Adélia Prado
"Não tenho mais tempo algum, ser feliz me consome".
(De O Pelicano, em Poesia Reunida, página 365, Editora Siciliano – 1991)
Sei que Deus mora em mim
Como sua melhor casa.
Sou sua paisagem,
Sua retorta alquímica
E para sua alegria
Seus dois olhos.
Mas esta letra é minha."
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(PRADO, Adélia. "Direitos Humanos" In Poesia Reunida, pg. 345 (Ed. Record - 2015)
"A liturgia,
O ícone,
O monacato.
Descobri que eu sou Russa."
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(PRADO, Adélia. "A Convertida" In Poesia Reunida, pg. 365 (Ed. Record - 2015)
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
A invenção de um modo
Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.
Enredo para um tema
Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.
O que a memória ama fica eterno.
Páscoa
Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos,
a segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui loura e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro da minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
‘põe o agasalho’
‘tens coragem?’
‘por que não vais de óculos?’
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho.
Quase indizível o experimento histórico,
porque o mês é setembro,
o ano, o de 2011
e às três da manhã me percebo acordada
me equilibrando à beira de um buraco
de que só agora meço o fundo e escuto
a radiação contínua de uma dor
por anos de distração ignorada.
Quem pode me consolar
a não ser Vós, face desfigurada de solidão e tormento?
Que fiz eu, desatenta a vida inteira?
Com que ocupava as horas
quando, à minha frente, muda
levantáveis os olhos para mim
esperando mais que migalhas?
Chorem comigo, céus,
para que o desvão transborde.
Me socorre, pai, mãe, me socorre,
irmãos meus, ancestrais, pecadores todos.
Quem viu o que vejo
venha me socorrer.
Sempre quis ver Jesus
e Ele esteve comigo o tempo todo.
Só era preciso um olhar,
um olhar atento meu.
Era só ficar junto e de modo perfeito
tudo estaria bem, de modo miraculoso.
Ó Vós que me fizestes,
bendigo-Vos pela cruz
da qual ainda viva me desprendes.
Eu não preciso mais acreditar.
Na minha carne eu sei que sois o amor
e é dele que renasço
e posso voltar a dormir.