Carolina Pires
- Aquele rodízio de carnes não mais me satisfaz. Prefiro à la carte.
- Mas eu ainda uso os mesmos velhos lençóis com teu cheiro de fumo, conhaque, menta, sangue e esperma.
Saudade, fogo; silêncio, verdade. Vício. Um viajar na madrugada de sombras violeta sem palavra-espelho. Deserto. Amarela era a rosa. A sola da sandália na água do rio do bosque de árvore e poeira, muita poeira. Mescla morte, guerrilha e neve. Você?
Três noites. Colados. Umbigo com umbigo. Agora sim, meus lençóis tiveram o prazer imensurável de sentir teu corpo castanho roçando neles. E não só eles tiveram esse prazer, diga-se de passagem...
Não uso meu rompimento de ligamentos do tornozelo como real motivo para meu desequilíbrio, quem me dera se fosse. Recordo-me daquela noite em que fugi para teus braços. Tua cama está cheia de histórias a contar. Acho que esqueci algumas palavras por aí. Cheguei a casa para redigi-las e nada me veio em mente, mesmo sabendo que bolei contos de mil e uma noites enquanto tramávamos a cena. O fato é que sinto falta da tua cama e dos teus lençóis surrados e digo que é uma pena ainda não teres vindo aqui gastar meus lençóis novinhos com cheiro de loja. Sinto muito, eu não queria ter dito isso, mas escrevo à caneta e usar corretivo deixa o caderno tão feio...
Talvez fosse pela não-falta-de-tempo contida no meu dia, mas hoje eu me arrumei. Arrumei-me para ti, unicamente, e nem sequer obtive olhares, enquanto eu, como de costume, reparei em cada detalhe. Ah! Havia uma sobrancelha mais desalinhada que a outra, pensei em arrumar, mas te vi tão apaixonado, envolvido nas cordas do contrabaixo... Resolvi não incomodar, afinal, admiro cada dissonância de tuas cordas. Imãs de pólos iguais, repelindo, repelindo, repelindo. Quem me dera se fosse pela ausência de beleza e curvas neste corpo cansado, antes fosse. Talvez eu esperasse um algo a mais, mesmo sabendo que prometi pra mim mesma, não planejar mais nada, mas como estou cansada de saber, meu relógio segue outros compassos, sempre adiantados e fora do ritmo. Dessa vez eu não esperava nada mesmo, juro. Só de pensar que os corpos podem pulsar novamente na mesma batida do jazz ao fundo de toda cena... Sei que quando os corpos descobrirem que estão diante de uma aproximação um tanto mais intensa que carnal (eu falo de fome, canibalismo), o tempo não terá conseguido cessar o magnetismo e se eu falar com um ar modesto, tenha certeza de que estarei fingindo.
Me procure sem motivo aparente e faça tempestade em copo d’água. Me apavore, me enlouqueça e me envolva numa suposta pretensão. Me instigue, me irrite, invente motivos para pensar que pode ser e depois me alucine parecendo dizer não. Fuja. Passe dias, noites, horas ao meu lado e me conforte. Me acalme, me anime, me faça rir. Depois desapareça, me esqueça, me critique, me hipnotize. Confunda. Se declare, me rejeite, me difame, me oriente e eu, gramaticalmente incorreta, continuarei incoerente, desconexa, envolvida. Procurar-te-ei em tudo, em todos. Não te encontrarei, não saberei quem és. Imaginarei minha vida envolvida, enrolada nos teus braços, nos teus olhos. Em filmes, músicas, pássaros e copos de uísque barato eu me trancarei, esquecer-me-ei, afogar-me-ei. Um, dois, três, quatro modos de loucura. Às vezes cinco, muito gelo e um gole. Entorpecerei logo. Aí, devassados, vestiremos a nudez, compartilharemos o mesmo teto por uma noite, saborearemos o melhor vinho: fel. Transmitiremos calores incansáveis, incessantes e adormeceremos exaustos apenas sabendo que o inferno é o máximo. Depois fingirei que nunca te conheci e te encararei no meio da pista. Dançarei contigo como se tivéssemos dezoito anos e ficarei contigo, transarei no primeiro encontro. Esquecerei tua nobreza e me insinuarei para ti, seduzir-te-ei e enfim te terei novamente aqui.
A pele inquieta, gélida, passa a sentir falta de ter um corpo másculo sobre este feminil, agora, frígido que só. Espera-se não ser esquecida por entre grandes tragos de vinho branco nesse tempo ameno que aí, longínquo, abraça. A mão suada tramando fios de cabelo e o calor de dentro embaçando o vidro do carro com o frio de fora; Desenhos. Saudades, e não se esperava por.
Essa minha cara, meia-cara, cara fria, cara à tapa, talvez fosse isso que merecesse. Sinto-me incapaz de proferir o que há de mais ingênuo, sinto-me, também, covarde ao entregar os pontos, ao abrir os olhos e ver que não consigo manter-me de pé sem uma terceira perna, fazendo-me então um tripé estável. Sinto falta de ser arriscada, pelo menos eu podia caminhar, fosse para frente, para trás ou para os lados nos meus momentos de perplexidade. Acontece que com essa terceira perna não há locomoção. Eu tento, tentei, mas sou cristal que se encostar... Vivo num mundo onde o tudo é inconstante e o nada se tornou totalidade.
Ah! Eu detesto ser melodramática.
E de lágrimas definharei, pois nada terei para hidratar-me senão minha própria gota salgada. A ti que tanto pertenço, desvaneço como um raio em lampejos de azul e branco, em que o branco és tu e o azul ainda não tem nome, entre a tempestade nesse bosque escuro onde me sinto só. Eu tenho medo do escuro. Sem ter outro remédio percebi que minha vaga existência sempre se resumiu a simples ideia de nãoprecisardeninguém e é incrível como com o passar do tempo tudo isso começa a me perturbar, involuntariamente. Quantas gotas escorrem pela janela; eu sou uma delas: chuva fina e gelada que arrasta consigo todos os problemas do mundo, mas eu ainda fico, enraizei aqui para atormentar-te, ainda sofrerás muito por minha causa, meu bem. E não é porque quero, apenas o faço e quando menos percebo, estou a perfurar-te com minha adaga que acabei de afiar. Meus pés giram e saltitam por aí. De pele escura, para pele escura, não faço mais contraste. Do que me foi branco, só quero o sonho, do que me é escuro, quero os olhos abertos, bem abertos. Mas não é, nada é, esses são apenas os pensamentos que vão e veem, aniquilando-me. Quero que permaneça em ti, aquele meu velho perfume suave, aquele qual aromatizou todos os seus lençóis e fronhas de travesseiro; aquele perfume acabou e não é metáfora, infelizmente. Hoje sou de outros aromas, mais intensos, e eles andam residindo em outras fronhas, mas é tudo por acaso e sabes que o acaso sempre me foi de grande agrado. O acaso e o ocaso - devo confessar. Você que nada de poesias apreciou, hoje de técnicos escritos vive, mas aviso que Vinícius de Moraes tem dormido em minha cabeceira todas as noites e tem sido uma ótima companhia. Meus últimos versos são cruéis, eu sei, mas já era hora e eu espero não acordar amanhã arrependida. Teu sorriso e teus braços ainda me sustentam, és minha base e se daqui saíres, de mim não sei o que será. Tua pele clara, não se encontra mais arranhada por minhas unhas carcomidas pelo meu nervosismo irrefreável, encontra-se lisa e eu, crespa.
Os relógios não colaboraram comigo e eu me senti incapaz de seguir os mesmos compassos que tuas pernas. Nossos metrônomos estão em tempos diferentes; o meu, sempre mais ansioso, frenético, inquieto, impaciente. Não agüentei. É difícil ficar sem manter contato, sem sentir nossas línguas permutando. Teu contrabaixo deitado em minha cama ocupava teu lugar, mas não me saciava a fome daquele todo desejo que fizeram minhas costas suarem, como ontem pudesses perceber. Ele ali, afinadíssimo e eu morrendo de saudades dos teus acordes destoantes tocados em minha pele com tua composição de delicadeza e canibalismo à flor da pele. Obrigada por voltar, meu corpo já estava sentido frio.
... Essa notícia não me fez nada bem e por isso peço que me esqueças até que eu esteja suficientemente bem e te procure espontaneamente, o que garanto que irá demorar. E desse suco espero não beber nem mais um gole sequer, ele já está amargo demais pra mim.
Queria que olhasses na minha cara e me falasses mal. Anda, vá em frente! Eu agüento! Livre-se logo de todo esse peso e rancor que carregas sobre as costas por minha causa. Bata nas paredes, quebre as portas ou desconte toda tua raiva, com força, em mim. Prometo não reclamar. Mas pelo menos, depois disso tudo me olhe, mas olhe no fundo dos meus olhos com toda aquela intensidade que um dia me possuiu devorando-me com uma única tragada. (E os tragos me fazem lembrar de ti, uma ironia e tanto.) Eu ao menos gostaria que entendesses esse meu infinito todo vulgarmente conhecido como minha vida.
Com todo o meu amor um pouco torto,
Carol.
Tenho divergido constantemente das minhas próprias vontades. Pensara eu que jamais me envolveria novamente em tais perversidades, aquelas que por tempos, arrastaram-me pelos cabelos, braços, pernas (arranhadas). Queria mas não podia (é impossível existir amizade, sem desejo, entre um homem e uma mulher) e em poucos minutos mergulhou no cheiro do real, quiçá fossem meras fantasias, mas foi palpável (e como). Essa história não terá um fim tão cedo. A fome, de fato, não consegue conter o desejo da carne vermelha pela carne branca.