Frantz Fanon
Os serviços secretos colonialistas, que não depuseram as armas depois da independência, fomentam o descontentamento e chegam inclusive a criar graves dificuldades aos jovens governos.
O colonialismo tenta às vezes diversificar, desarticular o ímpeto nacionalista. Em vez de incitar os xeiques e os chefes contra os “revolucionários” das cidades, os serviços ligados a assuntos nativos organizam as tribos e as confrarias em partidos. Diante do partido urbano que começava a “encarnar a vontade nacional” e a se tornar um perigo para um regime colonial, surgem pequenos grupos, tendências, partidos de base étnica ou regionalista. É a tribo inteira que se converte em partido político, aconselhado de perto pelos colonialistas. A mesa-redonda pode começar. O partido unitário se afogará na aritmética das tendências. Os partidos tribais se opõem à centralização, à unidade, e denunciam a ditadura do partido unitário.
Mais tarde, essa tática será utilizada pela oposição nacional. Dentre os dois ou três partidos nacionalistas que lideraram a luta de libertação, o ocupante fez sua escolha. As mutualidades dessa escolha são clássicas: quando um partido reuniu a unanimidade nacional e se impôs ao ocupante como único interlocutor, o ocupante multiplica as manobras e protela ao máximo as negociações. Esse atraso será usado para reduzir as exigências desse partido a migalhas, ou então para obter da direção o afastamento de certos elementos “extremistas”.
Se, ao contrário, nenhum partido se impõe de fato, o ocupante contenta-se em privilegiar aquele que lhe parece o mais “razoável”. Os partidos nacionalistas que não participaram das negociações passam, então, a denunciar o acordo firmado entre o outro partido e o ocupante.
A tática e a estratégia se confundem. A arte política transforma-se simplesmente em arte militar. O militante político é o combatente. Fazer a guerra e fazer política são uma única e mesma coisa.
O colonialismo vai igualmente encontrar no lumpemproletariado uma massa de manobra considerável. Por isso, todo movimento de libertação deve prestar o máximo de atenção nesse lumpemproletariado. Este sempre responde ao chamado da insurreição, mas se a insurreição acredita poder prosperar ignorando-o, o lumpemproletariado, essa massa de famintos e desclassificados, se lançará na luta armada, participará do conflito, dessa vez ao lado do opressor. Este, que nunca perde uma oportunidade de jogar os negros uns contra os outros, se servirá, com rara felicidade, da inconsciência e da ignorância que são as deficiências do lumpemproletariado. Essa reserva humana disponível, se não for imediatamente organizada pela insurreição, acabará como grupo de mercenários ao lado das tropas colonialistas.
O colonizado deve se persuadir de que o colonialismo não lhe dá nada de graça. O que o colonizado obtém por meio da luta política ou da luta armada não é o resultado da boa vontade ou do bom coração do colono, e sim traduz a impossibilidade de se protelar as concessões. Mais do que isso, o colonizado precisa saber que não é o colonialismo que faz essas concessões, mas ele próprio. Quando o governo britânico decide outorgar à população africana alguns assentos a mais na Assembleia do Quênia, é preciso muito cinismo ou ignorância para presumir que o governo britânico fez concessões. Ninguém vê que é o povo queniano quem faz concessões? É preciso que os povos colonizados, que os povos que foram espoliados abandonem a mentalidade que os caracterizou até agora. O colonizado pode no máximo aceitar um compromisso com o colonialismo, mas nunca um comprometimento.
A história nos ensina que o combate anticolonialista não se inscreve de imediato numa perspectiva nacionalista. Por muito tempo o colonizado dirige seus esforços para a supressão de determinadas iniquidades: trabalho forçado, sanções corporais, desigualdade salarial, restrições dos direitos políticos etc. Esse combate em prol da democracia contra a opressão do homem vai progressivamente afastar-se da confusão neoliberal universalista para desembocar, por vezes com muito esforço, na reivindicação nacional. Ora, o despreparo das elites, a ausência de ligação orgânica entre elas e as massas, sua indolência e, digamos também, a covardia no momento decisivo da luta estarão na origem de desventuras trágicas.
A consciência nacional, em vez de ser a cristalização coordenada das aspirações mais íntimas do conjunto do povo, em vez de ser o produto imediato mais palpável da mobilização popular, será sempre apenas uma forma sem conteúdo, frágil, grosseira. As falhas que aí são descobertas explicam amplamente a facilidade com que, nos jovens países independentes, passa-se da nação à etnia, do Estado à tribo. São essas fissuras que demonstram os recuos tão penosos e tão prejudiciais ao desenvolvimento nacional, à unidade nacional. Veremos que essas fragilidades e os graves perigos que elas encerram são o resultado histórico da incapacidade da burguesia nacional dos países subdesenvolvidos para racionalizar a práxis popular, ou seja, para extrair sua razão.
Em seu aspecto decadente, a burguesia nacional será consideravelmente ajudada pelas burguesias ocidentais, que se apresentam como turistas amantes do exotismo, das caçadas, dos cassinos. A burguesia nacional organiza centros de repouso e de lazer e terapias de prazer destinados à burguesia ocidental. Essa atividade adotará o nome de turismo e será equiparada, nesse caso, a uma indústria nacional. Se quisermos uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu na América Latina. Os cassinos de Havana, da Cidade do México, as praias do Rio, as garotas brasileiras, as garotas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana são estigmas dessa depravação da burguesia nacional. Por não ter ideias, por estar fechada em si mesma, apartada do povo, minada pela incapacidade congênita de pensar o conjunto dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional vai assumir o papel de gerente das empresas do Ocidente e praticamente organizar seu país como lupanar da Europa.
Mais uma vez, é preciso ter diante dos olhos o espetáculo lamentável de determinadas repúblicas da América Latina. Depois de um voo rápido, os homens de negócios dos Estados Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas desembarcam “nos trópicos” e de oito a dez dias mergulham na doce depravação que suas “reservas” lhes oferecem.
O comportamento dos proprietários de terras nacionais praticamente se identifica com o da burguesia das cidades. Os grandes agricultores exigiram, a partir da proclamação da independência, a nacionalização das propriedades agrícolas. Com o auxílio de uma série de negociatas, conseguiram se apropriar das fazendas antes pertencentes aos colonos, reforçando assim seu domínio sobre a região. Mas eles não tentam renovar a agricultura, intensificá-la ou integrá-la numa economia de fato nacional.
Na verdade, os proprietários de terras nacionais vão exigir do poder público que multiplique, em proveito deles, as facilidades e os privilégios que antes beneficiavam os colonos estrangeiros. A exploração dos trabalhadores agrícolas será reforçada e legitimada. Manipulando dois ou três slogans, esses novos colonos vão exigir dos trabalhadores agrícolas uma labuta enorme, evidentemente em nome do esforço nacional. Não haverá modernização da agricultura, nem plano de desenvolvimento, nem iniciativas, pois as iniciativas, que implicam um mínimo de risco, provocam pânico nesses meios e desnorteiam a burguesia fundiária, hesitante, prudente, que submerge cada vez mais nos circuitos instaurados pelo colonialismo. Nessas regiões, as iniciativas são próprias do governo. O governo é que as decide, estimula, financia. A burguesia agrícola recusa-se a assumir o menor risco. É contra a aposta, a aventura. Não quer trabalhar na incerteza. Exige o sólido, o rápido. Os lucros que embolsa, enormes, considerando a renda nacional, não são reinvestidos. Uma poupança economizada domina a psicologia desses proprietários de terras. Por vezes, sobretudo nos anos que se seguem à independência, a burguesia não hesita em confiar a bancos estrangeiros os lucros que aufere do solo nacional. Por outro lado, grandes quantias são utilizadas para fins de ostentação, em carros, em casas suntuosas, em todas as coisas bem descritas pelos economistas como características da burguesia subdesenvolvida.
Dissemos que a burguesia colonizada que ascende ao poder emprega sua agressividade de classe para se apossar dos cargos anteriormente ocupados pelos estrangeiros. De fato, logo após a independência, ela se choca com as sequelas humanas do colonialismo: advogados, comerciantes, proprietários rurais, médicos, funcionários de alto escalão. Vai lutar impiedosamente contra essa gente “que insulta a dignidade nacional”. Acena energicamente com as noções de nacionalização dos quadros, de africanização dos quadros. Com efeito, seu comportamento vai se caracterizar cada vez mais pelo racismo. Brutalmente, ela apresenta ao governo um problema claro: precisamos desses cargos. E só deixará de manifestar seu ressentimento quando tiver ocupado todos eles.
Por sua vez, o proletariado das cidades, a massa dos desempregados, os pequenos artesãos, aqueles que exercem os chamados pequenos ofícios se situam a favor dessa atitude nacionalista, mas sejamos justos: eles apenas copiam a atitude da burguesia. Se a burguesia nacional entra em competição com os europeus, então os artesãos e os pequenos ofícios começam a lutar contra os africanos não nacionais.
É nessa perspectiva que é preciso interpretar o fato de que, nos jovens países independentes, triunfe aqui e ali o federalismo. Como se sabe, a dominação colonial privilegiou determinadas regiões. A economia das colônias não está integrada ao conjunto da nação, está sempre disposta em relações de complementaridade com as diferentes metrópoles. Quase nunca o colonialismo explora a totalidade do país. Ele se contenta em adequar os recursos naturais que extrai e exporta para as indústrias metropolitanas, permitindo assim uma relativa riqueza territorial, enquanto o resto da colônia mantém, ou aprofunda, seu subdesenvolvimento e sua miséria.
As denominações de substituição – África ao sul ou ao norte do Saara – não conseguem ocultar esse racismo latente.
Como vemos, as carências da burguesia não se manifestam unicamente no plano econômico. Tendo chegado ao poder em nome de um nacionalismo limitado, em nome da raça, a burguesia, a despeito de declarações muito bonitas na forma, mas completamente desprovidas de conteúdo, manejando numa completa irresponsabilidade frases que saem em linha direta dos tratados de moral e de filosofia política da Europa, vai demonstrar sua incapacidade de fazer triunfar um catecismo humanista mínimo. A burguesia, quando é forte, quando dispõe o mundo em função de seu poderio, não hesita em afirmar ideias democráticas de pretensão universalizante. É preciso que essa burguesia economicamente sólida sofra condições excepcionais para ser forçada a não respeitar sua ideologia humanista. A burguesia ocidental, embora seja fundamentalmente racista, consegue, na maioria das vezes, mascarar esse racismo ao multiplicar suas nuances, o que lhe permite conservar intacta sua proclamação da eminente dignidade humana.
A burguesia ocidental instalou barreiras e grades suficientes para não temer de fato a competição daqueles que ela explora e despreza. O racismo burguês ocidental em relação ao negro e ao bicot é um racismo de desprezo; é um racismo que minimiza. Mas a ideologia burguesa, que é a proclamação de uma igualdade de essência entre os homens, empenha-se em permanecer lógica consigo mesma, convidando os sub-homens a se humanizarem por meio do tipo de humanidade ocidental que ela encarna.
O racismo da jovem burguesia nacional é um racismo de defesa, um racismo baseado no medo. Não difere essencialmente do tribalismo vulgar, e até das rivalidades entre çofs e confrarias.
Nesses países pobres, subdesenvolvidos, nos quais, segundo a regra, a maior riqueza está ao lado da maior miséria, o Exército e a polícia são os pilares do regime. Um Exército e uma polícia que, mais uma regra a ser lembrada, são assessorados por especialistas estrangeiros. A força dessa polícia, o poder desse Exército são proporcionais ao marasmo em que está mergulhado o resto da nação. A burguesia nacional se vende cada vez mais abertamente às grandes empresas estrangeiras. Por meio de prebendas, as concessões são obtidas pelo estrangeiro, os escândalos se multiplicam, os ministros enriquecem, suas mulheres transformam-se em cocotes, os deputados vão se ajeitando e, do policial ao agente alfandegário, todos participam dessa grande caravana da corrupção.
A oposição torna-se mais agressiva e o povo capta nas entrelinhas sua propaganda. A partir de então, a hostilidade em relação à burguesia é manifesta. A jovem burguesia que parece acometida de senilidade precoce não leva em conta os conselhos que lhe são dados e se revela incapaz de compreender que seria de seu interesse encobrir, ainda que ligeiramente, sua exploração.