José D'Assunção Barros
[HISTÓRIA POLÍTICA]
O que autoriza classificar um trabalho historiográfico dentro da História Política é naturalmente o enfoque no “Poder”. Mas que tipo de poder? Pode-se privilegiar desde o estudo do poder estatal até o estudo dos micropoderes que aparecem na vida cotidiana. Assim, enquanto a História Política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com a política dos grandes Estados (conduzida ou interferida pelos “grandes homens”), já a Nova História Política que começa a se consolidar a partir dos anos 1980 passa a se interessar também pelo “poder” nas suas outras modalidades (que incluem também os micropoderes presentes na vida cotidiana, o uso político dos sistemas de representações, e assim por diante).
Para além disto, a Nova História Política passou a abrir um espaço correspondente para uma “História vista de Baixo”, ora preocupada com as grandes massas anônimas, ora preocupada com o “indivíduo comum”, e que por isto mesmo pode se mostrar como o portador de indícios que dizem respeito ao social mais amplo. Assim, mesmo quando a Nova História Política toma para seu objeto um indivíduo, não visa mais a excepcionalidade das grandes figuras políticas que outrora os historiadores positivistas acreditavam ser os grandes e únicos condutores da História .
Objetos da História Política são todos aqueles que são atravessados pela noção de “poder”. Neste sentido, teremos de um lado aqueles antigos enfoques da História Política tradicional que, apesar de terem sido rejeitados pela historiografia mais moderna de a partir dos anos 1930, com as últimas décadas do século XX começaram a retornar com um novo sentido. A Guerra, a Diplomacia, as Instituições, ou até mesmo a trajetória política dos indivíduos que ocuparam lugares privilegiados na organização do poder – tudo isto começa a retornar a partir do final do século com um novo interesse.
De outro lado, além destes objetos que se referem às relações entre as grandes unidades políticas e aos modos de organização destas grandes unidades políticas que são os Estados e as Instituições, ganham especial destaque as relações políticas entre grupos sociais de diversos tipos. A rigor, as ‘ideologias’ e os movimentos sociais e políticos (por exemplo as Revoluções) sempre constituíram pontos de especial interesse por parte da nova historiografia que se inicia com o século XX. Por outro lado, tal como já ressaltamos, hoje despertam um interesse análogo as relações interindividuais (micropoderes, relações de poder no interior da família, relacionamentos intergrupais), bem como o campo das representações políticas, dos símbolos, dos mitos políticos, do teatro do poder, ou do discurso, enfim. Em muitos destes âmbitos, são evidentes as interfaces da História Política com outros campos historiográficos, como a História Cultural, a História Econômica, ou, sobretudo, a História Social.
[extraído de'O Campo da História'. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p.106-107]
[UMA CANTIGA E SUA PEREGRINAÇÃO POR UM MUNDO DE NOVAS ESCUTAS]
A poesia - diante da possibilidade de ser utilizada como fonte histórica reveladora de discursos, informações concretas e expectativas humanas de todos os tipos - deve ser vista como um veículo de expressão e comunicação que, independentemente das intenções de seu autor, pode conter uma pluralidade de sentidos. Para que um novo sentido se desprenda de um poema ou de uma cantiga,é por vezes bastante que a desloquemos no tempo ou no espaço, que mudemos o seu público ou o trovador ou poeta que a enuncia, que a voltemos contra um novo alvo.
Em sua peregrinação por um mundo em permanente transformação, um verso se transfigura a cada instante, a cada leitura e a cada audição. Para compreender isto, é preciso perceber a leitura e a audição como práticas criadoras.O mundo transfigura o poema porque se transfiguram os olhares e os ouvidos que para ele se voltam, e também porque este poema é inserido em novas práticas, é recriado mesmo a partir destas novas práticas.
O encantador paradoxo da poesia está em que esta transmutação se
opera sem que a forma sequer se altere. Enquanto uma narrativa que é trans
mitida por via oral sofre múltiplas interferências, interpolações, reorganizações do discurso– dada a própria natureza do discurso narrativo –, a poesia, mais ainda a cantiga, está aprisionada dentro de uma grade versificatória, de um ritmo, de um jogo combinatório de sonoridades. Não é possível alterar uma palavra, na sua dimensão material, sem que a estrutura poética desmorone. É isto o que assegura, aliás, a passagem de uma poesia através do tempo em toda a sua integridade material.
No entanto, este poema aprisionado em uma grade versificatória, esta cantiga encerrada em uma estrutura melódica, exercem espetacularmente
toda a sua liberdade. Sem mudar uma única palavra, trazem à tona mil novos
sentidos a cada novo contexto de enunciação. A grade de versos e ritmos não é para eles um túmulo, nem a estrutura melódica é para eles um cárcere. É antes um meio de libertação, que os permite incólumes atravessar todos os
tempos. Já se disse que “um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o
mundo muda”. Ainda com mais propriedade podemos considerar isto para o poema, este gênero de discurso que, mesmo quando transmitido basicamente pela oralidade – meio transfigurador por natureza – conserva-se a si mesmo sendo já um “outro”. A estrutura singular do discurso poético lhe dá uma imunidade material, ao mesmo tempo em que de fato não o aprisiona, sobretudo em virtude da natureza fluida da linguagem poética
[trecho do artigo 'A Poesia como Arma de Combate - um estudo sobre as múltiplas reapropriações de uma cantiga medieval-ibérica", Revista Letras (UFPR), vol.90, p.41-42, 2014].
OS ÚLTIMOS DIAS DO CAFÉ PLANETA
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Somente eu no Café
O mundo acabou-se
Numa nódoa tônica
Ou com o último doente
De um vírus suicida
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Passarinhos cantando
Se foram prá sempre,
Palmeiras tremendo
Não há mais,
Toda espécie de vida
Era demais
.
Somente eu no Café ...
Indago ao destino
Questões irreais
.
As garrafas vazias
Não me respondem,
As mesas ausentes
Não me contestam,
Sequer do silêncio
Outrora inexistente
Partem palmas de gente
Ou apupos de ente
.
O que eu não daria por uma vaia !
Uma daquelas vaias gosmentas
Que grudam na pele por toda vida
Uma vaia daquelas cruéis
Que nos dão vergonha
Depois da piada mal resolvida
.
Queria ter perto ao menos uma tosse
Ouvida por acaso
Contra o empenho do silêncio
Ou, quem não sabe,
uma respiração entrecortada
Que anunciasse vida
Onde não há mais vida
.
Ainda que fosse, então, um chiado negro
Que escapou da estante
Vindo de alguma traça
(Ah, mas nem mesmo o trânsito
Lá fora passa)
.
Somente eu, no Café
O mundo encontrou a solução
Que os filósofos não pensaram:
Não há mais problema
Não há mais questão
.
Apenas eu não me furto ao hábito
De freqüentar a nação
As cadeiras e mesas
Vazias de gente
Me contemplam
.
Aqui, neste Café
Reúne-se toda a humanidade do país
(quiçá da Terra)
Que sou eu
.
.
[publicado na revista Água Viva, vol.6, nº3, 2021]
[CAPITALISMO E DEMOCRACIA SÃO CONTRADITÓRIOS]
Talvez nunca, como nos dias atuais, tenham se mostrado serem tão incontornáveis as contradições entre capitalismo e democracia. Disfarçar o Capital com os trajes da Liberdade torna-se cada vez mais difícil, e muitas vezes não é sequer mais necessário. Nestes novos tempos, o poder repressivo diversifica seus modos de violentar a liberdade, de limitá-la a uma parcela mínima da sociedade, de impor a exploração generalizada, de impedir nas instituições políticas a presença de representantes sinceros dos verdadeiros interesses da classe da trabalhadora, Se o século XX havia apresentado inúmeros exemplos de ditaduras tradicionais, o nosso século XXI parece assistir, nos anos mais recentes, à emergência de novos tipos de ditaduras, como aquelas que não precisam mais se impor basicamente pela violência física (embora isso também continue a ocorrer), e sim através de novos modelos que envolvem o controle dos poderes judiciários, a conivência de setores parlamentares e a manipulação de amplos setores da população através das mídias de todos os tipos.
[BARROS, José D'Assunção. Seis Desafios para a Historiografia no Novo Milênio. Petrópolis: Editora Vozes, 2019, p.23].
PEQUENA COLEÇÃO DE AUSÊNCIAS
Vocês que ostentam carros importados,
E pescoços cheios de colares...
Os senhores, que guardam em cada adega
Vinhos tão antigos quanto caros
E as senhoras, que consomem tais fortunas
Como se fossem goles d’água...
Podem rir nas suas festas
Riam!!
Mas é certo que não têm
Algo que só eu tenho
Tenho uma pequena coleção de ausências
Brutais, cínicas ou delicadas.
Rebeldes, elas se acham desalinhadas
No meu vasto galpão de memórias.
Não são tantas (já nem brigam por espaço),
Respeitam-se, uma às outras
E tocam-me todos os dias
Como suaves pingos amargos
Tenho por exemplo a falta daquela morena
Com seu estonteante corpo de sereia...
A mesma que me olhou esticado
Na inquieta mesa de um bar
E que eu deixei escapar dos meus braços
Antes mesmo de segurá-la
Ah, como esta ausência me corrói!
Como queria ter tocado
As madeixas de cabelos negros
A pele macia, os lábios – ser seu herói.
Como queria ter ouvido a voz
Que se esconde por trás do olhar.
Esta ausência, de corpo e voz,
É como um álbum antigo, sem retratos.
Sinto tanto esta ausência
Como a das três loiras que por mim passaram
Cada uma no seu próprio tempo, em seu próprio espaço.
Duas me olharam – uma de frente, uma de lado –
Mas a terceira... tocou-me o ombro
Com o cotovelo assanhado
Como teria sido
Com cada uma delas?
Que movimentos não faríamos?
Quantos kama sutras não reescreveríamos?
Que acordes não somaríamos
À Harmonia Celestial?
Mudando de departamento
– Para a sessão das coisas abstratas –,
Tenho ali no canto, tímida e desencantada,
A resposta altiva e desaforada
Ao insulto infame!
Como não a dei, ela agora está ali
No cantinho dos cantos e desencantos...
Não mais desaforada,
Mas de todos desconfiada;
Não mais altiva,
Mas temerosa e hesitante
E que dizer daquela ali,
Andando de um para o outro lado?
É a piada que não contei!
Como todos teriam rido...
E hoje, eu teria comigo,
Todas as gargalhadas.
Mas o que tenho, é a velha piada
Andando de um lado ao outro,
Resmungando sem graça,
Confusa e consternada...
Senhora! Peço-lhe perdão,
Minha boa e velha piada!
Olhem agora aquela pedra preciosa:
O saxofone que não comprei!
Com ele iria tocar as mais belas melodias
Que hoje me faltam também.
(Elas ecoam por dentro
Do meu teatro de memórias;
Mas não as ouço,
A não ser como sombras pálidas,
Senão como doce ausência)
Senhoras e senhores,
Fiquem com seus pescoços importados,
Com seus carros envoltos por colares!
Que se danem as adegas
De suas batalhas conjugais!
Somente, deixem-me em paz,
Com minha morena e minhas loiras,
Ao som do meu solo sax.
Deixem-me com minha boa velha piada,
Junto à resposta desaforada.
Deixem-me!
Com minha pequena coleção de ausências...
[publicado em Entreletras, vol.12, nº2, 2021]
KNOCK, KNOCK, KNOCKING
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Um dia, bati à porta do Castelo:
– Lamento, mas fui eu !!
Fui eu que venci o Dragão
Que atravessei abismos
Que enfrentei estrelas
Que derrubei destinos...
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Mas a princesa esperava olhos verdes
Cabelos claros e músculos azuis
Cuidadosamente retorcidos na Academia
.
Esperava, ademais,
(pois isso confessou a uma das alcoviteiras)
um príncipe habilidoso
que a contorcesse na cama
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[ – Mas porque não eu,
se também tenho meus truques?
Posso não ter dormido com princesas,
Mas levei camponesas às nuvens]
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Tudo isso lhe disse, marejado
Enquanto lhe oferecia em brinde
– um cálice de Santo Graal
.
Por fim, mostrei-lhe um colar de pérolas
feito com olhos arrancados a doze dragões
[queria ofertá-los a ti]
.
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Tudo em vão ...
.
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A Princesa dormia
e sonhava príncipes ...
.
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[publicado em Entrelinhas, vol.13, n.2, 2021]
[DEFINIÇÃO DE HISTÓRIA]
A História, já dizia Marc Bloch, é a “ciência dos homens no tempo”. Com esta simples frase, aparentemente tão singela, o célebre historiador francês conseguiu destacar algumas das principais questões que instigam todos aqueles que são fascinados pela história e amam a Historiografia. De um lado, a definição proposta postula que a História é uma ciência. Esta posição, tem sido a predominante a partir do século XIX, quando a História passa a ser vista pelos seus praticantes mais especializados como um saber de tipo científico, ou pelo menos um saber cientificamente conduzido. Existem até hoje, é claro, debates que questionam se a História é ainda um gênero literário específico e uma arte ou meio artístico de expressão – o que não impede que ela também continue a ser uma ciência mesmo quando incorpora estes atributos – e há mesmo os polemistas que procuram por em suspensão a cientificidade da História, sugerindo que ela não produz o tipo de “conhecimento verdadeiro” que se espera habitualmente de uma ciência típica [...] Não obstante, de modo geral a sociedade tem reconhecido os seus historiadores como praticantes de um saber que precisa ser aprendido seriamente, com suas normas e procedimentos, com suas teorias e métodos próprios de investigação e análise. Da mesma forma, todas as universidades, nos dias de hoje, localizam efetivamente a História entre os saberes científicos.
[...] A definição proposta por Marc Bloch também chama atenção para outras duas coisas importantes. É uma ciência “dos homens” (ou melhor, dos seres humanos), “no tempo”. Dizer que a história é uma “ciência dos seres humanos” – isto é, uma ciência humana – é reconhecer que o “humano” a envolve em três diferentes dimensões: a história fala de seres humanos, é escrita por seres humanos, e dirige-se aos seres humanos que serão os seus leitores ou ouvintes. Estes seres humanos também estão todos no “tempo”: os historiadores escrevem sobre homens e mulheres, e sobre sociedades, que viveram em tempos diversos; enquanto isso, eles mesmos – historiadores – estão ligados a um tempo que é a sua própria época, assim como os seus leitores. A História, enfim, é “humana” e “temporal” – e isto tanto no que concerne ao seu objeto de estudo, ao sujeito que produz este tipo de conhecimento (o historiador), e aos sujeitos que irão usufruir das realizações daí decorrentes como leitores ou espectadores.
Neste ponto, a definição proposta por Marc Bloch continua sendo bastante atual. Ela também chama atenção para outras duas coisas importantes. É uma ciência “dos homens” (ou melhor, dos seres humanos), “no tempo”. Dizer que a história é uma “ciência dos seres humanos” – isto é, uma ciência humana – é reconhecer que o “humano” a envolve em três diferentes dimensões: a história fala de seres humanos, é escrita por seres humanos, e dirige-se aos seres humanos que serão os seus leitores ou ouvintes. Estes seres humanos também estão todos no “tempo”: os historiadores escrevem sobre homens e mulheres, e sobre sociedades, que viveram em tempos diversos; enquanto isso, eles mesmos – historiadores – estão ligados a um tempo que é a sua própria época, assim como os seus leitores. A História, enfim, é “humana” e “temporal” – e isto tanto no que concerne ao seu objeto de estudo, ao sujeito que produz este tipo de conhecimento (o historiador), e aos sujeitos que irão usufruir das realizações daí decorrentes como leitores ou espectadores [...]
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção (org.). A Historiografia como Fontes Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.7-9]
[A HISTÓRIA DE HOJE SOBRE UMA OUTRA ÉPOCA, É UMA REALIZAÇÃO DA NOSSA PRÓPRIA ÉPOCA, E TRAZ AS MARCAS DE NOSSA ÉPOCA]
Ainda que certamente úteis para compreender as épocas que estudaram, as obras produzidas pelos historiadores de todos os tempos não deixam, também, de falar enviezadamente sobre suas próprias épocas [...] Ao escrevermos sobre Zumbi, e sobre a revolta e guerra de quilombolas contra um poderoso sistema escravista que os violentava, falamos também das nossas desigualdades atuais – muitas delas herdadas do período escravista – e das variadas formas de lutar contra estas desigualdades. Zumbi, Chico Rei, Xica da Silva, ou outros personagens históricos negros – além do que tenham sido efetivamente na história que ficou para trás no tempo – representam também distintos modos de ação ou programas de luta contra desigualdades que precisaram e precisam ainda ser enfrentadas, nas diferentes ressignificações que os historiadores lhes dão. A História é este fascinante gênero literário e científico no qual os diferentes tempos se entrelaçam através de discursos e esquecimentos. Ao falar ou silenciar sobre os índios que habitam ou habitaram nosso continente em diversas épocas, ou ao mostrar interesse em ler um livro de História que fale sobre estes, os homens e mulheres que habitam as nossas cidades falam também de suas relações com os índios da atualidade. Falam de sua admiração pelos índios, de seu estranhamento, culpa, solidariedade, preconceitos, sentimentos de identidade e alteridade. Falam dos projetos públicos de preservação das populações indígenas, ou das ameaças de extinção e aculturação que as espreitam em nossa própria época.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção (org.). Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.10]
[A HISTÓRIA ESTUDA A HISTÓRIA]
A História (ou Historiografia) é um dos poucos campos de saber cujo nome da própria disciplina coincide diretamente com aquilo que ela estuda. A História estuda a história. A Astronomia estuda os objetos celestes de todos os tipos, em suas múltiplas relações; a Biologia estuda a ampla diversidade de seres vivos e seus modos de existência; o Direito estuda tudo aquilo que diz respeito às leis e à organização dos sistemas jurídicos. Mas a História estuda a própria história. Ou seja: por um lado. História é o nome de uma disciplina ou campo de saber; e por outro lado a história é um objeto (ou mesmo um universo) a ser estudado: é o conjunto de processos, acontecimentos e sociedades que já existiram ou se manifestaram até hoje no tempo. Todos nós estamos literalmente mergulhados na história, pois ela vai se desenrolando no tempo através de um devir sem fim que nos arrasta junto às sociedades nas quais vivemos. Mas parte desta história – quando temos fontes e outros recursos para acessá-la de alguma maneira – pode ser estudada mais sistematicamente por uma ciência específica que também é chamada de História. Alternativamente – um pouco para evitar a confusão entre os dois diferentes significados impostos pela relação entre História e história – podemos chamar a História também de Historiografia (“escrita da História”).
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "História e Historiografia: todas as relações possíveis" In A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.16].
[A COMUNIDADE HISTORIOGRÁFICA E SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS HISTORIADORES]
Como em todo campo de saber – da Física à Biologia ou à Antropologia – os praticantes deste campo que é a História também precisam de seus pares, não se achando deles descolados, ainda que conservando a sua evidente autonomia. Esta comunidade invisível e indefinida, mas bem real, pressiona cada historiador de muitas formas, impedindo que ele se afaste significativamente da matriz disciplinar da História sob pena de que seu trabalho perca a legitimidade entre os praticantes reconhecidos da área. A comunidade historiográfica – formada por todos os historiadores atuantes no campo – pressiona cada um dos seus pares conforme o seu lugar na rede humana configurada pela totalidade de historiadores. Estes enfrentam os limites que o campo lhes oferece em cada época: podem desafiá-lo, inovar, introduzir desenvolvimentos inesperados, propor novos temas, mas sempre enfrentando pressões para que não se afastem muito daquilo que se espera de um historiador em cada momento da história da historiografia. Obviamente que, se não tivessem coragem ou vontade para desafiar em alguma medida o campo, ainda que respeitando os limites implícitos, os historiadores sempre escreveriam as mesmas coisas e do mesmo jeito, e a historiografia como um todo se modificaria muito pouco. Mas não é isto o que ocorre, como sabemos, pois existe uma relação dialética entre cada historiador e a comunidade historiográfica como um todo. Se a comunidade historiográfica pressiona cada historiador a observar os seus limites , níveis de reconhecimento e interditos, também cada historiador que faz parte do campo – e todos eles em combinações diversas – são capazes de exercer pequenas ou grandes pressões na comunidade historiográfica como um todo e com vistas às mudanças que vão ocorrendo na historiografia de cada época.
[BARROS, José D'Assunção. "História e Historiografia – todas as interações possíveis" In A Historiografia como fonte histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.29].
[A CRITICIDADE É A PÉROLA DA OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA, E A PRINCIPAL CONTRIBUIÇÃO DOS HISTORIADORES PARA A SOCIEDADE]
O que mais fizeram os historiadores ao longo de dois séculos de aprimoramento de sua ciência histórica foi adquirir capacidades de analisar criticamente os textos. Quando um historiador examina uma notícia de jornal, ele não a toma meramente como fonte de informações, mas sim como discurso a ser analisado, compreendido, problematizado. Fazemos isso ao ler criticamente um jornal do século XIX ou da primeira metade do século XX: identificamos o seu polo editor, o conjunto dos seus anunciantes, as suas diferentes faixas de leitores, a polifonia de textos que estão abrigados em um exemplar de um jornal diário. Ao analisar um texto jornalístico, avaliamos o seu vocabulário, bem como a escolha, nada neutra, de palavras. Deciframos o conjunto de interesses que o movem, indagamos sobre as pressões que o confrontam, identificamos as distorções e manipulações, avaliamos as informações seletivas que são oferecidas pelo texto, e os silêncios que gritam nas suas entrelinhas.
Jamais examinamos um texto jornalístico apenas em si mesmo, como se ele dissesse tudo apenas com as palavras que nele estão abrigadas. Investigamos a sua intertextualidade, comparamos o texto em análise com outros, antecipamos os seus efeitos (que também foram antecipados pelos autores do texto jornalístico). Embora um jornal de determinada época possa trazer informações a um historiador, são principalmente os discursos que nele se entrelaçam que se tornam o principal objeto de análise. Abordar com capacidade crítica os discursos (e as informações que por estes são disponibilizadas, e como são disponibilizadas) é a base da metodologia de análise de fontes da qual precisam se valer os historiadores, e que tem sido a sua grande conquista metodológica ao longo de séculos. Tudo isso corresponde ao que poderíamos sintetizar em uma palavra-chave: ‘criticidade’.
A criticidade é o produto mais refinado da História enquanto campo de saber. Dos historiadores mais ingênuos que aceitavam acriticamente as descrições depreciativas elaboradas pelos antigos senadores romanos sobre os Imperadores, seus rivais políticos imediatos, aos primeiros historicistas que situaram estas descrições nos seus contextos políticos, sociais e circunstanciais, há um primeiro salto relevante. Das análises historiográficas ingênuas, que não decifravam os discursos laudatórios das antigas crônicas régias, aos métodos sofisticados de análises de discursos, temos um longo desenvolvimento que é talvez a principal conquista dos historiadores. De fato, dos primórdios da crítica documental aos dias de hoje, nos quais os historiadores diversificaram extraordinariamente as suas técnicas voltadas para a leitura e análise de textos, temos um potencial crítico-interpretativo que se desenvolveu extraordinariamente. Analisar os discursos presentes nas fontes, diga-se de passagem, requer a mesma capacidade crítica que deve ser conclamada para analisar os discursos contemporâneos. Por esta razão, quando alguém aprende a criticar fontes históricas de períodos anteriores, desenvolve concomitantemente a capacidade de criticar textos de sua própria época. Tenho a convicção de que a transferência social desta capacidade crítica é o bem mais precioso que os historiadores podem legar à sociedade que os acolhe, e que ampara a sua existência através das universidades que os abrigam e dos interesses de diversos tipos de público pelos livros de História.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "História e Historiografia: todas as relações possíveis" In A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.74].
[A HISTÓRIA É FREQUENTEMENTE PERSEGUIDA NAS DITADURAS E GOVERNOS DE EXCEÇÃO]
Costumam se fazer muito presentes, nos regimes de exceção e de opressão, os combates à História, seja na sua dimensão de pesquisa e de produção de análises historiográficas, seja na sua dimensão de Ensino e esclarecimento da população através da História Pública. No Ensino, durante experiências ditatoriais, são conhecidas as experiências de diluição da História em uma disciplina amorfa, de modo a quebrar a matriz disciplinar de um saber que – além de milenar – apresenta em sua trajetória os resultados e conquistas de mais de dois séculos de historiografia científica e crítica. Tal expediente, como se sabe, ocorreu a certa altura do Regime Militar imposto à sociedade brasileira em 1964, quando a disciplina ‘História’ se viu diluída, no Ensino Básico, em um arremedo disciplinar intitulado ‘Estudos Sociais’. Nos tempos recentes, uma medida provisória excluiu a obrigatoriedade da disciplina no Ensino Médio . É sintomático que, nos momentos em que a democracia se vê abalada, e nos períodos mais brutais de ditaduras, explícitas ou não, a História seja combatida de tantas maneiras, inclusive na sua integridade como disciplina que deve fazer parte do currículo escolar.
Os historiadores, particularmente através de suas principais associações, são conclamados a resistirem. A responsabilidade social deve ser preconizada como um dos valores de resistência da nova Historiografia, no Brasil e no mundo. Através da ‘transferência de criticidade’ para os diversos setores da população – seja através do ensino escolar e superior, seja através da divulgação de obras que estimulem em seus leitores a capacidade crítica, ou seja, por fim, através da utilização adequada da própria mídia contra os interesses conservadores que costumam dominar o universo midiático – a História nestas décadas iniciais do novo milênio demanda combatividade, como já ocorreu em diversos outros momentos.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "História e Historiografia: todas as relações possíveis" In A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.76].
O ARQUEÓLOGO
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Foi quando vi, entre as pedras reviradas,
Um dedal de bronze.
De imediato, em meu ombro esquerdo,
Senti um toque suave.
Hesitantes e tímidos, mas afetuosos,
Os dedos oscilavam entre me chamar e acariciar.
Virei meu rosto, devagar,
Como quem não quer assustar
Um pássaro-criança.
E ali estava ela:
Linda e sorridente como uma camponesa
Que acaba de compreender seus ciclos.
Ela me tomou o dedal das mãos e correu
Feliz pela estrada que agora eu via,
A inaugurar o chão.
;
Tentando persegui-la, meus olhos deslizaram
E no lado esquerdo da trilha, vi uma ponta de sílex
Branca, polida, afiada
Feita de engenho, audácia e malícia.
Revirando a terra, ali estava a lança
E um som de guerra ecoava em meus ouvidos.
Cem mil shivas dançavam ao redor do fogo!
Um pequeno mundo estava por ruir:
Não ficou pedra polida sobre pedra lascada.
Duas bonecas sobrevivem – esquecidas ao rés do chão –
Junto às ruínas de um grande templo.
.
;
Mais eis que tudo se renova
Sem lugar sereno, sem aflição
.
O som, ritmado e envolvente, trouxe todos de uma vez:
Uma cidade se erguera, em torno da celebração!
Sacerdotes, virgens em transe, homens e mulheres
De todas as profissões.
A forja do ferreiro, a parteira de novas vidas,
O comerciante de idas e vindas – o vinho, o incenso, o pão!
O príncipe perante as classes,
Os pescadores e agricultores, a dama de amaranto
Exercendo a profissão...
.
Um jogo! Antepassado dos tabuleiros
Onde as pretas confrontam as brancas.
Eu vi os jogadores!
Olhavam-se friamente, com raiva e cálculo,
Aos passos e contrapassos, moviam os dedos, entre as peças
E um deles deixou um pedaço de unha
Preso na borda de um peão
.
Antes de saber o final da partida,
Os destinos de cada peça
Se dissiparam
Como a fumaça,
Que agora, preso à teia de sempre olhar,
Vejo sair da cabana, como uma aranha
.
.
Anoto tudo,
com paciência e assombro...
UM HOMEM OLHANDO A SUA PRÓPRIA MORTE
Longe, o mundo se desfaz
Em cores, não há mais
A confusão repousa
O Universo era demais
.
Toda espécie de vida
Generalizou-se na morte
Toda diferença de outrora
A si mesma subtrai
.
Resta apena o nulo
Sem cor, talvez escuro
Resta apenas a dor
De não se ter mais dores
E a tênue liberdade
De não haver mais muro
.
Então é assim?
Diz a impiedosa pergunta
Que não mais se satisfaz
Então é assim...
Pulsa prá sempre a resposta
Que repousa no jamais
[publicado em Terceira Margem, vol.25, nº45, 2001]
.
O HERÓI QUE CAIU DA TARDE
.
.
Morreu o herói,
Como morria a tarde.
Para ele, o silêncio estendeu seu manto
Sem o feroz fulgor das festas; sem fazer alarde
.
Ah, tu,
Que tantas lutas vingaste
Contra as tiranias que derrubaste.
Agora já não há glória; já não queimam fogos.
Somente o último calor suave: apenas o calar dos pássaros
.
Como é possível, a um herói,
Morrer sem fogos, sem a luz que arde?
Como é possível este pôr dos olhos, como um cair da tarde?
.
Os pássaros, à sombra, não respondem,
O riacho murmura e cala:
Morreu o Herói
Ao cair
da
Tarde
A MÁSCARA (ou: Pequeno Enigma para ser lido de mil maneiras)
.
.
O Homem Velho sentou-se ao bar
onde costumava tomar um gole
Pediu daquela vez um suco
antinatural
ao invés da cerveja
quase habitual
.
Despiu o par de luvas brancas
revelando a mão inédita
Olhou, em torno, as caras sempre as mesmas
todas desfiguradas por uma triste alegria
Eternamente tão banal
.
E num gesto novo, já premeditado,
ele arrancou do rosto o que era máscara
desfazendo a falsa face do Homem Velho
na nova imagem, ainda nunca desvendada
.
E aquela gente, entre-surpresa e fascinada,
fitou o Homem Novo que então se revelava
mas logo dissolveu-se tudo em riso escárnio
e a multidão zombou do que se lhe mostrara
.
Não que a face nova fosse em si ridícula
ou contivesse traços engraçados
Simplesmente era destoante
ao olhar convencional e redundante
.
Ou nem isso, apenas dissonante
em seqüência imediata à velha face
à cuja imagem bem comportada
todos os olhos se acomodaram
.
Diante do riso o Homem Novo
Por um momento de fraqueza envergonhou-se
Mas logo percebeu que não eram faces que riam
mas outras máscaras ainda não tiradas
.
E removendo do seu ser os últimos resíduos
do Homem Velho que antes fora
abandonou na mesa a vergonha
que a sua face nua já não irradiava
..
Nunca mais retornou àquele bar
e os homens de máscara que ficaram
jamais souberam que algo mudara
senão por um Homem Velho que faltava
[publicado em Falas Breves, nº9, 2021]
[AS ESCRITAS DO TEXTO URBANO - a Cidade como texto]
A aplicabilidade da metáfora da “escrita” à cidade pode incorporar, certamente, diversos sentidos. Existe por exemplo a escrita produzida pelo desenho das ruas, monumentos e habitações - em duas palavras: a escrita arquitetônica de uma cidade. Trata-se de uma escrita sincrônica, que nos fala daqueles que a habitam, e também de uma escrita diacrônica, que nos permite decifrar a “história” da cidade que é lida através dos seus ambientes e da sua materialidade. A cidade em permanente transformação, em muitos casos, vai dispondo e superpondo temporalidades, ao permitir que habitações mais antigas convivam com as mais modernas . Em outros casos, a cidade parece promover um desfile de sucessivas temporalidades, quando deslocamos nossa leitura através de bairros que vão passando de uma materialidade herdada de tempos antigos a uma materialidade mais moderna, nos bairros onde predominam as construções recentes.
É também importante notar que os próprios habitantes reelaboram a escrita de sua cidade permanentemente. Por vezes imperceptível na passagem de um dia a outro, este deslocamento da escrita urbana deixa-se registrar e entrever na longa duração. Os prédios que em uma época eram continentes da riqueza e símbolos do poder, podem passar nesta longa duração a continentes da pobreza e a símbolos da marginalidade. Os casarões do século XIX, que eram habitações de ricos, degeneram-se ou deterioram-se em cortiços, passando a abrigar dezenas de famílias mal acomodadas e a configurar espaço habitacionais marginalizados. Nesta passagem marcada pela deterioração do rico palacete em cortiço miserável, deprecia-se também a imagem externa do bairro e o seu valor imobiliário, de modo que o espaço que um dia configurou uma “área nobre” passa em tempos posteriores a configurar uma zona marginalizada do ponto de vista imobiliário.
Este ‘deslocamento social do espaço’ também acaba por se constituir em uma forma de escrita que pode ser decifrada. As motivações para este deslocamento podem ser lidas pelo historiador: a história da deterioração de um bairro pode revelar a mudança de um eixo econômico ou cultural, uma reorientação no tecido urbano que tornou periférico o que foi um dia central ou um ponto de passagem importante. Ou, ao contrário, pode ocorrer o inverso: um bairro antes periférico ou secundarizado no tecido funcional urbano torna-se, subitamente, valorizado pela construção de um centro cultural, pela instalação de uma fábrica, por uma mudança propícia no eixo viário, pela abertura de uma estação de metrô, ou por diversos fatos de redefinição urbana. .Enfim, de múltiplas maneiras o próprio espaço e a materialidade de uma cidade se convertem em narradores da sua história.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.42-43]
[A CIDADE COMO TEXTO]
Entre as diversas metáforas operacionais que favorecem a compreensão da cidade a partir de novos ângulos, uma imagem que permitiu uma renovação radical nos estudos dos fenômenos urbanos foi a da “cidade como texto”. Esta imagem ergue-se sobre a contribuição dos estudos semióticos para a compreensão do fenômeno urbano, sobretudo a partir do século XX. Segundo esta perspectiva, a cidade pode ser também encarada como um ‘texto’, e o seu leitor privilegiado seria o habitante (ou o visitante) que se desloca através da cidade - seja nas suas atividades cotidianas para o caso do habitante já estabelecido, seja nas atividades excepcionais, para o caso dos turistas e também do habitante que se desloca para um espaço que lhe é pouco habitual no interior de sua própria cidade. Em seu deslocamento, e em sua assimilação da paisagem urbana através de um olhar específico, este citadino estaria permanentemente sintonizado com um gesto de decifrar a cidade, como um leitor que decifra um texto ou uma escrita.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.40].
[O CAMINHANTE E O TEXTO URBANO]
Ao caminhar pela cidade, cada pedestre apropria-se de um sistema topográfico (de maneira análoga ao modo como um locutor apropria-se da língua que irá utilizar), e ao mesmo tempo realiza este sistema topográfico em uma trajetória específica (como o falante que, ao enunciar a palavra, realiza sonoramente a língua). Por fim, ao caminhar em um universo urbano onde muitos outros caminham, o pedestre insere-se em uma rede de discursos - em um sistema polifônico de enunciados, partilhado por diversas vozes que interagem entre si (como se dá com os locutores que se colocam em uma rede de comunicações, tendo-se na mais simples ‘conversa’ um dos exemplos mais evidentes).
Enfim, se existe um sistema urbano - com a sua materialidade e com as suas formas, com as suas possibilidades e os seus interditos, com as suas avenidas e muros, com os seus espaços de comunicação e os seus recantos de segregação, com os seus códigos de trânsito - existem também os modos de usar este sistema. A metáfora linguística do universo urbano aqui se sofistica: existe a língua a ser decifrada (o texto ou o contexto urbano), mas existe também o modo como os falantes (os pedestres e habitantes urbanos) utilizam e atualizam esta língua, inclusive criando dentro deste mesmo sistema de língua as suas comunidades linguísticas particulares (dentro da cidade existem inúmeros guetos, inúmeros saberes, inúmeras maneiras de circular na cidade e de se apropriar dos vários objetos urbanos que são partilhadas por grupos distintos de indivíduos)
]trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.43-44 ].
O CEGO, E O OUTRO QUE VIA
Havia na estrada do mundo
um Cego, e um Outro
que via
O Cego tinha uma estrela
cujo brilho não sabia
A Noite não lhe era um mal
pois não via o que não devia
O Outro tinha três olhos
e pelo excesso sofria
pois via com o olho da sobra
tudo aquilo que não podia
Numa flor via seus átomos
e nessa profundidade desastrada
Toda beleza se perdia
No perfume sentia cheiros
(cada nota em separado)
pelo nariz lúcido e enfermo
que todo aroma dissolvia
E assim, pela estrada do mundo
Ia o Cego, e o Outro que via
O que via indagava a causa
e o Cego gozava o efeito
Sendo feliz porque não via
Contava-se nas estalagens
Por onde a estrada passava
Que Um era a sombra do Outro
E os Dois, partes de um mesmo ser
Cuja felicidade de ver
Somente estava onde não devia
[publicado em Recital, vol.3, nº1, 2021]
[HISTORIOGRAFIA - Definição]
A Historiografia – ou História – pode ser compreendida como o vasto universo de realizações produzidas até hoje por todos os historiadores e autores de História. Neste sentido, a Historiografia é a “História escrita”; de modo que não é à toa que a expressão indica literalmente isto (historio-grafia). Oportunamente, veremos ainda que – se o universo de realizações historiográficas inclui tudo o que já foi produzido em termos de livros de história, artigos ou conferências sobre os mais diversos temas históricos – há muito mais que isto envolvido na ideia de historiografia. Afinal, constituem igualmente realizações historiográficas os próprios sistemas conceituais desenvolvidos pelos historiadores, as metodologias por eles criadas ou empregadas, os diversos paradigmas teóricos que foram por eles construídos coletivamente, as hipóteses levantadas para abordar os diferentes objetos de estudo, e a própria ciência histórica tal como esta é compreendida hoje.
A transformação da História escrita em uma modalidade científica de saber, a partir do trânsito do século XVIII para o XIX, é de fato a maior realização historiográfica de todas. Neste sentido, pode-se dizer que a Historiografia também termina por incluir dentro de si o próprio campo de saber mais específico que tem sido construído pelos historiadores desde os seus primeiros tempos e até o momento contemporâneo: um campo de saber ou disciplina que – ao mobilizar diferentes aportes teóricos e as mais variadas metodologias – estuda a própria história.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "Historiografia e história: todas as relações possíveis" In: A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, p.15].
PINDORAMA CONTRA BRAZIL
Pindorama estava em guerra
Contra um país chamado Brazil
E uma gente vestida em verde
Veio convocar a juventude
Para lutar do lado errado
Aos que não foram, deram um paredão
Uma venda e um pelotão do outro lado
E uma coisa abstrata chamada morte
Mas que talvez não passasse de uma passagem
Para o Campo de Caça Feliz
Aos que foram, deram um fuzil
Prometeram uma medalha e disseram
– Vai, e me traz um índio!
Aquela guerra estava fadada a não terminar nunca
Porque também era a guerra contra os passarinhos
Contra as borboletas, e o que sobrou de ar puro
Para vencê-la, seria preciso matá-los todos
Ou convertê-los à cor cinza
Quanto a mim – este índio civilizado –
Ficarei para sempre no espaço
Intermediário que chamam de limbo
... A floresta, ali não entrarei
A cidade... jamais entrará em mim...
[publicado em Ponto de Vista, vol.10, nª1, 2021]
POR QUE SOU LADRÃO
.
.
Por que sou ladrão?
Esta pergunta me fez
O fiscal da transgressão
.
Senhor, porque estudei...
Como porque estudaste?
Retruca-me o bom fiscal,
Pedindo explicação.
O que estudaste que justifica
Que tu sejas um ladrão?
.
Respondi-lhe, a contragosto:
Economia, História, Meteorologia,
Religião...
Apatetado, sem pouco crer,
Volta-me o fiscal
– Bom fiscal da transgressão:
.
Até a Religião?
Principalmente
A de todo o bom cristão...
Afinal, não esteve junto a Cristo
O bom ladrão?
.
A questão, meu bom fiscal,
Não é se tu és ladrão
Mas se és um bom ladrão
.
Deixemos então em paz
A ciência da religião
Em que a Economia te autoriza
A ser um bom ladrão?
.
Vá lá, meu bom fiscal...
Já ouviste falar
Que a propriedade é um roubo?
Quem o disse foi Proudhon
Mas quem sentiu pela vez primeira:
Foi operário, camponês, escravo
Ou qualquer trabalhador
Sob a clave da exploração.
E ainda acrescento o dito de Lenin,
Profeta da Revolução:
O que é o roubo de um banco
Diante da fundação?
.
Incorrigível Ladrão,
Deixemos a Economia...
Estudaste também a História?
Em que te ajuda, na questão?
.
Ah, meu caro fiscal
Estudei todos os temas
Das guerras ao comércio,
Da realeza à escravidão
Da livre empresa
À colonização.
Seria possível chegar
Partindo-se de um ponto da História
A qualquer outra conclusão?
.
Para! Sinto que não há fim
Se adentrarmos esta ciência.
Também disseste algures,
em teu relatório confuso,
Que foi a Meteorologia
Que te ensinou a ser ladrão?
.
Senhor bom fiscal,
Estudei, como aprendiz,
As propriedades do ar
Cruciais para a respiração
.
Se fosse sólido
Não passava pelo pulmão
Se fosse líquido
Derramava-se no chão
Se tivesse cheiro
Rescendia a poluição
Se fosse visível (preto, talvez)
Virava tudo escuridão
O ar é desse jeito
Porque, segundo creio,
Assim o fez a Criação
.
O ar, no corpo,
Diz algo
Mas espalhado no mundo diz tudo
Fala-nos de tempestades
Explica-nos o tempo bom.
Concentrado ou diluído
Difunde-se enquanto gera
Sua própria distribuição
.
Sim, mas e daí com isso?
Disseste que as propriedades do ar
– Ou compreendê-las –
Fizeram de ti ladrão?
.
É que a certa altura, meu bom fiscal,
Eu flexionei a questão.
Pus-me a perguntar, a certo clarão,
E a certa altura do diapasão,
Não pelas propriedades do ar
Mas pela propriedade do mesmo
Dita no singular
.
Imagina um meliante
Este sim,
O verdadeiro ladrão
(Não como estes, que apenas roubaram
Um litro de leite,
A passagem de um trem,
Uma bala de açúcar,
ou um pedaço de pão)
.
Nosso meliante inventa uma máquina
Capaz de sugar todo ar
E depois o começa a vender
Todo o ar do planeta
A dois reais a ração
.
E a partir daí tem cada vivente
Ao comando de sua mão
Subjugado e indefeso
– Revertido à escravidão!
Diante da propriedade do ar
Não acharias justa e necessária
Uma boa rebelião?
.
E se esta ainda não vem
Não acharias mais justo
Que lhe invadissem a mansão
Para respirar da cruel máquina
O ar roubado pelo mau ladrão?
.
Agora, meu bom fiscal,
Troca o ar pela terra que pisamos,
Pelo tempo de nossas vidas,
Pela saúde arrancada
Ao camponês, de antemão
– Aquele que é explorado de sol a pique
Condenado à velhice, ainda jovem,
Se não morrer de insolação
.
Troca o ar pela própria vida
Do soldado condenado à morte
(Sua e de seus irmãos)
Aquele soldado infeliz
Que ao contrário do General
Não espia a guerra do alto
De um posto de observação
Ali está ele, dormindo em pé,
Condenado a desarmar minas
Quando não é bucha de canhão
.
Ou, por fim, troca o ar
Pelo teu trabalho digno
Já que te fizeram aceitar
(Para não ficar do outro lado)
Ser um fiscal de transgressão
.
Para, chega!! Vai-te embora
Sinto que, se ficas mais um pouco,
Vais me roubar o coração!
A propósito, por curiosidade,
Qual foi mesmo o teu delito?
Dize-me com precisão.
.
E antes de sair,
Olharam-se o bom fiscal
E, claro,
Este que vos fala,
um simples bom ladrão:
.
Roubei
Um pedaço de chão
[publicado em Transgressões, vol.9, nº1]
A REGRA DO ESTADO DE EXCEÇÃO
.
.
A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando lhe invadem as casas
Quando violentam as suas intimidades
Quando lhe pedem documentos com aquela cara
De “tu és ladrão”
.
A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando não lhe deixam sair mais com a sua cor predileta
Quando a fuzilam – primeiro com os olhos –
Por causa de suas opiniões
.
Também percebe a ditadura, a Boa Classe Média,
Quando lhe dirigem preconceitos de cor
Apesar dos seus ternos cuidadosamente engomados
Agora, suas mulheres ouvem piadas
E o assédio dos chefes foi liberado.
Seus filhos são preteridos,
quando tentam entrar para certas universidades,
pois estas são destinadas aos de maior patente
.
.
A Boa Classe Média só percebe as ditaduras
Quando arrombam a porta de suas casas
Quando mancham de fardas policiais o seu lar
Quando lhe despejam o arrogante arbítrio
Como um balde gelado de água
Quando lhe tiram o emprego sem aviso prévio
.
.
Já os pobres, estes mal percebem as ditaduras,
Pois já fazem todas essas coisas com eles
Durante todo o tempo
[publicado na revista Nós, vol.2, nº3, 2021].
[CORPORATIVISMO NA HISTORIOGRAFIA]
Embora ocasionalmente um certo sentimento corporativo leve alguns dos historiadores de formação – ou seja, aqueles que se graduaram em História em uma universidade – a apenas considerarem como historiografia aquilo que foi produzido pelos historiadores profissionais e graduados, não vejo nenhum problema em que também consideremos como historiografia as obras produzidas por historiadores não-especializados. Há muitas maneiras de nos aproximarmos adequadamente, e de modo sério, de um determinado campo de saber, que não necessariamente através dos bancos escolares superiores. Dito isto, é claro que aqueles que pretendem escrever História sem terem se formado em História – se desejarem realmente escrever algo relevante e bem aceito na área – precisarão se aproximar seriamente do modus operandi dos historiadores, dos procedimentos bem aceitos no campo, das suas metodologias, dos seus modos de trabalhar conceitualmente evitando deslizes que são muito comuns entre aqueles que não estão efetivamente familiarizados com a ciência histórica.
[trecho extraído de BARROS, José D'Assunção. "Historiografia: todas as relações possíveis" In: A Historiografia como Fonte Histórica. Petrópolis: Editora Vozes, 2022, p.17].