da miséria - nossa ou de nossos semelhantes - é que cada um destes fracassos é atribuído aos indivíduos que deles padecem. São na verdade fracassos do próprio sistema. O dia que todos compreendessem isso também seria o dia em que saberíamos que o desemprego é responsabilidade de todos, assim como a solidão e as inadaptações sociais de todos os tipos. De alguma maneira, também temos de enfrentar o fato de que, se ocorrem diariamente crimes de todos os tipos, isso não se dá apenas por causa de uma maldade individual propriamente dita, mas porque o sistema é criminoso, como um todo, e porque produz criminosos. O racismo ocorre porque estamos imersos em um sistema racista; de maneira análoga, não são os homens que são sexistas - o sistema é que é sexista.
Como sair deste círculo vicioso? Despertar, de um ponto de vista individual, é já um começo, mas ainda não é uma solução. Precisamos despertar coletivamente. Mas como vencer as forças que nos mantém no sono, que vivem do nosso sono, que cultivam a nossa inconsciência coletiva?
[BARROS, José D'Assunção. Páginas de um Diário]
Não existe socialismo pleno sem democracia. Comparo tal formação social a um corpo sem alma, ou a uma espécie de sociedade de formigas. Neste tipo de aleijão sociopolítico, a riqueza social pode ter sido distribuída, mas a liberdade não foi compartilhada. Enquanto isso, também não existe democracia plena sem socialismo. Tal formação social configura uma grande mentira; é algo como uma alma perdida no limbo, sem possuir um verdadeiro corpo. De que vale o direito de ir e vir se não temos recursos para comprar a passagem? Efetivamente, não existe Capitalismo com Democracia. Nas ''democracias' liberais, é impressionante o incessante trabalho histórico que precisa ser feito diariamente - através do controle das mídias, da desinformação, da Educação coibida ou manipulada, do encobrimento da parcialidade jurídica - para não ficar evidente a todos que Capitalismo e Democracia são totalmente incompatíveis. A incompatibilidade entre democracia e capitalismo está sempre lá, embora as vezes mais ou menos encoberta;. Mas há momentos em que esta contradição fica bem exposta, como uma imensa ferida à flor da pele. Todos podem vê-la, embora alguns finjam não enxergá-la, e outros desviem os olhos.
[BARROS, José D'Assunção. Páginas de um Diário Não Escrito]
A TERRA PLANA
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Descobriram que. a Terra é plana
e as pessoas chatas.
Definiram, de vez por todas,
que a humanidade insana
não vale um dobrão de prata
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Ah, deuses da virgem mata!
A Gangue dos Decibéis
com dois toscos pares de régua
redesenhou um universo
andrajoso e deselegante
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A Terra, tão coitada como arrogante,
tornou-se uma prisão de gelo
que olha para o restante espaço
à maneira de um estranho prato
de borda dura como a lei
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O Sol, outrora um rei,
de sua ideologia de gênero
foi pomposamente destronado
e agora corre, corre, corre
humilde e desesperado
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Mero pimpolho, de fogo endiabrado,
tem agora o tamanho da Lua
e ambos são bolinhas simplórias
que correm uma atrás da outra
como cão e cadela em cio
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E, falando em cão, por desafio,
era tudo conspiração
desde as mais das priscas eras
desde as sociedades secretas
que se escondem sob o chão
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Com a terra plana, de roldão,
toda ciência se dissolveu
As matemáticas se danaram.
a gravidade saiu flutuando
como bolhas (ou moedas) de sabão
[publicado em Scriptorium, vol.7, nº1, 2021]
O QUE É ABSTRAÇÃO?
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"Quando estamos diante de um objeto concreto ou de uma cena, temos perante nossos sentidos e possibilidades de percepção um fragmento da realidade que reúne uma miríade de características e especificidades. Abstrair, no entanto, é a capacidade de desconsiderar este emaranhado de aspectos que constituem a totalidade concreta do objeto abordado e considerar só aqueles aspectos que nos interessam.
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O homem paleolítico começou a se distinguir de outros animais quando passou a olhar para os galhos caídos ao chão de uma nova maneira, deixando de enxergá-los como o que são concretamente – isto é, abstraindo uma série de elementos que fazem de cada galho um objeto único – para passar a enxergar este ou aquele galho como um “apanhador de frutas”. Visto desta nova maneira – com a abstração de todas as características desnecessárias e a preservação, na mente, apenas das propriedades de solidez e forma alongada do galho – este objeto pôde assumir a função de cutucar uma árvore para precipitar a queda de um fruto. A abstração, enfim, transformou o galho seco em um “apanhador de frutas” – um instrumento capaz de interferir e modificar a realidade, no caso expandindo a capacidade manual de se disponibilizar de alimentos.
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Com a capacidade de abstração, os seres humanos começaram a transformar pedras pontiagudas em armas, troncos flutuantes em pequenas embarcações improvisadas. Ainda no período paleolítico, passariam a juntar diferentes objetos para construir ferramentas sofisticadas: lanças de ponta de sílex, machados de pedra, agulhas. Com a capacidade de abstração, logo desenvolveriam a linguagem simbólica, e também aprenderiam a contar.
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Por fim, os seres humanos aprenderiam a conceituar. O conceito é o produto mais refinado da capacidade de abstrair, já que, para conceituar, precisamos nos abstrair de alguns aspectos concretos para passar a enxergar mentalmente apenas aquilo que nos interessa. Abstrair é o ato de abandonar momentaneamente a realidade concreta – ou deslocá-la, por instantes, para um contracanto – de modo a recriar uma outra realidade: operacional, funcional, referencial, audaciosa, liberta de amarras"
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[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção, O Uso dos Conceitos: uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p.38-39]
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A PONTE
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Uma ponte amarela,
abaulada sobre o rio...
Sem dizer palavra,
ela diz tudo, fio contra fio.
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Eloquente, fala-nos sobre os fluxos de gentes
a passar de um para o outro lado
do rio.
Mas também fala dos barcos
a lhe ditarem a forma:
profundo pacto
entre os homens e mulheres,
desejosos de passar por cima,
e os barcos e jangadas
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convocados a seguir por baixo.
Este curvar da ponte, humilde e quase sacro,
é a mais sutil forma do acordo
– o produto profano de um pacto –
entre todos os que queriam ir e vir:
seja na forma de passantes,
seja nos modos navegantes.
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Na Ponte – há mais – o olhar encontra
corrimãos que falam
dos que caíram n’água.
Dizem-nos alguma coisa sobre a desatenção,
sobre a imperícia,
sobre a brutalidade do empurrão.
Talvez, quem sabe,
escondam o comovente segredo de um suicida,
ou de um simples e alegre acenar de mão.
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Será, que a ponte, que liga as margens,
é também passagem
para o Outro Lado?
Será ela a cura
para a aflição?
Quantos ali deixaram seu último salto,
o derradeiro gesto
– o silêncio vivo que enfim precede
o calar eterno?
Quantos lá não abandonaram seu último grito mudo
estendido e tingido por sobre a ponte
Como se tudo... viesse de dentro de um quadro?
(E este quadro, ele mesmo atormentado,
não estaria preso à parede exposta
de alguma dimensão secreta?)
Eis que a ponte prossegue
nos dizendo tantas coisas
sobre o rio e sobre tudo.
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É amarela:
de um amarelo-berro...
Somente isso me escapa ao faro.
Porque não verde, vermelha – azul?
Como um sol estendido em linha,
ou o arco-íris de uma só cor,
ela permanece ali,
sem revelar o último dos seus mistérios:
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Uma ponte amarela
sobre o rio, sobre a vida.
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José D'Assunção Barros
[publicado na revista Opiniães, 2023]
DA SOCIEDADE INDUSTRIAL À SOCIEDADE DIGITAL
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“Sintetizemos este grande movimento entre os diferentes patamares de conhecimentos científicos que demarcam o caminho da Era Industrial à Era Digital. Com o nível científico alcançado pelas leis de Newton e pelas leis da termodinâmica – e, mais tarde, com a revolução eletromagnética que se tornou possível a partir das leis de Maxwell – vimos que a compreensão e controle do mundo cotidiano havia se expandido admiravelmente, abrindo os portais para a Era Industrial com suas duas revoluções, a mecânica e a elétrica. Mas com o nível alcançado pela combinação entre a física quântica e a relativística, no início do século XX – portanto no auge da Era Industrial – pôde-se agregar a isto tanto a compreensão do universo de escala microscópica dos elétrons e átomos, como uma melhor compreensão do universo de escala macroscópica da estrelas e galáxias.
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Este novo limiar abre os portais para a possibilidade de adentrar a Era Digital que iria se instalar décadas depois, em meados dos anos 1990. Para todos os casos, é interessante observar como os desenvolvimentos de conhecimentos científicos e inovações tecnológicas produzidos em certa Era tanto ajudam a entretecer a sociedade típica de sua época, como abre caminhos para a Era seguinte. A Era Digital não teria sido possível sem o desenvolvimento da Era Industrial, e esta dependeu de desenvolvimentos que ocorreram nas Eras que a antecederam. Os elos e saltos tecnológicos permitem que os historiadores da ciência desfiem uma história polifônica nas quais algumas melodias se desdobram de outras e todas terminam por interagir entre si, sendo importante lembrar que os progressos tecnológicos não correspondem necessariamente a concomitantes progressos sociais ou espirituais. Para o que nos interessa neste momento, a revolução digital não teria sido possível sem a combinação e desenvolvimento paralelo da física quântica e da teoria da relatividade”
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[BARROS, José D’Assunção. História Digital. Petrópolis: Editora Vozes, 2022. p.28].