Hilda Gomes Dutra Magalhães
Visto uma blusa de frio para não tremer de solidão. Gostaria de ver o arco-íris, mas não chove. O tempo continua seco como eu mesmo. Se pudesse escolher, teria nascido no nordeste. Aqui, é julho-inverno-verão." (Estranho na noite, romance, 1988)
Dora constrói pirâmides. Uma de ovos, outra de queijo, uma de açúcar, outra de farinha de trigo. Dora, como mãe Rosa, como todos, vem de milênios e é quase feliz." (Estranhos na noite, romance, 1988)
A partir dos doze, comecei a sonhar outras coisas: sonhos. Mas eram pequenos desmaios. E já estão tão distantes de mim que não são mais meus. Gostaria mesmo era de pisar um carpete peludo, todo azul e rolar por vinte anos." (Estranhos na noite, romance, 1988)
A noite chega calma, infinita. Tem-se a impressão de que as as pessoas e os demais seres viventes não suportarão o peso das estrelas. " (Estranhos na noite, romance, 1988)
Chorei três dias e três noites. Vó Margarida enchia meus ouvidos de algodão. O quarto era infinitamente escuro e frio e eu usava carapuça de babadinhos. Mas não durei mais do que sete dias. Mãe Rosa chorou uma lágrima meio azul, comeu uma pratada de sopa de galinha, roeu bem os ossinhos e dormiu um dia e uma noite. Então me colocaram numa caixa de sapatos, vestidinha de anjo. Enterraram-me no fundo do quintal." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Gritos de palavras desmoronando.
Retomo a caneta, o livro. Terei cochilado novamente?! As palavras ainda despencam abismo abaixo. A frase fica sofrivelmente incompleta, o que poderia fazer para restaurá-la? Sinto uma pequena pontada no cérebro, nos rins ou no coração. Quantas pílulas já terei tomado? As palavras continuam a cair no vácuo, a caneta impotente. O escritor é um árduo caçador de palavras e ideias. São caças ariscas e perigosas, ma o escritor sabe que não pode fugir a elas. É um perigo quase suicida ser escritor! Às vezes, as caças fogem pelos saltimbancos e são encontradas na Austrália ou no Pólo Norte a duzentos pesos o quilo. Ou não são encontradas nunca, vão para a Atlântida." (Estranhos na noite, romance, 1988)
A poesia nada salva. Nem mesmo ao pobre poeta. Nem a si própria. (...) O que salva o mundo é a bomba, é o dinheiro! A bomba e o dinheiro matam ou salvam o mundo. A Poesia não tem a força do átomo. Não mata. Não pode salvar também! Nem como catarse serve, nem como realização pessoal. Cada frase é o rascunho da próxima, cada livro é o rascunho de um outro, cada escritor é o rascunho de um novo escritor! E todo livro é divino e repugnante!" (Estranhos na noite, romance, 1988)
Sou e não sou escritor. Escritor é todo aquele que já fez uma frase de pura literatura ou imaginou tê-la feito. Entre estes e os consagrados, pouca ou nenhuma diferença existe. Cada frase é o mesmo desafio para todos, e cada livro é um grito suicida do qual nunca se sabe se se salva" (Estranhos na noite, romance, 1988)
Acaso pensam que lua e sol jamais se encontram? É só porque existir dói: é preciso ser plenamente humano ou mais que isso. Não inventaram o remédio para a morte, ainda não..." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Descobri na segunda página que escrevendo o livro sou um semideus. Aliso as pessoas, abraço-as, sou-lhes um beijo furtivo ou espezinho-as vagamente, esmago-as quando quero. É o meio mais palpável de amá-las, odiá-las, matá-las sem que eu sofra qualquer prejuízo por isso. Todas essas catástrofes juntas e o mundo nada sente, continua igual, esta é a minha mágica e meu desespero." (Estranhos na noite, romance, 1988)
O escritor já nasce escritor, cresce escritor e não morre nunca!" (Estranhos na noite, romance, 1988)
O escritor já nasce escritor, cresce escritor e não morre nunca. É uma entidade escorrente. Às vezes, dá a impressão de ser uma folha, um balde, uma borboleta. Mas ele nunca se confunde com as outridades: é o escritor! Não pergunta muito, ele sabe até onde perguntar, porque suas perguntas não se reduzem a perguntas. Não responde tudo, o que não significa que ele minimiza as pessoas. É que ele entende a eficácia que é o silêncio." (Estranhos na noite, romance, 1988)
As letras, elas tremem. Um cair de letras, e vejo tudo vazio quanto antes. (Estranhos na noite, romance, 1988)
Ouço os passos de mãe Rosa, incessantes, invadindo a noite desdentada. Passos de mãe Rosa. Ainda quando morrer, ficarão os seus passos. Mãe Rosa na sua labuta alegre durante os dias intermináveis, os passos noturnos de rumos imprevisíveis e inacabáveis... Não saberia quantas vidas ou quantos desesperos ocultam esses passos."
Abro os olhos, o coração aos pulos. A vela quase toda queimada dentro do pires. A caneta presa à mão, com desespero. O caderno caído. As palavras... As palavras haviam escorregado, escorregado, até caírem da margem direita, irremediavelmente perdidas. Estendo as mãos, consigo pegar algumas que ainda não haviam despencado no abismo. Sinto sede. Preciso engolir as palavras." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Como calcular a real importância do escritor? Valeria mais que um padeiro? Que um médico? RECEITAS DE MÃE ROSA. Não, não. O escritor e o idiota são uma coisa só. O mesmo espanto, a mesma confusão de significados." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Meu pai... Ah, meu pai. Meu pai era assim: um homem deitado numa pilha de travesseiros. Lembro-me ainda de que ele era uma imensa pessoa, vermelha e inchada, espirrando sangue e chamando pela neném. Jeruza tinha dez meses e então traziam-na para o quarto. Mal via papai, a menina abria a boca no mundo e os dois enchiam o quarto de choro e sangue até quase se afogarem. Era um rio de borbulhas quentes e fétidas. uma vez, fui surpreendido pelas suas águas e só não me afoguei porque alguém me puxou pelos cabelos e soprou-me os lábios. Duvida? Não tem problema, livro aceita tudo. E que importância tem se, quase trinta anos depois, resolvo passar um rio de águas e borbulhas vermelhas bem no quarto de papai?! O tempo faz-nos perder coisas, mas dá-nos obter outras". (Estranhos na noite, romance, 1988)
Fiquei apreensivo ao pegar a nova caneta, eu sabia que esta, esta me venceria. E sobrariam canetas, folhas, palavras, vidas. E o leitor, o sapo, teria de construir o que faltasse, pobre leitor, um escritor em extensão. Sofredor também." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Ser escritor deve ser algo mais que um simples espirrar de palavras. Aliás, tenho algo de escritor: terríveis olheiras, minhas olheiras estão pavorosas. Um jeito esquisito, jeito de anjo ou desesperado. Tenho alguma coisa que é quase ódio, quase orgulho de mim mesmo." (Estranhos na noite, romance, 1988)
Método de escrever: falo de mim mesmo até quando falo dos outros. Quando fico cansado, páro. Não releio o que escrevo. Para não ter vômitos. Por não ter tempo. (...) Engulo as vírgulas como se fossem purê de batatas. A tais alturas, pouco interessa escrever bem, interessa escrever. Depois, é muito difícil saber o que é escrever bem". (Estranhos na noite, romance, 1988)
Cada século apresenta no máximo dois ou três grandes originais. O resto não é plágio, mas redundâncias de um gênio". (Estranhos na noite, romance, 1988)
O crítico é um investigador, um Sherlocky Holmes. Bem que gostaria que ele descobrisse quem era o defunto do Seminário, o que eu apalpei no corpo do Cristo. Mas ele é um tonto. A culpa não é dele, é daquela luneta que ele usa, como se fosse astrônomo, como se caçasse estrelas. O que eu conheci era de artes plásticas. E tinha a sensibilidade de um hipopótomo! Mas eu queria um crítico assim: que pusesse Tomé na cadeia por causa de Faropa, que torpedeasse o navio de Padre Souza, lógico que ele vai para Roma num cruzeiro! E que fizesse tudo aquilo que eu não fiz. Por exemplo: não deixar mãe Rosa envelhecer." (Estranhos na noite, romance, 1988)
A festa vai começar nas horas redondas do tempo. Confraternização dos aprendizes. E as pessoas se abraçam, Luíza, Ulisses, Beatriz, Iracema, Moacir, Capitu, Lóri, dianas, apolos, júpiteres, primeira vez se vendo, chineses renascidos em vitória. Na noite estranha, surreal quanto a própria terra, a harmonia dos plurais. Festejar é o destino de todos. O canto e a felicidade são nosso fim." (Herança, romance, 2002
Não, não é fácil escolher as palavras, ora atropelo umas, ora atropelam-me outras, quando vejo, estou lá na frente ou cá atrás, no meio de um deserto assassino. Desespero-me, deixo lacunas, gritos, medos... Bolas!" (Estranhos na noite, romance, 1988)