Guimarães Rosa
X. Sequência:
“Suas duas almas se transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoices: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se”
Conto narrado em terceira pessoa e tematiza a predestinação, o destino e o acaso.
Uma vaca de propriedade de seu Rigério foge da fazenda da Pedra e atravessa o sertão. A vaca não fugiu por acaso; fugiu por amor às suas raízes, sua “querência”, a fazenda do Pãodolhão.
Ela conhecia “o seu caminho” e estava determinada a chegar ao seu destino.
O filho de Seo Rigério prontifica-se a encontrar a vaca e trazê-la de volta.
A vaca faz o “um caminho de volta”, enquanto o vaqueiro que a persegue caminha “de oeste para leste”, chegando a perder o rastro três vezes, pois ela entrara no riacho para despistar o moço.
Por onde a vaca passava, as pessoas tentavam detê-la, mas ela escapava sempre.
À noite, o moço segue a sua busca orientando-se pelo brilho das estrelas e refletindo “aonde o animal o levava”.
A vaca chegou à fazenda Pãodolhão, atravessou a porteira-mestra dos currais, estava de volta à sua origem, cumprira o seu destino. O rapaz chega e apressa-se a subir a escada da casa-fazenda do Major Quitério e desculpar-se pelo inconveniente.
Lá, o rapaz é bem recebido. Major Quitério tinha quatro filhas. O moço apaixona-se pela segunda das filhas do Major Quitério, a mais alta, alva e mais amável. Deu-lhe de presente a vaca, já que ela era a condutora de sua travessia e de seu destino e entrega a moça “o anel dos maravilhados”.
Para Alfredo Bosi, “a trajetória das personagens exercita a noção de que o direito do livre arbítrio, possível para a vaca, é imprescindível para o homem, pois quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.”
Dando, porém, passo atrás: nesta representação de "cano": - É um buraco, com um pouquinho de chumbo em volta..." - espritada de verve em impressionismo, marque-se rasa forra do lógico sobre o cediço convencional.
Mas, na mesma botada, puja a definição de 'rede': - 'Uma porção de buracos, amarrados com barbante..." - cujo paradoxo traz-nos o ponto-de-vista do peixe”
Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho q sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam.
Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. (...) Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão.
Quantas mangas perfaz uma mangueira, enquanto vive? - isto, apenas. Mais, qualquer manga em si traz, em caroço, o maquinismo de outra, mangueira igualzinha, do obrigado tamanho e formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o Infinito. E cada mangueira dessas, e por diante, para diante, as corações-de-boi, sempre total ovo e cálculo, semente, polpas, sua carne de prosseguir, terebintinas.
Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.
Até hoje, para não se entender a vida, o que de melhor se achou foram os relógios. É contra eles, também, que temos que lutar...
Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!
O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.
O que é o medo? Um produzido dentro da gente, um depositado; e que às vezes se mexe, sacoleja, e a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é fornecendo espelhos. A vida é para esse sarro de medo se destruir, jagunço sabe. Outros contam de outra maneira.
(Grande sertão: veredas)
Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho de Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente.
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa