Joaquim Cesário de Mello
Do dilúvio onde se afoga o tempo
salvei o trigésimo minuto
da décima-primeira hora
do dia que já não me lembro
O calendário da memória
não é feito de algarismos ou datas
mas de machucados, feridas
e instantes arrebatados
Se hoje passei pela tarde
foi porque ela estava lá
Se depois de amanhã não morrer
foi porque eu não estava lá
Se amanhã um dia você voltar e quiser me encontrar, volte para o ontem, pois no hoje já não estou mais no mesmo lugar.
Tenho mais lembranças do meu passado do que de ontem.
Talvez o ontem esteja perto demais para ser lembrado.
Se soubesse antes
que meu ontem hoje ia acabar
transformaria ele em memória
e me lembraria agora o que comi
no café da manhã
no almoço e no jantar
Quanto mais distante o passado se encontra do calendário, mais ele se encontra bem próximo da superfície da memória presente
Há algo de similar entre vampiros e poetas. Enquanto os vampiros sugam o sangue que corre nas carnes vivas, os poetas sugam versos que pulsam no sangue da vida
Quando chegar
a mais certa das horas incertas
vou ficar no lado de dentro do espelho
apenas para poder me ver indo embora
Que procura ouvido, deve manter a boca aberta.
Quem não precisa de ouvido, pode deixar a boca fechada.
Ouço com o ouvido direito, escuto com o ouvido esquerdo.
Todas as bocas têm sempre, no mínimo, duas falas.
DOMINGOS
Ruas deitadas sobre o chão dos domingos
descançam do pisotear das multidões
que no atravessar corrido das esquinas
são indiferentes aos seus sentimentos
Vou revisitar meu baú de ossos
explorar todas minhas lembranças
esmiuçar os cantos e recantos da memória
pois um dia até ela haverá de não existir
O HOJE ANTES DO AMANHÃ
Não vou esperar
as formigas em tua boca
carcomerem tua história,
hoje prefiro-te como agora:
incompleta imperfeita e inconcluída