Aline Diedrich
Ela é do tipo que guarda as moedas até quando realmente valer apostar. Ela não mergulha em águas pouco profundas e calmas, só onde pode afundar. Ela entende o valor dos espinhos que escondem a verdadeira beleza da flor - e de seu interior. Ela zera toda vez que precisa ajustar os ponteiros pra voltar a andar e escalar. Ela conta os segundos pra derrubar as paredes e pintar as memórias de outra cor. Ela não tem interesse, de jeito nenhum, pelas coisas óbvias, convenientes ou malas fáceis de carregar, porque a vida é de quem sabe arriscar. Ela nem teme seguir adiante, tomar outros rumos, outra direção, enfrentar seus fantasmas, proteger seu leão. E no lugar em que menos se espera, baixa a guarda, fica de prontidão, pairando feito um balão. Pois ela sempre vai levando com uma dose exagerada de insensatez e outra de razão. Em um mundo tão pequeno, ela é a dona de toda grandeza, a alteza de sua própria imensidão.
Ela derrubou os empecilhos que impediam certas portas de serem fechadas. Abandonou os vidros remendados de uma coleção de cacos, as gambiarras inseguras criadas ao longo do tempo, quadros que nunca se endireitaram nos departamentos e seus esconderijos. Esconderijos que podiam ser arrastados e desmontados, pois eram como castelos de areia. Ela balançou todos os pilares que encontrou pelo caminho para acordar a vida e, enfim, escreveu uma nova história, deixando de ser plebeia para se tornar a rainha do próprio destino.
Ela é do tipo que doma seus monstros, exorciza seus fantasmas, anestesia sozinha suas dores... Do tipo que sempre está pronta para ir por caminhos longínquos em busca do novo, mesmo que precise atravessar oceanos internos a nado. Ela é quem sabe a hora de pisar fundo ou desacelerar, de regar ou de deixar morrer, de colher ou de esmagar suas flores. E, de tempos em tempos, ela solta ao vento as pipas que não lhe servem mais e recusa os remendos de cacos que não lhe enfeitam a vida. Porque ela sempre tem fome de vida. Dilacera, majestosamente, o que traz gostos novos, enxerga o que é visível somente à alma, sente a magnitude dos aromas insignificantes. Ela é a própria fragrância. Ela colore o dia sem nunca se esquecer da maravilhosa imensidão do preto da noite. Ela quer mais do que uma constelação apenas, com um céu infinito a seu dispor. Ela nunca foi do tipo que se contenta com uma casa comum, quando pode ter um mundo. Pois, no final das contas, ela é um mundo inteiro.
Um gole de coragem é o que basta. Um gole apenas para quebrar os gelos do passado, derreter a neve acumulada nos telhados de suas moradas e aquecer a vida, fazendo de coberta a fé no poder dos amanhãs. Um gole apenas que, primeiramente desce queimando e, depois, coloca cor nos dias cinzas, luz no breu das noites e chuva nas estiagens da alma, porque todo mundo precisa de horas de temporal para assentar a poeira e de dias ensolarados para lavar, secar e organizar a bagunça que, outrora, o tempo também fez. Uma dose, somente, para alargar as vielas estreitas da estrada da vida, atravessar as pontes compridas e trêmulas e desatar todos os nós que prendem os caminhos. Um gole de coragem sempre basta.
Sobre os troféus... São as cicatrizes de suas batalhas vencidas. Sobre armas... Espadas afiadas para travar outras lutas, mas sempre que pode ela vem desarmada, pois sabe entender as voltas e chances que o destino dá. Sobre os rancores... Ela tem o costume de não guardar desafetos no peito. Pelo contrário, joga todos eles aos ventos para esvaziar-se de tudo que é capaz de tirar-lhe o sossego, para então, servir-se de novos sabores. Sobre metades e pressas... Quadros mal pintados não preenchem as paredes de suas memórias, nem objetos descuidados, sem cores ou pouco interessantes enfeitam os espaços vazios. Sobre seguir em frente... Sempre planeja os passos seguintes, porque ela é do tipo que anda por caminhos sinuosos e arriscados, mas tendo a certeza de onde não deve pisar. Sobre precaução... Ela evita levar para dentro o que for dito por pessoas que destroem os sonhos e não deixa de ser quem realmente é para contentar quem não lhe contenta. Sobre intensidade... Sempre consegue viver o que rende histórias intensas e boas em tempos escassos e que, no entanto, valem por uma vida inteira. Sobre dúvidas... Ela não ignora que sabe pouco – e nem o pouco que sabe –, mas leva fé na convicção do que ela não quer. E sobre pertencimento a lugares ou pessoas, só há uma coisa a dizer: ela é toda dela.
Deixe ir as roupas que não servem, os sapatos apertados, os objetos remendados, os móveis obsoletos. Deixe ir as promessas não cumpridas, as palavras repetidas, os dizeres que não acrescentam. Deixe ir o que tira o prazer das noites, que amarga os amanheceres, que atravanca os caminhos dos dias. Saiba filtrar. É necessário descobrir o que vai continuar e que espaços precisa abrir. Tem coisas que simplesmente não cabem mais e outras tantas querem chegar. O novo só passa por portas abertas e só entra onde encontra lugar para ficar.
Saiba que de tempos em tempos é bom faxinar, varrer a poeira para fora, desocupar os espaços, mandar embora o que não faz mais sentido, é preciso esvaziar. Abrir mão dos objetos, das situações, das sensações que não agregam. É preciso desobstruir os ambientes. É preciso deixar passar pela peneira. É sempre necessário filtrar. Saber o que não serve, saiu de moda, o que quebrou, o que não deve remendar. Ter noção do que um dia quis, mas não vale tempo e esforço para buscar. Nem dá para deixar o peso do ontem ou do outro fazer o lar pesar. Sua mente é sua morada. Ela precisa estar leve e limpa, porque casa limpa é muito melhor de habitar. E saber viver é não ter medo de desapegar.
Ela vai. Segue seus próprios caminhos, cura a dor dos espinhos, carrega na mala essas e outras memórias. Ela é inteira e, por ser inteira, ela não aceita histórias pequenas ou banais. Ela vai. Coloca em metades seus merecidos pontos finais, empurra pra fora o que não tem o poder de enfeitar sua casa, não se contenta com coisa rasa nem abre um espaço aqui - outro ali - para o que não cabe em seu lar. Pois ela não confunde amor com a necessidade de amar. Ela vai. Vai sem asas, sem saber voar. Mas vai. Enfrenta as suas quimeras, planta suas flores sem a paciência de esperar pelas estações mais certas, ela faz suas primaveras. Sem nunca deixar de ser neblina quando precisa esconder a estrada a frente ou calor para derreter alguns gelos. Ela é mais do que enviar mensagens, cartas, cartões, selos. Ela mesma vai. Vai e rouba a cena quando não sabe o que é interpretar. Ela vai sem medo de se molhar nem de se queimar. Ela vai sem dizer amém pra tudo com o pensamento pequeno de que isso pode mudar o mundo. Ela vai. Até quando desmorona, quando lhe derrubam ou cai. Ela vai. Vai, mas não reconstrói, não refaz o que ficou para trás. Ela simplesmente vai. Vai e constrói o novo com todo esforço que isso requer. Porque ela sempre sabe o que quer... Tem a ver com essa vontade enorme que ela tem de viver.
Ela arrisca pelas curvas sinuosas, mas com foco para acelerar ou frear, porque a estrada reserva surpresas incríveis e tem horas que vale a pena arriscar. Ah, ela sabe que é preciso evitar os espinhos que fazem parte de tantos caminhos, porém, sem deixar de sentir as fragrâncias das plantas, pois os perfumes também constituem memórias. Ela entende que os cacos deixados para trás já não podem estragar as tão planejadas turnês, já que as cicatrizes de outrora fecharam e, no agora, não passam de simples histórias. Ela tem essa mania de deixar espaços vagos ao lado ou em suas sacolas, pois sempre há algo mais para levar, caber, acompanhar, sem medo dos absurdos fantásticos que o destino quer apresentar.
E ela sempre diz: Que louca viagem é a nossa vida.
Ela tem o costume de esvaziar os potes cheios de coisas que não valem a pena guardar. Ela tem a mania de pedir sabedoria para compreender as intuições. Ela comete aquela loucura de nunca desviar os obstáculos pelo prazer de superar. Ela busca a ousadia para atrever-se pelas mais variadas e arriscadas situações. Ela não faz a menor questão de parecer certa e coerente o tempo todo em suas perguntas e respostas. Ela sabe ser um misto de desconcertos, acertos, apostas. Ela é mais do que vive, do que sobrevive, do que ouve, do que houve, do que você vê. É o que bem entender. Ela é o que, de fato, bota fé. É o que faz e o que ela quer.
Ela não quer ser aparência. Quer ser elegante na vida. Ela quer continuar importante mesmo quando troca a roupa ou despe a alma atrevida.
Não mostre a ela o caminho de casa.
Não trate sobre o que ela já aprendeu.
Não diga a ela pouca coisa, coisa rasa
nem o pouco ao qual se submeteu.
Não dê a ela o que é rotineiro,
comum, simples, banal.
Ela quer saber o que há,
o que faz, o que sabe sobre
esse mundo plural.
Esvaziar a bagagem da vida não é tão somente abrir mão dos pertences. É tornar-se leve, deixando ir embora feito balão que flutua tudo que não lhe cabe mais, que não lhe satisfaz. Sejam pessoas, amores, ambições, cargos, encargos. É fazer um verdadeiro estrago, para depois perceber que não é preciso remendar os cacos que restaram, pois não eram garantia de uma vida plena e magnífica. E que basta o pouco que ficou. E que você se basta. A vida também consiste em permitir partir, em fechar as portas, em descobrir caminhos novos, mesmo que pareçam estranhos ou sinuosos. Enfrente, destrave, desbrave as estradas. Siga em frente, porque logo ali está o maravilhoso acaso, o inesperado. O que encanta é justamente o que nunca foi planejado.
Liberdade não tem a ver com ganhar o mundo, apostar ou valer-se de tudo. Liberdade está em ser quem realmente se é, em não se enquadrar no que não bota fé. É, especialmente, se conhecer, se habitar, se pertencer. Aceitar e cultivar o grandioso interior, regar-se do próprio amor. A liberdade, primeiramente, vive e vem de dentro da gente. E está na chance de sempre evoluir e abrir a mente.