Aline Bermejo
Em preto e branco
Mais preto que branco descoberto naquele ser de olhos de fogo, olhá-lo era como olhar a noite profunda.
Existe algo que não é humano na sua composição, não pelo olhar cruel de despir a alma, nem por suas mãos pálidas, perfeitas como esculturas em marfim. É algo na dureza de mármore da sua personalidade, na aspereza do todo que é ele. Existe algo na sua postura de anjo dissoluto que eu não poderia traduzir em palavras. Como uma contínua repetição das sensações, um querer fugir como se algo me perseguisse.
Agora mesmo eu posso vê-lo a um palmo do meu rosto com os olhos flamejantes, arrematados de negro. Eu não conheço o seu cheiro tampouco senti o seu toque. Tanto que vi daquele ser era oque se pode ver olhando por cima do ombro, quando ninguém percebe.
Nos salões do triste e do vazio, junto com a alma pálida da solidão, a bailarina dança sozinha, nas pontas de pés descalços, os seus dedos frios traçam no chão a história da sua vida que desta mesma maneira, em pontas de dedos, se tornou o que é agora. Um amor vazio, numa tarde chuvosa e cinza como esta, ela pensa em desistir e se cansar, mudar; mas é muito tarde para deixar pra lá, é muito tarde pra deixar de ser quem se é, e mesmo o orgulho ferido da bailarina é pouco, ela está atada a essa realidade assim como as fitas de cetim nos seus tornozelos.
Ele roubou sim, roubou a calmaria das horas sem fome da minha vida. Roubou a paz das minhas tardes e sossegos dos dias de semana sem ansiedades. ele roubou na medida em que me devolveu também, um frio na espinha, um suor nas mãos, devolveu uma vontade de sorrir sem motivo, uma lágrima sentida por qualquer deslize bobo...
Você sabe saudade?
Aquela que vem sem avisar como um vento quente que toca a nuca, trazendo de leve o seu cheiro. Aquela mesma que é doce e molhada como o primeiro toque dos lábios num copo de água gelada no calor de meio-dia, que traz de leve o seu gosto, o doce salgado da sua boca.
É assim que não sinto agonia mas um prazer largo em te esperar, uma graça e uma alegria esperando o momento em que estes meus olhos cansados vão tocar a sua imagem e o meu coração vai disparar, eu vou te abraçar e tocar os seus cabelos. E os nossos rostos, os nossos gostos, as nossas roupas vão se confundir e não estaremos mais sós.
É assim, um pouco disso e um pouco daquilo e voltamos para o eixo. É bom lembrar que as vezes o mundo precisa parar de girar, e mesmo que naquele momento breve e vertiginoso nos sintamos perdidos, é aquele momento e apenas ele que pode por vezes nos devolver a paz. E nos tirar do tédio e da agonia de horas insípidas, de memórias de gosto amargo. Todo mundo uma hora ou outra precisa ser resgatado, a sorte é de quem tem alguém que o resgate e a quem resgatar.