Hilda Gomes Dutra Magalhães
O que teria esse voo que, de tão inteiro, nem existe? Essa imagem que, de tão completa e íntegra, se desintegra? Esses traços que, de tão delicados e firmes, nada sabem do real e do sublime?" O último verão em Paris, crônicas, 2000
Que mistérios podem existir na planitude que sustenta essa imagem, que, de tão ordinária, é síntese de todas as mandalas, essa simetria líquida transparente de leque e luz? Que segredos teria essa ave, tão de novo e de velho nascida, de louvre e lavra tecida numa primavera parisiense? Que filigranas de inéditas emoções e sensações escondem essas penas que tingem o voo e nos ofuscam a dor?" O último verão em Paris, 2000
Saio do metrô e me deparo com a coreana contemplativa diante de um 'affiche' do Rio de Janeiro, também me aproximo, outras pessoas se interessam, somos agora um pequeno grupo de curiosos reparando, da Gare de Montparnasse, o enorme Cristo redentor de braços abertos para a cidade maravilhosa, o mar muito azul e quente soprando na nossa cara, um cheirinho bom de maresia, cadê as favelas que estavam aqui?, o rio levou, a nuvem apagou." O último verão em Paris, 2000
Se o poeta também vacila, a culpa será mesmo dele ou do arquiteto que empilhou a primeira pedra de demônios e góticos escondida, de infinitos umbrais e vácuos, e mistérios, e preces, para lá e para cá do Sena, esse souvenir de mares, ilíadas e odisséias de mil deuses, de mil dias, de mil anos?" O último verão em Paris, crônicas, 2000
A bandeira da nova Europa tremula nos campos de Bruxelas e na Champs Elysées, e de giro e de sustos é o nosso globo de cada dia, ah se esta rua, se esta rua fosse minha... o globo gira, gira, e nesse rodopio já não sei mais para onde escorre o Rio, se para o sul ou para o norte, cadê a Sorbonne que estava aqui, e a Amazônia, onde foi parar?" O último verão em Paris, crônicas, 2000
Refeito o texto, o texto refeito, nunca o mesmo, jamais o mesmo, lembrança remota daquele que o escuro engoliu, que a Idade Média abafou, que o ecran apagou, um grande vácuo que a presença da lembrança exige preencher. Como reconstruir a emoção que se perdeu, se, depois de esvaziada e diluida na imensa tela azul, nada mais resta do que susto, fragmento e vácuo? Se a única coisa que realmente vale a pena é esse passo pleno que vejo, tingido de todas as cores, de todas as raças, de todas as pessoas, cruzando as ruas de Montparnasse?" (O último verão em Paris, 2000)
Nada mais contraditório do que ler Camus num domingo assim tão pleno." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Aqui na Terra tudo vai bem. Bem. E hoje, excepcionalmente, não temos vertigem." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Nada existe e tudo existe, a música cada vez mais forte, cada vez mais forte, abafando a morte e me distraindo da minha leitura." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
O que pode me dizer essa profundeza de líquido e de nuances que se apagam na fluidez do olhar? Tento mais uma vez recuperar, em vão, a resposta no ecran cristalino, mas perdido para sempre está o texto, sugado que foi pelo buraco negro. Tento redescobrir os vestígios do texto que se perdeu, mas, ante a mudez do computador, eis-me jogada na Idade Média, sem cartilha e nem estilo, a correspondência em atraso, ai, ai, ai... preciso reaprender os rumos que o lápis tem: "Paris, 30 de março de 2000"...(O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Entre uma cena e outra, o abismo do tempo que passa e a necessidade de reconstrução de um projeto sem nome. A ausência do texto de novo me incomoda, procuro o texto que passa, a profundeza da estrutura reclamando a sua presença, cadê o texto que estava aqui? O escuro escondeu, ai, ai, ai..."(O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Essas ondas que batem no casco, com seu riso encantatório, anulam, machucando os ouvidos, as franjas do tempo e dos dias. Esfrego os olhos para ver além do Tejo, para lá o que que há? Ah, que quero espichar o mapa para avistar a direção, mas a bússola é dificil e o mar, árido". (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Essas ondas que batem no casco, com seu riso encantatório, anulam, machucando os ouvidos, as franjas do tempo e dos dias". (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Vai, Atlântico, nos devolva o canto e leve essa nau, dessa vez para o rumo certo, pois, ai, ai, ai, quem tem um machado afiado, madeira de lei, precisa de quê?, quem tem um manoel dado a barros, precisa de quê?, quem tem pernas dadas à dança, pés com vocação para bola, precisa de quê?"
Gira o mundo e o mundo gira, e se nauseada estou, se o buffet está preparado, se a festa já começou, de que adianta se a torre agora faz farol bem no meio de Paris, se no Mediterrâneo é meia-noite, se o dia é cinza, se as vagas são fortes e a noite, longa? Abro uma champagne e, nessa noite de turbulência e festa, do mesmo escuro são noite e mar. No meio do ocenao, de magia é esse balanço que estremece o líguido gelado e efervescente no fundo da taça, de céu e inferno feita a noite de esquecimento, esse décor mediterrâneo no centro de todos os mundos, de infinitas profundezas, texturas e escuridões." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Abro uma champagne e, nessa noite de turbulência e festa, do mesmo escuro são noite e mar." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
O mesmo escuro engolindo o barquinho de papel, luminosidade de sonho resistindo ao tempo e à história, erramos todos nesses iguais mares gregos, mergulhados nas águas de todos os deuses, de todas as vertigens, de todas as profundezas, de todos os azuis e luminosidades, levando dentro de nós todas as vagas, todos os mares, todas as tempestades e todas as armadilhas, todos os cantos e desencantos, mas que posso fazer se não temos nem as amarras de Ulisses, menos ainda sua astúcia, se contraio nessa maresia de milênios todas as quedas e todos os limites do susto e do riso?" (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Os quatro globos estão enfim colocados no lugar. Firmes como de resto todos os outros quadros da exposição, firmes como pode ser o grito assustador de paredes, mas sabemos, cada um de nós, que eles tremem, imperceptivelmente tremem, e, no dia seguinte, alguma coisa fatalmente estará fora de lugar". (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Nessa longa noite do esquecimento dickeana, esse sol que me alumia é fora de hora, e é lento e é morno, mas, de qualquer modo, bem que esquenta, se eu quero. Procuro o bistrot, mas nem ele é bar e nem é cuiabano, e depois a poeira do Egito me agride, exigindo que eu aperte muito os olhos para bem olhar. Cairo exibe suas formas sem graça, austeras, feias, a cidade plena de fantasmagorias que as luzes nas cumeeiras dos prédios sem vida não conseguem dissimular. O mar de novo me espera, nessa enorme noite das horas sem canto, das horas sem dobras, das horas em aro, no mediterrêneo de todos os pesadelos, de todos os pecados e de todos os sonhos, meu barco bem que é azul e branco da cor dese meu céu." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Nessa longa noite do esquecimento dickeana, esse sol que me alumia é fora de hora, e é lento e é morno, mas, de qualquer modo, bem que esquenta, se eu quero." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
Procuro o bistrot, mas nem ele é bar e nem é cuiabano, e depois a poeira do Egito me agride, exigindo que eu aperte muito os olhos para bem olhar. Cairo exibe suas formas sem graça, austeras, feias, a cidade plena de fantasmagorias que as luzes nas cumeeiras dos prédios sem vida não conseguem dissimular. O mar de novo me espera, nessa enorme noite das horas sem canto, das horas sem dobras, das horas em aro, no mediterrêneo de todos os pesadelos, de todos os pecados e de todos os sonhos, meu barco bem que é azul e branco da cor dese meu céu." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
O mar de novo me espera, nessa enorme noite das horas sem canto, das horas sem dobras, das horas em aro, no mediterrêneo de todos os pesadelos, de todos os pecados e de todos os sonhos, meu barco bem que é azul e branco da cor dese meu céu." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
No metrô escuto ainda os últimos acordes de Notre Dame de Paris, ao longe os debates da Comunidade Européia se intensificam, os programas para o réveillon 2000 estão agora francamente em todos os affiches, todos os souvenirs, todos os cinemas, todos os horários da tevê, apocalipses para todos os gostos e crenças, dentro dos metrôs desenvolve-se, pouco a pouco, uma cultura de quarto mundo, une petite pièce, juste pour vivre, merci, merci... E a cada giro que o mundo dá, caem francos, caem, caem pesetas, caem, caem marcos, caem, caem liras, caem, caem florins, caem, oi, oi, balão, cai, cai aqui bem na minha mão, ai, ai." (O último verão em Paris, crônicas, 2000)
O escritor já nasce escritor, cresce escritor e não morre nunca". (Estranhos na noite, romance, 1988)
As palavras... As palavras haviam escorregado, escorregado, até caírem da margem direita, irremediavelmente perdidas. Estendo as mãos, consigo pegar algumas que ainda não haviam despencado no abismo. Sinto sede. Preciso engolir as palavras." (Estranhos na noite, romance, 1988)